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Processo nº 643/00
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. DN, com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional, 'ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº
28/82 de 15 de Novembro', do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (3ª Secção), de 26 de Abril de 2000, que 'não admitiu o recurso por si interposto, invocando para o efeito o disposto no artigo 400º, nº 1 do CPP', pretendendo 'ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 400º, nº 1, al. c) do CPP, na interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida, isto é, considerando que quando se põe termo à causa por questões de direito processual penal, o recurso não é de admitir, quando a lei não distingue a forma como os acórdãos das Relações põem termo à causa', pois tal 'norma com a interpretação com que foi aplicada viola o artigo 32º, nº 1 da CRP)'. Acrescenta ainda o recorrente no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade:
'A questão da inconstitucionalidade não foi suscitada anteriormente, porquanto a interpretação dada à norma na decisão recorrida foi de todo imprevisível, não podendo razoavelmente o recorrente contar com a sua aplicação. Não lhe era exigível, pois, que antevisse a possibilidade da aplicação da norma ao caso concreto, de modo a impor-lhe o ónus de suscitar a questão antes da decisão'.
2. Na sua alegação concluiu assim o recorrente:
'1-A decisão recorrida interpretou o artigo 400º, nº 1, alínea c) do CPP, no sentido de que não são recorríveis as decisões da Relação, como a concreta, que ponham termo à causa por razões de ordem adjectiva.
2-No caso, o que ocorreu foi que o Tribunal da Relação, pura e simplesmente, omitiu pronúncia sobre uma nulidade arguida e considerou não cumprida determinada regra processual.
3-Tal distracção não pode ser protegida por uma interpretação restritiva da lei.
4-A lei ordinária não distingue se a decisão da Relação põe termo à causa por via substantiva ou adjectiva. Apenas considera que não são recorríveis as decisões da Relação que não ponham termo à causa.
5-A causa que termina por razões adjectivas não deixa de terminar por a sua fundamentação serem razões de tal índole.
6-Na previsão da alínea c) apenas se integram as decisões interlocutórias.
6-A decisão recorrida a interpretar a norma como interpretou, violou o artigo
32º da CRP, violação consubstanciada quer na violação genérica das garantias de defesa, quer na violação específica do direito de recurso.
7-Assim deve ser declarada inconstitucional tal interpretação, com as legais consequências'.
3. O Ministério Público apresentou contra-alegações em que concluiu deste modo:
'1º - Não compete ao Tribunal Constitucional sindicar a correcção da interpretação das normas de direito infraconstitucional, realizada pelo tribunal
'a quo', de modo a verificar se – em consequência do processo interpretativo por este seguido – se terá, porventura, ampliado, em termos constitucionalmente censuráveis, o âmbito de determinada excepção à regra da recorribilidade das decisões proferidas em processo penal.
2º - Não viola o princípio constitucional das garantias de defesa o estabelecimento, em processo penal, de um limite à recorribilidade para o Supremo das decisões proferidas pelas relações em recursos perante si interpostos, que se traduza em denegar o acesso ao Supremo quando estiver em causa a impugnação de decisões de índole meramente adjectiva ou procedimental, mesmo nos casos em que o acórdão da Relação – ao não conhecer do recurso interposto – vá reflexamente ditar o termo do processo, consequente ao trânsito em julgado da decisão da 1ª instância.
3º - Na verdade, o direito ao recurso, ínsito nas garantias de defesa, não comporta a necessária e sistemática apreciação, em três graus de recurso, - e culminando num julgamento pelo Supremo - de todas as decisões desfavoráveis ao arguido, proferidas ao longo do processo penal.
4º - Termos em que deverá improceder o presente recurso'.
4. Tudo visto, cumpre decidir. Os autos revelam a seguinte sequência processual:
4.1. Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22 de Setembro de 1999, foi rejeitado um recurso interposto pelo recorrente, 'face ao disposto nos artºs
412º, nº 2, 417º, nº 3, al. c), 419º, nº 4, al. a) e 420º, nº 1 do Cód. Proc. Penal'.
4.2. Interposto pelo recorrente desse acórdão novo recurso, agora para o Supremo Tribunal de Justiça, acompanhado da respectiva motivação, não foi o mesmo admitido, por despacho do Relator, de 27 de Outubro de 1999, 'face ao disposto no artº 400º, nº 1, al. f) do Cód. Proc. Penal'.
4.3. Apresentada pelo recorrente reclamação desse despacho, 'visto o previsto no artigo 405º do CPP', foi ela atendida, por despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, 'para efeitos de se admitir e fazer seguir o recurso de onde emerge', na base da seguinte consideração:
'Conforme decorre do disposto nos artigos 400º e 427º, do Código de Processo Penal – serão deste diploma todas as referências normativas sem menção específica – o regime regra no processo penal é o da interposição para o tribunal da Relação das decisões proferidas pelo tribunal de primeira instância
– encontrando-se elencados no artº 432º os casos em que é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. No caso vertente tratou-se de acórdão da Relação que rejeitando o recurso interposto da decisão de primeira instância acaba por confirmar essa decisão na medida em que não altera a pena aí imposta. Ora, considerando que o arguido foi acusado por crime punível com pena superior a oito anos, vd. artº 210º, nº 1 e 2, alínea a) do Código Penal, a decisão em causa é recorrível por força do disposto no citado artº 400º, nº 1, alínea f) e artº 432º, alínea b), referidos supra'.
4.4. Admitido então o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, por despacho do Relator do processo no tribunal de relação, de 30 de Dezembro de 1999, foi neste Tribunal apresentada resposta pelo Ministério Público e, subindo os autos
àquele Supremo Tribunal, foi proferido o acórdão recorrido, com o seguinte teor literal:
'O presente recurso diz respeito a decisão que rejeitou o interposto do acórdão proferido pela 1ª instância. Tem-se levantado a questão de saber se, perante uma situação como esta, será ou não admissível a interposição de recurso, dado o estatuído no art. 400º, nº 1, al. c), do C.P.Penal. Diz esta norma: ‘1. Não é admissível recurso: c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa;...’ E a pergunta que se põe é, precisamente, a de saber se uma decisão como aquela que rejeita o recurso, põe, ou não, ‘termo à causa’. Temos para nós que esta expressão deve ser interpretada de uma forma restritiva. Há acórdãos que põem termo á causa por razões de direito penal substantivo, como há acórdãos que põem fim por razões de direito processual penal. Entre os primeiros, poderemos referir aqueles em que se julga a acusação processual procedente e se condena os arguidos; ou em que se julga a acusação improcedente e dela se absolve os arguidos; ou os que decidem da existência, ou não, da prescrição do procedimento criminal, ou da pena; ou os que se pronunciam sobre a desistência da queixa. Entre aqueles que se situam no campo da apreciação de questões de ordem processual penal, poder-se-á referir os que julgam da extemporaneidade do recurso; de invocação de irregularidades ou nulidades; de rejeição do recurso por violação do disposto no n° 2 do artigo 410º, do C.P. Penal, ou por manifesta improcedência. Entendemos que a lei só a estas situações se quer referir, isto é, quando estão em causa questões de direito processual penal. A julgar-se de outro modo, o campo de aplicação da norma era praticamente inexistente, pois rara será a decisão que não põe termo, de uma maneira ou de outra, à causa. Só que uma vezes, põe, directamente, termo á causa; outras, só indirectamente. Naquele caso, o recurso será admissível; neste, cai no âmbito da citada al. c). Resulta do exposto que, tendo em consideração as razões determinantes da rejeição no acórdão da Relação, a situação não se enquadra na análise de problemas de direito substantivo. Finalmente, não se pode deixar de ter presente o disposto no nº 3 do artº 414º, do C.P.Penal. Nestes termos, acordam em, dado o estatuído no art. 400º, nº 1, al. c) do C.P.Penal, não admitir o recurso interposto.'
4.5. Apresentado pelo recorrente pedido de esclarecimento desse acórdão
('esclarecer se na decisão de V. Exªs distinguiram entre questões de ordem substantiva e de ordem adjectiva, no sentido de entenderem que estas não põem termo à causa, o que só ocorre por força daquelas, para efeitos do disposto no artigo 400º, nº 1, al. c) da CRP' e, em caso afirmativo, 'arguir a inconstitucionalidade da norma do artigo 400º, nº 1, al. c) do CPP, com a interpretação de que as questões de natureza adjectiva não põem termo à causa, por violação do artigo 32º, nº 1 da CRP' – foi como requereu o recorrente), foi o mesmo indeferido, por acórdão de 27 de Setembro de 2000, abstendo-se de se
'pronunciar sobre a questão contida no nº 2', ou seja, aquela arguição de inconstitucionalidade.
5. Não oferece dúvidas, face ao relato feito da sequência processual, que não há obstáculo a que se conheça do mérito do presente recurso, tendo razão o recorrente quando invoca – e é a jurisprudência corrente do Tribunal Constitucional – que não lhe era exigível que 'antevisse (...) decisão', o que nem sequer necessita de demonstração. Mostram-se, pois, preenchidos todos os pressupostos processuais exigidos para o tipo de recurso de que se serve o recorrente, o da alínea b) do nº 1, do artigo
70º, da Lei nº 28/82. Há que prosseguir, pois, quanto ao conhecimento do mérito do recurso. A norma questionada – e transcrita no acórdão recorrido – elenca os casos em que, no âmbito do processo penal, não é admissível recurso, enumerando nas alíneas c), d) e f), as hipóteses de acórdãos proferidos em recurso, pelas relações, que não admitem recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, entre elas, a dos acórdãos 'que não ponham termo à causa' (alínea c)). E utilizando a linguagem do Ministério Público 'a questão de constitucionalidade que cabe apreciar no presente recurso se pode enunciar nestes termos: violará o princípio das garantias de defesa (em que se inclui o 'direito ao recurso') o eventual estabelecimento, em processo penal, de uma restrição no acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, relativamente à impugnação dos acórdãos das relações que dirimam questões de natureza adjectiva (e mesmo no caso de tais decisões consistirem numa rejeição liminar do recurso, com base em razões de forma, da qual decorre inevitavelmente o trânsito em julgado da decisão condenatória proferida em 1ª instância)?'.
É facto, como acentua o Ministério Público, e na senda da jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, que 'não compete obviamente a este Tribunal sindicar do acerto e correcção da interpretação normativa, realizada pelo Supremo Tribunal de Justiça, do disposto no artigo 400º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal, ao equiparar as decisões das relações, 'que não ponham termo à causa' às decisões da 2ª instância que, incidindo sobre questões de natureza adjectiva, as dirimam'. Por outras palavras: no presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade não cumpre, naturalmente, apreciar tal 'acerto e correcção', quanto à fixação do sentido do preceito infraconstitucional em causa. Mas já compete ao Tribunal Constitucional apreciar a conformidade à Constituição da dimensão normativa que subjaz à decisão recorrida e extraída da norma questionada (cfr. o acórdão nº 485/2000, inédito), qual seja a de que a expressão 'ponham termo à causa' deve 'ser interpretada de uma forma restritiva', de tal modo que a lei só a certas situações – as que se localizam
'no campo da apreciação de questões de ordem processual penal' – se quer referir, 'isto é, quando estão em causa questões de direito processual penal' (e daí a conclusão tirada pelo acórdão recorrido de que, 'tendo em consideração as razões determinantes da rejeição no acórdão da Relação, a situação não se enquadra na análise de problemas de direito substantivo'). E é essa dimensão normativa, no fundo, a de que a norma da alínea c) só contemplará certas situações, aplicada restritivamente, ampliando-se, assim, 'o
âmbito de determinada excepção à regra da recorribilidade das decisões em processo penal' (para usar a linguagem do Ministério Público), que cabe no poder de sindicância do Tribunal Constitucional, na óptica (do recorrente) do princípio das garantias de defesa do arguido que o artigo 32º da Constituição consagra, nele se 'incluindo o recurso' (nº 1, após a revisão constitucional de
1997). Assistirá razão ao recorrente? A resposta tem de ser afirmativa, contrariamente ao que defende o Ministério Público, sustentando-se no 'âmbito que a jurisprudência constitucional tem atribuído à garantia do direito ao recurso por parte do arguido – condenado, ao considerar que ele não comporta, nem um irrestrito acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, nem a sistemática garantia de um triplo grau de jurisdição, que se traduza, sempre e necessariamente, num reexame da decisão condenatória, sucessivamente, pelas relações e pelo Supremo'. Se tal entendimento, em geral, tem de aceitar-se quanto à conformidade à Lei Fundamental do regime de recursos contemplado no Código de Processo Penal, de tal modo que se não impõe uma 'necessária e sistemática apreciação, em três graus de recurso, - e culminando num julgamento pelo Supremo - de todas as decisões desfavoráveis ao arguido, proferidas ao longo do processo penal'
(conclusão 3º das contra-alegações do Ministério Público), o certo é que a dimensão normativa acolhida pelo acórdão recorrido impõe uma distinção arbitrária ou injustificada quanto ao exercício do direito de recurso que o nº 1 do artigo 32º abre ao arguido, em conjugação com a garantia de acesso aos tribunais (que a todos é assegurado 'para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos' (nº 1 do artigo 20º da Constituição). É que, pondo a decisão questionada pelo recorrente realmente termo ao processo, é arbitrário ou injustificado, na perspectiva das garantias de defesa do arguido, distinguir entre pôr termo à causa por razões de direito penal substantivo e pôr termo à causa por razões de direito processual penal, como faz o acórdão recorrido. E não será, aliás, correcto dizer-se, como dele se colhe, que 'o campo de aplicação da norma era praticamente inexistente', pois, pelo menos, sempre ficariam em aberto as hipóteses de julgamentos interlocutórios (como diz o recorrente a 'causa que termina por razões adjectivas não deixa de terminar
(...)'). Com efeito, e como se viu, a sentença condenatória em pena de prisão efectiva não chegou a ser censurada pelo tribunal de relação, por ter sido rejeitado o recurso, 'face ao disposto nos artºs 412º, nº 2, 417º, nº 3, al. c), 419º, nº 4, al. a) e 420º, nº 1 do Cód. Proc. Penal', ou seja, por se considerar manifestamente improcedente na sua parte factual e por inobservância do disposto naquele artigo 412º, nº 2, na parte de direito (e, por isso, a decisão daquele tribunal acaba por confirmar a pena de prisão imposta ao recorrente na primeira instância). A distinção que resulta da dimensão normativa, extraída da alínea c), do nº 1, do artigo 400º (por via, portanto, de uma excepção à regra da recorribilidade das decisões proferidas em processo penal, quando está em causa a impugnação de decisões de índole meramente adjectiva ou procedimental, em casos, como o presente, em que o acórdão recorrido vai ditar o termo do processo, fazendo transitar irremediavelmente a condenação da primeira instância), briga, pois, com as garantias de defesa do arguido, nestas se incluindo o direito ao recurso que lhe é garantido no nº 1 do artigo 32º, da Constituição, conjugado com o nº 1 do artigo 20º. Com o que tem de proceder o presente recurso de constitucionalidade.
6. Termos em que, DECIDINDO: a. Julga-se inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição, a interpretação do artigo 400º, nº 1, c) do Código de Processo Penal, segundo a qual não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça os acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que versem sobre questões de direito processual penal; b. Em consequência, concede-se provimento ao recurso, devendo ser reformado o acórdão recorrido, em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade. Lisboa, 20 de Dezembro de 2000 Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa