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Processo nº 715/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A., B. - por si e em representação do filho menor, C. – D., E. e F., identificados nos autos, invocando o disposto nos artigos 13º, nºs. 3 e 4, da Lei nº 24/88/M, de 3 de Outubro, e 39º, nºs. 2 e 3, alínea b), do Decreto-Lei nº 23/85/M, de 23 de Março, recorreram contenciosamente para o Tribunal Administrativo de Macau dos seguintes actos:
a) deliberação da Câmara Municipal de Macau, de 14 de Agosto de 1992, que indeferiu o pedido de transmissão do direito de arrendamento da fracção autónoma sita na Avenida ----------, nº -------, ---- andar, do Leal Senado, e que decidiu anular o processo de alienação dessa fracção;
b) deliberação da Assembleia Municipal, de
5 de Dezembro de 1992, que aprovou aquela deliberação camarária.
Entendem os recorrentes que esses actos padecem de vícios que justificam o seu pedido de anulação.
Assim, em sua tese, a deliberação camarária enferma:
- de vício de violação de lei, por ofensa ao disposto no artigo 11º do Decreto-Lei nº 46/80/M, de 27 de Dezembro, quanto ao indeferimento do pedido de transmissão do direito ao arrendamento;
- de vício de violação de lei, por ofensa ao disposto nos artigos 1º, nº 2 e 2º da Lei nº 4/83/M, de 11 de Julho, e 16º, nº 5, do Decreto-Lei nº 56/83/M, de 30 de Dezembro, quanto à decisão de anulação do processo de alienação da fracção autónoma, e 8º, nº 1, do Regulamento da Distribuição, Conservação e Fixação de Rendas de Casas do Leal Senado (aprovado em sessão de 20 de Fevereiro de 1987);
- de vício de violação de lei, por ofensa do disposto no artigo 23º do Decreto-Lei nº 23/85/M, de 23 de Março, porquanto sendo um acto constitutivo de direitos a decisão da Câmara alienatória da fracção, só podia ser anulada, modificada, suspensa ou revogada com base ou fundamento em ilegalidade e dentro do prazo de interposição de recurso contencioso, não sendo esse o caso, pois não havia ilegalidades no processo de alienação do fogo.
Por sua vez, a deliberação da Assembleia Municipal não só está ferida de vícios de violação de lei em termos idênticos aos da Câmara, como implica desvio de poder: 'A deliberação em causa no fundo, sem nada acrescentar ou tirar ao conteúdo de deliberação camarária, manda executar esta última, ou seja, manda anular a venda, ultrapassando, assim, o fim visado pela lei que não lhe confere tal poder'. Isto é, verificados os requisitos da venda do imóvel a favor do falecido, a Assembleia deveria ter aprovado a venda
- e esse seria o fim do poder discricionário a si atribuído - mas em caso algum a podia ter anulado.
2.- O Tribunal Administrativo de Macau, por sentença de
9 de Junho de 1994, negou provimento ao recurso.
Os interessados recorreram, então, para o Tribunal Superior de Justiça de Macau, nos termos e ao abrigo do artigo 14º, nº 3, alínea m), da Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau, o qual, por acórdão de 8 de Março de 1995, negou provimento ao recurso.
Inconformados, dirigiram-se, sob invocação do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, ao Tribunal Constitucional, recorrendo daquele aresto na parte 'em que não toma conhecimento e assim permite a aplicação do nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº
46/80/M, de 27 de Dezembro, em violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa'.
Posteriormente, recorrendo ao despacho que os convidou a indicar a passagem do acórdão onde se afirme, explicita ou implicitamente, que nele se fez aplicação do referido Decreto-Lei nº 46/80/M., vieram os interessados aos autos dizer que o acórdão, ao 'não tomar conhecimento', interpretou erroneamente o artigo 8º do Regulamento já citado, que mais não fez do que reproduzir a doutrina plasmada no artigo 11º daquele decreto-lei.
O recurso não foi recebido dado o Senhor magistrado relator ter entendido, por despacho de 28 de Abril de 1995, tendo presente o disposto nos artigos 70º e 76º, nº 2, da Lei nº 28/82, que a decisão recorrida não interpretou nem de qualquer modo aplicou a norma desse diploma.
Do assim decidido reclamaram os interessados - agora desacompanhados de A. - para o Tribunal Constitucional, nos termos do nº 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82, por considerarem que se acham preenchidos os requisitos exigidos legalmente para fundamentar o recurso, o qual incide sobre decisão judicial que 'ao fazer uma interpretação errónea da lei, permitiu a aplicação de norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo
- o nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 46/80/M, de 27 de Dezembro, em violação do princípio de igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa'.
O Tribunal Superior de Justiça de Macau, por acórdão de 3 de Julho de 1996, entendeu ser de manter o despacho reclamado integralmente e ordenou o cumprimento do disposto nos nºs. 4 e 5 do artigo 688º do Código de Processo Civil.
No Tribunal Constitucional correram-se os vistos que o nº 2 do artigo 77º da Lei nº 28/82 prevê.
Pronunciando-se, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência da reclamação por não se verificar um pressuposto essencial de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, o da aplicação, na decisão recorrida, da norma - ou de uma sua interpretação - que os recorrentes identificam no requerimento de interposição do recurso como a do nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 46/80/M.
Cumpre decidir.
II
1.- O recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, implica a congregação de vários pressupostos, de indispensável verificação, com vista à admissibilidade do recurso, entre eles constando o da atempada suscitação da norma - segmento desta ou uma sua dada interpretação - cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada e cuja aplicação se tenha verificado na decisão recorrida de modo determinante, com sua ratio decidendi. Neste sentido, a jurisprudência uniforme e constantemente reiterada deste Tribunal, como o ilustram, por todos, os acórdãos nºs. 169/92 e 640/96, publicados no Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992 e 9 de Julho de 1996, respectivamente.
O Decreto-Lei nº 46/80/M veio modificar o regime de atribuição e utilização de moradias do Estado no Território de Macau, pretendendo, dessa forma, assegurar 'a sua mais justa e equilibrada distribuição aos agentes da função pública'.
No seu artigo 1º preceitua-se que a distribuição das moradias do Estado se fará em regime de arrendamento, que o diploma regula, e o artigo 2º, além do mais, prescreve a sua distribuição aos servidores do Estado' na actividade de serviço em Macau, para sua habitação e da sua família, desde que não sejam proprietários de qualquer prédio urbano situado no Território' (nº 1), o que é extensivo 'aos aposentados e desligados do serviço aguardando aposentação' (nº2).
A norma sindicanda, integrada no capítulo
'Arrendamento', diz-nos, no seu nº 1 do artigo 11º:
'Em caso de falecimento do funcionário ou agente, o cônjuge ou os descendentes menores poderão continuar a ocupar a respectiva moradia, pagando a renda devida, desde que o cônjuge sobrevivo ou os descendentes o requeiram, no prazo de 3 meses a contar da data do óbito.'
Este normativo - que o nº 1 do artigo 8º do Regulamento relativo às casas pertencentes ao Leal Senado reproduz praticamente de modo integral (texto a fls. 54) - está na base da impugnação pelos ora reclamantes dos aludidos actos administrativos que deliberaram alienar a fracção em causa, todos na qualidade de filhos (C. na de neto) de G., falecido em 30 de Junho de 1992, que era o titular do direito ao arrendamento do apartamento identificado.
Ora, o que se diz como fundamento do não recebimento do recurso é que a decisão recorrida não aplicou essa norma.
Com efeito, em mais de uma passagem consta do acórdão não ser aplicável ao caso sub judice o Decreto-Lei nº 46/80/M, cuja previsão não é extensível aos prédios propriedade do Leal Senado, tendo sido precisamente por isso que este veio a aprovar o Regulamento já mencionado, com disciplina em tudo idêntica ao regime instituído por aquele decreto-lei (cfr. fls., 285-v. e 290 e segs.).
Assim, o acórdão recorrido, após alinhar a matéria de facto considerada provada, passou à análise das 'questões de que não se poderá conhecer por estarem fora do âmbito do recurso jurisdicional', após o que, para decidir das demais questões, apelou ao regime jurídico 'não só da organização municipal como ainda à disciplina da alienação de imóveis a funcionários que neles habitam', escrevendo-se a respeito deste:
'Em dois momentos diferentes o legislador ocupou-se de duas distintas realidades também, ou sejam o problema da distribuição ou atribuição de moradias aos funcionários do Território em regime de arrendamento a que se reporta o DL 46/80/M, de 27 de Dezembro, e a alienação de prédios do Estado aos seus arrendatários (Lei nº 4/83/M, de 11/7).'
E o acórdão, após se deter no regime jurídico introduzido por uma legislação que, essencialmente, respondeu 'a uma antiga aspiração de muitos arrendatários', afirma explicitamente:
'Começa-se por referir que por não ser aplicável o DL 46/80/M, de 27 de Dezembro, às habitações propriedade do Leal Senado, é que este elaborou o Regulamento de Distribuição, Conservação e Fixação das Rendas de Casa do Leal Senado, aprovado em sessão de 20.2.87, em todo semelhante ao DL 46/80/M.
E dizemos que este D.Lei não se aplica às habitações do Leal Senado, desde logo porque se reclama da regulamentação, apenas, da atribuição e utilização de moradias do Estado (artº 1º, nº 1), prevendo todo o processo burocrático a ser desenvolvido pelo Serviço de Finanças e Obras Pública, para decisão do Governador de Macau (artº 3º, 4º 6º etc.), sem uma única referência
às autarquias ou a inclusão de norma de extensão da sua aplicabilidade em relação a estas, como fez a Lei 4/83/M, de 11/7.'
Mais adiante, observa-se, de novo explicitamente:
'Já se disse que o DL. 46/80/M não é aplicável aos prédios propriedade do Leal Senado por não conter qualquer norma que essa extensão refira e não ter visado, directamente, disciplinar o arrendamento desses bens. Foi precisamente por isso é que o Leal Senado veio a aprovar o Regulamento que os recorrentes também citam, esse sim aplicável, e que contem uma disciplina em tudo idêntica ao regime que o DL. 46/80/M institui para os prédios de propriedade do Território, ao ponto do artigo 11º deste diploma ter sido transcrito para o artº 8º do Regulamento do Leal Senado.'
3.- Em face do exposto, e independentemente de se cuidar de saber se a questão de constitucionalidade foi suscitada adequadamente pelos ora reclamantes quando se dirigiram perante o Tribunal Superior de Justiça, conclui-se pela não verificação de um dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, relativo à aplicação na decisão recorrida de norma cuja adequação constitucional se pretende ver discutida e que terá sido determinante na decisão.
Esta, na verdade, não 'utilizou' a norma do artigo
11º do Decreto-Lei nº 46/80/M, não por razões de constitucionalidade, mas, como se observou no despacho do Relator de não recebimento do recurso, no Tribunal Superior de Justiça de Macau (fls. 301-v.), por entender que este diploma não faz 'parte integrante do bloco da legalidade regente do caso concreto'.
Assim sendo, decide o Tribunal Constitucional indeferir a presente reclamação.
Custas a cargo dos reclamantes, com taxa de justiça que se fixa em 5 (cinco) unidades de conta.
Lisboa, 25 de Fevereiro de 1997 Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa