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Processo n.º 289/10
1ª Secção
Relator: Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. A. recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), da sentença proferida em 8 de Fevereiro de 2010 no Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia (4º Juízo Criminal) pelo qual foi condenado como autor material e sob a forma consumada, pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelos artigos 69.º n.º 1 alínea a) e 348.º n.º 1 alínea a) do Código Penal, por referência aos artigos 152.º n.º 1 alínea a) e n.º 3 do Código da Estrada, na pena de 100 dias de multa, à razão diária de oito euros e na pena acessória de proibição de condução de veículos a motor de qualquer categoria durante seis meses.
Admitido o recurso, o recorrente apresentou a sua alegação, que conclui da seguinte forma:
1. A condenação do Recorrente pela prática de um crime de desobediência pela recusa de sujeição a colheita de sangue viola uma decisão do Tribunal Constitucional que, com anterioridade, julgou inconstitucional a norma aplicada pela decisão recorrida, ou seja, o art. 153º, n.º 8 do Código da Estrada, o que contende com o princípio de um Estado de Direito Democrático, consagrado no art. 2º da Constituição da República Portuguesa.
2. O Recorrente não recusou a realização do exame através do método de ar expirado (não tendo o mesmo obtido sucesso por motivos imputáveis ao Estado), por um lado, nem tão pouco recusou o exame médico alternativo à colheita de sangue, por outro lado, do qual, aliás, nem sequer foi devidamente informado pela entidade autuante.
3. O novo conteúdo do normativo em questão – a exigência de que a não realização da colheita de sangue apenas possa ser justificada pela impossibilidade técnica de tal operação médica –, produzido pelo Governo, obrigava a uma autorização legislativa da Assembleia da República, por força da alínea c) do n.º 1 do art. 165º da CRP.
4. Devem, assim, como se requer, ser julgadas inconstitucionais as normas constantes nos artigos 152º, n.º 3 e 153º, n.º 8 do Código da Estrada, determinando-se a sua desaplicação na Douta Sentença recorrida, assim se fazendo Justiça!
O representante do Ministério Público junto a este Tribunal alegou da seguinte forma:
Nesta conformidade e face ao exposto, conclui-se:
1. De acordo com o decidido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 275/2009, o Governo, ao editar, sem prévia autorização legislativa, o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, que deu nova redacção ao artigo 153.º, n.º 8, do Código da Estrada, veio retirar aos condutores sujeitos aos exames para detecção do estado de influenciado pelo álcool, o direito de recusar a colheita de sangue para análise.
2. Consequentemente, a norma extraída a partir da conjugação do artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal e dos artigos 152.º, n.º 3 e 153.º, n.º 8, ambos do Código da Estrada, na redacção fixada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, na interpretação segundo a qual constitui crime de desobediência a recusa a ser-se submetido a colheita de sangue para análise, com a finalidade e nas condições anteriormente referidas, foi julgada organicamente inconstitucional, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição.
3. Assim, se se concordar com tal entendimento, deverá ser julgada organicamente inconstitucional a norma que se extrai da conjugação do artigos 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal com o artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e 3, do Código da Estrada, concedendo-se provimento ao recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
II Fundamentação
2. A primeira questão a abordar prende-se com a admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da g) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, nos termos da qual “cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional.” O recorrente invoca, para este efeito, o Acórdão n.º 275/2009. Todavia, não existe absoluta identidade entre as normas referidas no Acórdão n.º 275/2009 e as aplicadas na decisão recorrida, com base nas quais o arguido foi condenado. De facto, o Acórdão n.º 275/2009 julgou inconstitucional a norma decorrente da conjugação do tipo genérico do crime de desobediência (alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal) com o n.º 3 do artigo 152.º e n.º 8 do artigo 153.º do Código da Estrada. Já a norma aplicada pela decisão recorrida é a do artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, por referência ao artigo 152º n.ºs 1 alínea a), 3, do Código da Estrada.
2.1. De acordo com jurisprudência sedimentada do Tribunal, é necessário cumprir dois requisitos para se poder recorrer ao abrigo da alínea g) do artigo 70.º da LTC. Diz-se no Acórdão n.º 568/08 (os arestos deste Tribunal citados sem menção do lugar de publicação podem ser consultados em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/):
“para que um recurso possa ser admitido ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tem de verificar-se uma dupla relação de identidade:
- Em primeiro lugar, exige-se que a norma que o recorrente quer ver apreciada tenha sido efectivamente aplicada pela decisão recorrida, como sua ratio decidendi;
- Em segundo lugar – e aqui reside o pressuposto específico desta abertura de recurso para o Tribunal Constitucional – tem de haver identidade entre a norma efectivamente aplicada na decisão recorrida e a norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional. Não basta que possa ser sustentado que as mesmas razões que levaram a julgar inconstitucional determinada norma justificariam que juízo de igual sentido fosse formulado a propósito da norma aplicada na decisão recorrida (cfr., quanto ao âmbito, aos pressupostos e à razão de ser deste recurso, por exemplo, o acórdão n.º 586/98, publicado no Diário da República, II Série, de 1 de Março de 1999)”.
2.2. Salienta, porém, o Ministério Público nas suas contra-alegações que, apesar de não existir uma integral coincidência entre as normas referidas no Acórdão n.º 275/2009 e as constantes da decisão recorrida, com base nas quais o arguido foi condenado, o núcleo essencial mantém-se: o artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal e o artigo 152º, n.º 3, do Código da Estrada. Considera, assim, que a dimensão normativa apreciada e julgada inconstitucional pelo Acórdão n.º 275/2009 coincide com a aplicada pela sentença do tribunal a quo, pelo que se verificam os pressupostos de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LCT. De facto, a ratio decidendi de tal decisão assentou na norma julgada inconstitucional pelo Acórdão n.º 275/2009; foi determinante para a condenação levada a cabo pelo Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia o facto de o arguido se ter recusado a realizar teste de sangue como prevê o artigo 153.º, n.º 8 do Código da Estrada, cuja norma foi relevante para formulação do juízo de condenação do tribunal a quo. Trata-se de uma situação “em que o tribunal a quo acaba, em termos substanciais (…) por fazer inelutavelmente apelo ao regime jurídico da norma já inconstitucionalizada – não respeitando ou não tendo em conta o sentido e alcance do anterior juízo de inconstitucionalidade emitido pelo Tribunal Constitucional” (Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, 2010, p. 149). Conforme tem decidido o Tribunal, (Acórdãos n.º 357/2006 e n.º 502/2007):
“(…), a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem admitido recursos interpostos de sentenças de aplicação implícita de normas (vejam-se, entre outros, os Acórdãos nºs 187/98, 69/92 e 513/97). (…) Por outro lado, exige o nº 5 do artigo 280º da Constituição – replicado na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – que haja, neste tipo de recursos, identidade de conteúdos entre a norma que o tribunal a quo aplicou e aquela outra sobre a qual já incidiu um juízo de inconstitucionalidade (emitido, como já se disse, pelo Tribunal Constitucional em decisão concreta ou em declaração com força obrigatória geral)”.
A norma efectivamente aplicada pelo Tribunal a quo corresponde à norma julgada inconstitucional pelo Acórdão n.º 275/2009, pelo que se dão por verificados os requisitos de identidade exigidos pelo recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
3. Importa, finalmente, tratar da questão relativa à alegada inconstitucionalidade orgânica da norma em apreço, decorrente da conjugação do tipo genérico do crime de desobediência (alínea a) do n.º1 do artigo 348.º do Código Penal) com o n.º 3 do artigo 152.º e n.º 8 do artigo 153.º do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro.
A possibilidade de tipificação de um crime de desobediência encontra-se inscrita na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia de República (alínea c) do n.º 1 do artigo 165º, da Constituição). A Lei n.º 53/2004, de 04 de Novembro – que o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, expressamente invoca –, não autoriza o Governo a legislar especificamente sobre esse aspecto. De facto, o artigo 1.º da Lei concedeu autorização ao Governo para “proceder à revisão do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.ºs 2/98, de 3 de Janeiro, e 265-A/2001, de 28 de Setembro, e pela Lei n.º 20/2002, de 21 de Agosto, e ainda criar um regime especial de processo para as contra-ordenações emergentes de infracções ao Código da Estrada, seus regulamentos e legislação complementar”. Ora, analisado o artigo 3.º da Lei, e tendo em conta que “a extensão da autorização especifica quais os aspectos da disciplina jurídica da matéria em causa sobre que vão incidir as alterações a introduzir por força do exercício dos poderes delegados” (cf., entre outros, o Acórdão n.º 488/2009 e o Acórdão n.º 358/92), a verdade é que a tipificação de um crime de desobediência por recusa de sujeição a exames para efeitos de fiscalização da condução sob o efeito de álcool não se encontra aí mencionado. Assim, a norma agora apreciada não beneficia de qualquer autorização legislativa concedida pela Assembleia da República ao Governo.
Porém, de acordo com a jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional, essa não é, só por si, uma razão para optar pela inconstitucionalidade orgânica da norma. Com efeito, a falta de lei de autorização legislativa, em matéria de competência legislativa relativamente reservada da Assembleia da República, não obsta a que o Governo possa legislar, desde que a normação adoptada não se revista de conteúdo inovatório face à anteriormente vigente. Diz o Acórdão n.º 114/08:
“Com efeito, o Tribunal já por diversas vezes afirmou, em jurisprudência que remonta à Comissão Constitucional, que o facto de o Governo aprovar actos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República não determina, por si só e automaticamente, a invalidação das normas que assim decretem, por vício de inconstitucionalidade orgânica. Força é que se demonstre que as normas postas sob observação não criaram um regime jurídico materialmente diverso daquele que até essa nova normação vigorava, limitando-se a retomar e a reproduzir substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão de soberania competente (Cfr. os acórdãos n.ºs 502/97, 589/99, 377/02, 414/02, 450/02, 416/03, 340/05 estes tirados em Secção e publicados no Diário da República, II Série, de 4 de Novembro de 1998, de 20 de Março de 2000, de 14 de Fevereiro de 2002, de 17 de Dezembro de 2002, de 12 de Dezembro de 2002, de 6 de Abril de 2004 e de 29 de Julho de 2005, bem como o acórdão n.º 123/04 (Plenário) publicado no Diário da República, I Série-A, de 30 de Março de 2004. Cfr. ainda, aliás com posição discordante, a indicação de jorge miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo V, págs. 234/235).
Para tanto, para que essa intromissão formal em domínios de reserva relativa de competência parlamentar seja irrelevante, é necessário que se possa concluir pelo carácter não inovatório da normação suspeita. Não bastará a mera verificação da identidade textual dos dispositivos legais em sucessão, tendo também de ponderar-se os demais elementos de interpretação da lei, pois o mesmo texto, reproduzido em novo contexto, pode adquirir diverso conteúdo normativo.
Mas, adquirida a certeza do carácter materialmente não inovatório da norma editada pelo Governo, na perspectiva da distribuição constitucional de competências legislativas tutelada pela inconstitucionalidade orgânica, não se vê razão para a invalidade da norma. A opção política e a volição legislativa primária do parlamento materializadas em determinado acto legislativo da Assembleia da República ou parlamentarmente autorizado mantêm-se intocadas no ordenamento jurídico, apesar da recompilação no novo acto legislativo do Governo”.
De acordo com esta orientação, é necessário proceder a uma comparação entre a norma existente antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, e a que resulta da posterior vigência do referido diploma legal com o intuito de averiguar se existe ou não inovação normativa.
3.1. A norma que configura o tipo incriminador ora em apreço é obtida através da conjugação do tipo genérico do crime de desobediência [alínea a) do n.º 1 do artigo 348º, do Código Penal] com as seguintes disposições do Código da Estrada, segundo a redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 44/2005:
“Artigo 152º
Princípios gerais
(…)
3 – As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.
(…)
Artigo 153º
Fiscalização da condução sob influência de álcool
(…)
8 – Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.”
3.2. A versão originária do actual Código da Estrada (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 03 de Maio) determinava, no n.º 1 do artigo 158º, o dever legal de submissão a exames para detecção de possível intoxicação por parte de condutores e demais utentes da via pública quando intervenientes em acidente de trânsito. Contudo, a referida versão originária do Código da Estrada não estabelecia quaisquer sanções – penais ou de outra natureza – para os indivíduos que recusassem a realização dos referidos exames, limitando-se, por força do artigo 159º, a remeter o procedimento de fiscalização para legislação especial. Vigorava então o Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril, que fixava o regime jurídico aplicável à condução sob efeito de álcool, bem como o respectivo Decreto Regulamentar n.º 12/90, de 14 de Maio. O artigo 12º do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril de 1990, determinava o seguinte:
“Artigo 12º
Recusa a exames
1 – Todo o condutor que, ou pessoa que contribua para acidente de viação, que se recusar a exame de pesquisa de álcool será punido com pena de prisão até um ano ou multa até 200 dias.”
O referido Decreto-Lei n.º 124/90 foi precedido da necessária autorização legislativa, concedida pela Lei n.º 31/89, de 23 de Agosto, que, nos termos da alínea a) do artigo 2º, previa expressamente a possibilidade de o Governo criar tipos incriminadores relativamente à recusa de realização de exames para detecção de álcool no sangue.
3.3. Tal regime vigorou até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, que concentrou o regime jurídico primário da fiscalização da condução sob o efeito do álcool no próprio Código da Estrada (artigos 158º a 165º). O anterior tipo incriminador específico de recusa de submissão a exame para detecção de álcool no sangue foi substituído pelo tipo genérico de crime de desobediência, previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 348º do Código Penal, por força de expressa previsão do n.º 3 do (então) artigo 158º do Código da Estrada:
“Artigo 158º
Princípios gerais
(…)
3 – Quem recusar a submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas, para as quais não seja necessário o seu consentimento nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 159.º, é punido por desobediência.”
A referida norma encontrava-se autorizada pela Lei n.º 97/97, de 23 de Agosto, editada nos termos dos artigos 164º, alínea e), 168., n.º1 alíneas b), c) e d), e 169.º n.º 3 da Constituição nos seguintes termos:
“Artigo 3º
Fica ainda o Governo autorizado a estabelecer:
(…)
d) A punição como desobediência da recusa, por condutor ou outra pessoa interveniente em acidente de trânsito, em submeter-se aos exames legais para detecção de estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas, e ainda dos médicos ou paramédicos que, injustificadamente, se recusem a proceder às diligências previstas na lei para diagnosticar os referidos estados.”
Cometia o crime de desobediência aquele que recusasse submeter-se a exame para detecção de álcool no sangue, salvo quando fosse legalmente exigido o seu consentimento, designadamente, nos casos de contraprova, que dependia sempre de iniciativa do examinado (cfr. n.ºs 2 e 3 do artigo 159º da redacção então vigente do Código da Estrada).
3.4. Através de decreto-lei não autorizado (Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro), o Governo viria a alterar os elementos típicos do crime de desobediência, bem como a aditar um n.º 7 ao artigo 159º do Código da Estrada:
“Artigo 158º
1 – Devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas:
a) Os condutores;
b) Os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito;
c) As pessoas que se propuserem a iniciar a condução.
(…)
3 – As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou como psicotrópicas são punidas por desobediência.”
“Artigo 159º
Fiscalização da condução sob influência do álcool
(…)º
7 – Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se recusar, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.”
No Acórdão n.º 423/2006, o Tribunal foi chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade do artigo 158.º, n.º 3, tal como resultou da redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro. Reconheceu o Tribunal que:
“o tipo penal criado no ordenamento jurídico pela alteração assim introduzida no n.º 3 do artigo 158.º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-lei n.º 114/94 de 3 de Maio, subsistiu e manteve-se inalterado depois do Decreto-lei n.º 265-A/2001 de 28 de Setembro. Não existe, portanto, qualquer motivo que obrigasse o governo a munir-se de credencial parlamentar prévia para editar este último diploma ou para, na sequência da sua aprovação, proceder à republicação completa do Código da Estrada”.
3.5. Sucede que foi publicado, entretanto, mas em momento anterior ao da prática dos factos que deram origem aos presentes autos, o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, cuja aprovação por lei parlamentar (Lei n.º 18/2007) não pode deixar de ter relevo na apreciação da questão de inconstitucionalidade posta a este Tribunal, como já se concluiu nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 485/2010, 487/2010 e 28/11. Lê-se no primeiro:
«5. Este diploma [a Lei n.º 18/2007] visou revogar e substituir o Decreto-Regulamentar n.º 24/98, de 30 de Outubro, que regulamentava o regime jurídico da fiscalização da condução sob a influência do álcool e de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, que então constava do Código da Estrada com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, e, desse modo, toma implicitamente como base o novo regime legal que decorre das sucessivas alterações que foram introduzidas pelos diplomas legislativos posteriores, incluindo as resultantes dos Decretos-Lei n.º 265-A/2001 e n.º 44/2005.
Por outro lado, o novo Regulamento refere-se à «análise de sangue» como um dos métodos de detecção e quantificação da taxa de álcool (artigo 1º, n.º 2), e especifica que há lugar à realização daquele exame médico «[q]uando, após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste» (artigo 4º, n.º 1). Além de que assume ainda um carácter interpretativo relativamente às disposições do n.º 8 do artigo 153º e do n.º 3 do artigo 156º do Código da Estrada, ao estatuir no seu artigo 7º o seguinte:
«1- Para efeitos do disposto no n.º 8 do artigo 153º e no n.º 3 do artigo 156º do Código da Estrada, considera-se não ser possível a realização do exame de pesquisa de álcool no sangue quando, após repetidas tentativas, não se lograr retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente. […]
Deste modo, o legislador parlamentar esclarece que a impossibilidade de realização do exame de pesquisa de álcool no sangue se afere unicamente em função da impossibilidade médica de proceder à própria colheita de sangue em quantidade suficiente para permitir a sua análise, afastando a hipótese de o exame médico alternativo à colheita de sangue poder vir a ser efectuado com base na simples recusa do examinando, e dando, assim, implícita cobertura ao regime legal que decorre das disposições dos artigos 156º, n.º 2, e 153º, n.º 8, na redacção que lhes foi dada, respectivamente, pelos Decretos-Lei n.ºs 265º-A/2001 e 44/2005), editados pelo Governo sem prévia autorização legislativa.
À norma do artigo 7º da Lei n.º 18/2007 pode, por conseguinte, atribuir-se um efeito equivalente ao de uma lei interpretativa, nos termos do artigo 13º do Código Civil, embora se não possa considerar a retroacção de efeitos à data da entrada em vigor das normas legais interpretadas, em face do princípio da não retroactividade da lei penal, que impede que possam ser qualificadas como crime condutas que, no momento da sua prática, eram tidas como irrelevantes - artigo 29º, n.º 1, da CRP (cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1993, pág. 245).
Cabe ainda notar que o Tribunal Constitucional já considerou que a inconstitucionalidade orgânica não é pertinentemente invocável quando a Assembleia da República, em processo de apreciação parlamentar de decreto-lei, manifesta inequívoca vontade política de manter na ordem jurídica as normas organicamente inconstitucionais que foram submetidas à sua apreciação (acórdão n.º 415/89), ou, de outro modo, quando revela uma vontade positiva através da aprovação de alterações ao diploma ou rejeição de propostas de alteração relativamente às normas cuja inconstitucionalidade orgânica vem questionada (acórdão n.º 786/96).
No caso vertente, não estamos perante um processo legislativo específico de aprovação parlamentar de diplomas emanados do Governo, a que se refere o procedimento do artigo 169º da Constituição, pelo que não é directamente aplicável a referida jurisprudência constitucional. Mas, no presente contexto, não pode deixar de atribuir-se relevo à circunstância de a Assembleia da República, no uso da competência legislativa geral consagrada no artigo 161º, alínea c), da Constituição, ter regulado as matérias da fiscalização da condução sob a influência do álcool, que, nos termos do artigo 6º, n.º 1, do diploma preambular do Código da Estrada, se encontrava atribuído ao Governo.
Verificando-se, por outro lado, que o órgão parlamentar, através da emissão das referidas disposições dos artigos 4º e 7º do Regulamento aprovado pela Lei n.º 18/2007, veio consignar um regime jurídico consonante com a solução de direito que resultava já, segundo os critérios gerais da interpretação da lei, da referida disposição do artigo 156º, n.º 2, do CE, deixa de haver motivo para manter a arguição de inconstitucionalidade orgânica, até porque por efeito da intervenção parlamentar se operou a novação da respectiva fonte».
Reiterando este entendimento, não há que julgar organicamente inconstitucional a norma ora impugnada, retirada do artigo 348.º n.º 1 alínea a) do Código Penal, por referência ao artigo 152.º n.º 1 alínea a) e n.º 3 do Código da Estrada.
III. Decisão
4. Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 23 de Março de 2011.- Carlos Pamplona de Oliveira – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Rui Manuel Moura Ramos. Pelas razões constantes do acórdão n.º 423/06, citado no ponto3.4., ou seja não acompanhando o ponto 3.5..