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Proc. n.º 742/99 Plenário Conselheiro Sousa e Brito
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - O Provedor de Justiça, no exercício da competência prevista na alínea d) do nº 2 do artigo 281º da Constituição da República Portuguesa, pediu ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 6º, nº 2, alínea a) da Lei nº
144/99, de 31 de Agosto, na parte em que permite a extradição em casos em que seja aplicável a pena de morte ou de que resulte lesão irreversível da integridade física segundo o direito do Estado requisitante, por violação das normas contidas nos artigos 33º, nº 4, e 18º, nº 2, da Constituição.
Os fundamentos do pedido são os seguintes:
' 1º - A Lei 144/99, de 31 de Agosto, vem dispor sobre cooperação judiciária internacional em matéria penal, designadamente no seu título II em matéria de extradição.
2º - Embora não integrado nesse título, mas sim em sede de disposições gerais, no caso sobre requisitos negativos da cooperação internacional, vem o artº 6, nº
1, e), impor a recusa de cooperação, no caso vertente da extradição, quando 'o facto a que respeita for punível com pena de morte ou outra de que possa resultar lesão irreversível da integridade da pessoa'.
3º - No entanto, o mesmo artigo, no seu nº 2, a), esclarece que a mesma recusa não terá obrigatóriamente lugar, sendo permitida a cooperação-extradição, quando o Estado que formula o pedido assegurar, por acto com determinados requisitos, que a pena em causa tiver sido previamente comutada.
4º - A Constituição da República Portuguesa de 1976, no seguimento de tradição humanista secular no combate à pena de morte e no espírito de respeito e garantia dos direitos humanos, designadamente tal como consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, com total acolhimento no seu art.º 16º, nº 2, proibiu, desde a sua versão originária, a extradição quando estivesse em causa, segundo o direito do estado requisitante, a pena de morte (cfr. art.º 23º, nº 3, da versão de 1976, apenas alterado na sua numeração nas versões subsequentes até
1997, tendo sido incluído no catálogo dos direitos, liberdades e garantias na revisão de 1982).
5º - Antes de 1997 já era entendimento corrente que o teor do art.º 30º, nº 1, da Constituição vedava também a extradição que colocasse o extraditando em risco de sofrer a pena de prisão perpétua, admitindo-se, nos termos da lei, a extradição apenas quando houvesse garantias de que não seria juridicamente possível a sua aplicação (crf. Ac. do Tribunal Constitucional 474/95).
6º - Na versão actual da Constituição de 1976 o regime aplicável nesta matéria está bem explicitado, em números separados do art.º 33º, aplicando-se o seu nº 4
às situações de pena de morte ou de que resulte lesão irreversível da integridade física, determinando-se em definitivo a proibição da extradição, e o nº 5 às situações de prisão perpétua, proibindo-a também mas admitindo uma excepção em determinado condicionalismo.
7º - O art.º 6º, nº 2, a), da lei 144/99, de 31 de Agosto, faz no essencial tábua rasa dessa distinção constitucional, admitindo quer para uma quer para outra situação a possibilidade de extradição caso se verifique um condicionalismo correspondente ao previsto no art.º 33º, nº 5, já que a comutação prevista é, sem dúvida, uma das garantias acolhidas nesta norma.
8º - Se a comutação irrevogável é uma garantia especialmente reforçada, não deixa de o ser para os efeitos do art.º 33º, nº 5, da Constituição, desse valor específico nada se permitindo assegurar à sua compatibilidade com o nº 4.
9º - Note-se que os termos do art.º 33º, nº 5, da Constituição, são mais exactamente reproduzidos na alínea b) do nº 2 do art.º 6º da lei 144/99, tornando de algum modo inútil a parte da alínea a) que se refere à prisão perpétua, por constituir uma espécie dentro do género admitido pela norma constitucional citada.
10º - Poder-se-ia, falsamente, argumentar que o escopo do art.º 33º, nº 4, qual seja o da protecção da vida humana (aqui se abrangendo a integridade física face a irreversíveis e graves lesões) e da não aplicação efectiva da pena de morte, fica suficientemente protegido pela verificação dos requisitos previstos na lei, obedecendo assim aos termos do art.º 33º, nº 5, da Constituição, eventualmente de forma ligeiríssima mais reforçados.
11º - Não se crê, no entanto, ser essa a vontade da Constituição, todos os elementos de interpretação apontando no sentido contrário.
12º - Assim, o elemento literal aponta-nos para a necessidade de se dar utilidade à distinção feita na Lei Fundamental entre a previsão do nº 4 e a do nº 5 do art.º 33º, não sendo de presumir, muito pelo contrário, a identidade de regimes.
13º - No que ao elemento histórico diz respeito, conforme relatado pelo Dr. Marques Guedes, um dos intervenientes no processo de revisão constitucional por parte de um dos dois maiores partidos (cfr. Uma Constituição moderna para Portugal, pg. 90-91), é patente a evolução sofrida durante o último processo de revisão constitucional, intentando um dos partidos introduzir norma idêntica à agora acolhida na lei, uniformizando os regimes da pena de morte e da prisão perpétua, proposta essa que, apesar de acolhida inicialmente no acordo de revisão constitucional entre os dois maiores partidos, acabou por não fazer vencimento.
14º - No que ao elemento sistemático diz respeito, permito-me remeter para o que deixaram escrito Jorge Miranda e Miguel Pedrosa Machado, em 'O caso Varizo
(extradição e «non bis in idem»)', Direito e Justiça, volume IX, 1995, tomo 1, pg. 226 e seguintes, e o primeiro destes autores no seu Manual de Direito Constitucional, tomo IV, pg. 166 e segs.
15º- Finalmente, analisando a teleologia da distinção encontra-se um fundamento material para a não admissibilidade no caso do art.º 33º, nº 4, da excepção permitida no respectivo nº 5, sendo para o caso irrelevante a qualificação jurídica das garantias dadas pelo Estado requisitante.
16º - Refira-se ainda a circunstância não despicienda de se ter introduzido expressamente a possibilidade de condicionalismos na proibição de extradição em caso de prisão perpétua, mantendo-se o texto anterior quanto à pena de morte, assim se inculcando de modo mais expressivo a natureza absoluta da proibição actualmente constante do art.º 33º, nº 4 (cfr. Pedro Caeiro, 'Proibições constitucionais de extraditar em função da pena aplicável', Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8º, fasc. 1, Janeiro-Março 1998, pg. 23; ligando a proibição de extraditar à protecção absoluta da vida humana, cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed., pg. 211).
17º - A Constituição manifestamente não pretende permitir que a cidadãos estrangeiros que residam ou se encontrem em Portugal, ou mesmo cidadãos portugueses, no quadro do actual art.º 33º, nº 3, possa ser efectivamente aplicada a pena de morte ou de prisão perpétua.
18º - No caso da prisão perpétua a Constituição basta-se com a garantia, nos termos nela previstos, assumida pelo Estado requisitante em como não será aplicada. CAPut!'º - É certo, contudo, que o acto do Estado requisitante, valendo embora como um compromisso assumido perante o Estado português, pode sempre ser violado.
20º - Isto é também verdade quando se exige um acto irrevogável e vinculativo, sendo certo que essa irrevogabilidade e vinculatividade, em última instância dependerão sempre das condições específicas do ordenamento interno do Estado requisitantes, designadamente em sede de invalidade da deliberação revogatória e sua fiscalização, bem como das condições de facto inerentes à vida interna do próprio estado requisitante, propiciadoras ou não de um efectivo Estado de direito.
21º - E mesmo incorrendo o Estado infractor em responsabilidade internacional, não é menos certo que o cidadão extraditado se encontra sujeito ao seu jus imperii, podendo sofrer a pena que, lícita ou ilicitamente, esse estado decida infligir-lhe, sem que a protecção do Estado português lhe possa valer.
22º - É um risco que a Constituição se permite correr quanto à prisão perpétua mas já não quanto à pena de morte, inclusivamente pela natureza irreversível e irremediável da aplicação da mesma.
23º - O mesmo se diga face a lesões irreversíveis da integridade física.
24º - É este, sem dúvida, o sentido da distinção feita nos actuais nºs 4 e 5 do art.º 33º pela lei constitucional 1/97, e é esta importante distinção entre regimes que não é respeitada pela norma ora sindicada.
25º - Em sentido coincidente face a norma análoga, no domínio de versão anterior da Constituição mas sem que ocorram motivos que justifiquem outra conclusão, tem decidido já o Tribunal Constitucional (veja-se, por todos, o ac. 417/95), considerando a existência de garantias, por supostamente firmes que sejam, como irrelevantes para o texto constitucional que, como se viu, não foi alterado pela revisão de 1997.
26º - O mesmo tem sido defendido pela doutrina (cfr. Gomes Canotilho, anotação ao ac. do TC 474/95, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 128, nº 3857, pg. 250).
27º - Para além de assim contrariar o teor do art.º 33º, nº 4, pode-se entender como também violado o art.º 18º, nº 2, da Constituição, já que se intenta restringir uma garantia das compreendidas no título II da parte I da Constituição, sem que se possa incluir tal caso nos 'expressamente previstos' na Lei Fundamental.'
2 - O Presidente da Assembleia da República, na sua resposta, limita-se a oferecer o merecimento dos autos.
II - Fundamentos
3 - Importa identificar a norma que é objecto do pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. A Lei nº 144/99 regula a cooperação judiciária internacional em matéria penal, estabelecendo o artigo 6º desse diploma os 'requisitos gerais negativos da cooperação internacional'. Assim, na alínea e) do nº 1 desse artigo 6º determina-se que o pedido de cooperação é recusado quando 'o facto a que respeita for punível com pena de morte ou outra de que possa resultar lesão irreversível da integridade da pessoa'. Todavia, nos termos do preceituado na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 6º, o disposto na citada alínea e) do nº 1 não obsta à cooperação 'se o Estado que formula o pedido, por acto irrevogável e vinculativo para os seus tribunais ou outras entidades competentes para a execução da pena, tiver previamente comutado a pena de morte ou outra de que possa resultar lesão irreversível da integridade da pessoa ou tiver retirado carácter perpétuo ou duração indefinida à pena ou medida de segurança'.
É, pois, a norma que permite a extradição, em casos em que seja aplicável a pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade da pessoa, segundo o direito do estado requisitante, se se verificar a condição descrita nesta alínea a), que cumpre fiscalizar quanto à constitucionalidade.
No fundo, o pedido do Provedor de Justiça arranca do entendimento de que o artigo 33º, nº 4, da CRP, ao estipular que 'não é admitida a extradição
[...] por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física', pretendeu inviabilizar absolutamente a extradição desde que, no Estado requisitante, o crime a que ela respeita seja abstractamente punível com pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física. E isto independentemente de quaisquer circunstâncias que, no caso concreto, se traduzam na vinculação irrevogável dos tribunais e demais autoridades desse mesmo Estado requisitante, no sentido de não ser possível a aplicação da pena em causa.
4 - Antes da revisão constitucional de 1997, o nº 3 do artigo 33º da CRP estabelecia apenas que «não há extradição por crimes a que corresponda pena de morte segundo o direito do Estado requisitante».
Esta proibição constitucional interpretou-a sempre o Tribunal Constitucional como tendo o sentido de impedir a extradição quando uma das penas juridicamente susceptíveis de virem a ser aplicadas, no caso concreto, fosse a pena de morte.
A este propósito, escreveu-se no Acórdão nº 417/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31, 678), tirado em plenário:
'É que, o legislador constitucional quis de forma enfática afirmar que, desde que ao crime corresponda pena de morte segundo a lei incriminadora do Estado requerente, a extradição está peremptoriamente proibida. Por conseguinte, à luz do artigo 33º, nº 3, a extradição só é consentida quando, segundo o direito interno do Estado requerente, a pena susceptível de, em concreto, ser aplicada ou já aplicada ao caso não seja a pena de morte. Na verdade, só então não corre perigo o direito à vida do extraditando. Ora, o direito à vida é, justamente, o que se pretende tutelar com aquela proibição de extradição, cujo fundamento último é, como se viu já, a dignidade da pessoa humana em que assenta o Estado de direito democrático e que impõe se proíba a pena de morte. A expressão 'segundo o direito do Estado requisitante', usada no nº 3 do artigo
33º, tem, pois, de entender-se como sendo o direito internamente vinculante desse Estado, constituído, tão-só, pelo respectivo corpo de normas penais, de que conste a possibilidade abstracta da pena de morte, e por quaisquer mecanismos – e só eles – que se inscrevam vinculativamente no direito e processo criminais, ainda que decorrentes do direito constitucional ou do direito jurisprudencial do Estado requisitante, dos quais resulte que a pena de morte não será devida no caso concreto, porque nunca poderá ser aplicada (pense-se, como mera hipótese académica, em preceitos legais do tipo do artigo 16º, nºs 3 e
4, do nosso Código do Processo Penal vigente, concedendo ao Ministério Público a iniciativa, vinculativa para o juiz, e processualmente irreversível, de
'entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a três anos ou medida de segurança de internamento por mais do que esse tempo').' E, no Acórdão nº 474/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31, p.767), explicitou-se: Com efeito, da jurisprudência fixada no Acórdão nº 417/95, para o qual se remete, resulta que a norma em apreço só será inconstitucional na medida em que permite a extradição por casos em que a aplicação da pena de morte (ou de prisão perpétua), é legalmente possível, embora não previsível, designadamente em função das garantias transmitidas pelo Estado requerente; mas já não será inconstitucional na medida em que permite a extradição, se for certa a não aplicação dessas penas, não obstante elas serem em princípio aplicáveis ao caso, por tal já não ser juridicamente possível. A mesma doutrina foi aplicada nos Acórdãos nº 430/95 (inédito) e 449/95
(inédito) e novamente reafirmada, em fiscalização abstracta de constitucionalidade no acórdão nº 1146/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
35, pp. 69-71). O Tribunal interpretou, portanto, a expressão 'segundo o direito do Estado requisitante' num sentido concreto, como o direito interno aplicável ao caso concreto, e não num sentido abstracto, como a norma penal aplicável ao tipo de crime.
(Mas é claro que - seja dito entre parênteses - todo o direito interno aplicável em processo penal no caso concreto é ainda 'lei' e, nesse sentido, direito 'abstracto'. Quando o Tribunal Constitucional se refere, em
última análise, à 'impossibilidade jurídica' da aplicação da pena de morte, tem em vista a vinculação legal ou abstracta do juiz ou dos outros órgãos da aplicação do direito a não aplicar tal pena, dadas todas as circunstâncias legalmente relevantes, incluindo actos de amnistia, de perdão, de indulto, de comutação da pena, sentenças revogatórias ou substitutivas de pena passadas em julgado, actos irrevogáveis do juiz ou do Ministério Público que imponham limites legais à pena aplicável).
A referida jurisprudência sobre extradição do Tribunal, desenvolvida sobretudo a propósito de pedidos de extradição da República Popular da China, relativos a cidadãos chineses detidos em Macau, para serem julgados por crimes puníveis com pena de morte, foi estendida pelo Tribunal no caso Varizo a um pedido de extradição dos Estados Unidos da América, relativo a um crime punível com prisão perpétua (Acórdão nº 474/95 cit.).
5 - Será que a revisão constitucional de 1997 veio impor uma interpretação diferente da anteriormente seguida pelo Tribunal ?
O actual texto do nº 4 do artigo 33º, como resultou da revisão de
1997, reúne os anteriores nºs 2 ('Não é admitida a extradição por motivos políticos') e 3 ('Não há extradição por crimes a que corresponda pena de morte segundo o direito do Estado requisitante') do mesmo artigo, acrescentado às palavras 'pena de morte' a expressão 'ou outra de que resulte lesão irreversível de integridade física'. Assim se obteve o texto em vigor: 'Não é admitida a extradição por motivos políticos, nem por crimes e que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física'. A acrescentada referência a pena de que resulte lesão irreversível da integridade física só pode implicar que tal pena também está sujeita à mesma proibição de extradição que a pena de morte.
E é unicamente o que da letra deste preceito – tomado só por si – pode deduzir-se. Ou seja, que apenas se quis equiparar a pena de que resulte lesão irreversível de integridade física à pena de morte, para efeitos de extradição (equiparação que, quando muito, apenas seria então extensível a penas para que valesse a mesma razão de 'irreversibilidade', ocorrente naquelas, mas não a outras). Em qualquer caso, deste preceito, só por si, seguramente não resulta que se tenha querido afastar a interpretação do Tribunal quanto ao segmento' segundo o direito do Estado requisitante'.
6 - A revisão acrescentou, porém, um novo número 5, que expressamente se refere à extradição por crime, a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva de liberdade com caracter perpétuo ou de duração indefinida. Ela só é admitida 'em condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional e desde que o Estado requisitante ofereça garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada'.
Ora se esta palavra 'ou' significar aqui 'nem', implicando que as simples garantias de não execução são insuficientes, por ter que estar igualmente garantida a não aplicação, e se, além disso, se entender que garantias suficientes são apenas as juridicamente vinculantes na ordem interna, então o nº 5 teria no essencial consagrado na Constituição a interpretação que o requerente atribui à jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a inadmissibilidade de extradição por penas perpétuas. Mas então - é esta a lógica do requerimento inicial - o segmento 'segundo o direito do Estado requisitante' deveria interpretar-se no sentido abstracto de lei penal aplicável ao tipo de crime, o que se reflectiria, em termos idênticos, sobre o sentido da mesma expressão no nº 4. A proibição da extradição do nº 4 sairia assim reforçada, sob pena de identidade de regimes com o nº 5, abrangendo todos os Estados em que para o tipo de crime estivesse estatuída a pena de morte ou a de que resulte lesão irreversível da integridade física. Estaria aqui a proibição 'absoluta' da pena de morte a que se refere o Provedor de Justiça, que desenha nas suas linhas essenciais o argumento anterior.
Tal interpretação, no entanto, contraria frontalmente – como se verá
– o elemento histórico e, o que é mais, não se coaduna com a verdadeira teleologia dos dois preceitos.
7 – Desde logo, importa lembrar que a bondade da equiparação pelo Tribunal Constitucional da pena de prisão perpétua à pena de morte, para efeitos de extradição, não deixou de ser questionada. Por outro lado, e também (se não sobretudo) por isso, durante o processo que conduziu à revisão constitucional de 1997, a matéria atinente à extradição foi das que mereceram debate mais prolongado. No Projecto da Revisão Constitucional nº 3/VII do Partido Socialista acrescentava-se à pena de morte, no nº 2 do artigo 33º, a 'pena cruel, degradante ou desumana' (Assembleia da República. Revisão Constitucional Apresentação Comparada dos Projectos de Revisão), Abril 1996, p.103). No Projecto de Revisão Constitucional nº 4/VII do PCP à pena de morte acrescentava-se a 'pena ou medida de segurança privativa ou restritiva de liberdade de caracter perpétuo ou duração ilimitada ou indefinida, ou qualquer outra pena que viole o direito à integridade moral e física das pessoas' Mas já o 'Acordo Político da Revisão Constitucional' (que veio a ser determinante desta) celebrado entre o Partido Socialista e o Partido Social Democrata, e subscrito pelos presidentes dos respectivos grupos parlamentares incluia o seguinte (cfr. José Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional, Lisboa, Editorial Notícias, 1999, p. 212): 'mantendo a regra segundo a qual não há extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou pena ou medida de segurança privativa de liberdade com carácter perpétuo, considera-se que a mesma deve poder ser admitida, a título excepcional, se ao Estado português forem dadas garantias consideradas suficientes de que a pena ou a medida de segurança será comutada, substituída por outra de duração limitada ou por qualquer outra forma não executada.' E posteriormente, na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional foi apresentada uma proposta pelos deputados José Magalhães e António Reis segundo a qual 'Não há extradição por crimes a que corresponda pena de morte, prisão perpétua ou outra pena cruel, degradante ou desumana, segundo o direito do Estado requisitante, salvo se este der ao Estado português garantias suficientes de que a pena será comutada, ou substituída por outra de duração limitada ou, por qualquer forma, não executada' (cfr. intervenção de José Magalhães na reunião de 29 de Abril de 1997, em José de Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional em CD-Rom, Lisboa, Editorial Notícias, 1999).
A reacção ao mencionado acordo, que, pelo seu teor, permitia a extradição por crimes puníveis no Estado requisitante com pena de morte, desde que fossem concedidas garantias políticas ou diplomáticas da sua não aplicação, não terá sido pacífica, como resulta do testemunho de alguns dos intervenientes no processo (cfr. Luís Marques Guedes, Uma Constituição Moderna para Portugal, Grupo Parlamentar do PSD, 1997, pp. 90-91; Jorge Lacão, Constituição da República Portuguesa, Lisboa, Texto Editora, 1997, pp. 102; José Magalhães, ob. cit., pp. 118-120), e se confirma pelos debates na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional. Nomeadamente, de entre os deputados dos partidos subscritores do acordo, tanto o presidente da Comissão, Vital Moreira, do PS, como o deputado Barbosa de Melo, do PSD, criticaram expressamente este ponto do acordo na reunião de 12 de Setembro de 1997, defendendo que a pena perpétua não deve equiparar-se à pena de morte e que deve manter-se o disposto na Constituição quanto a esta última, segundo a interpretação do Tribunal Constitucional (apud José de Magalhães, CD Rom).
8 - Entretanto, da análise das audições parlamentares resulta, sem qualquer margem de dúvida, que um dos objectivos que o Governo gostaria que viesse a ser alcançado era o de se flexibilizar a possibilidade de extradição, desde que fossem prestadas garantias – designadamente políticas ou diplomáticas – tidas por suficientes, quando ao crime correspondesse abstractamente quer a prisão perpétua quer a pena de morte. É emblemático, neste sentido, o que foi dito pelo Ministro da Justiça na reunião de 29 de Abril de 1997: 'Mas se, para a prisão perpétua, vamos exigir garantias, boas garantias, sérias garantias, vindas de Estados sérios, então porque não aceitá-las também para o caso da pena de morte, a fim de ficarmos seguros e garantidos de que a pena de morte não será aplicada?' (apud José de Magalhães, CD Rom). E o deputado Luis Marques Guedes relatou na mesma reunião da Comissão que a uma anterior diligência do PSD, depois de terminadas as conversações do Acordo e antes de assinado formalmente, no sentido de o Governo e o Partido Socialista reponderarem a questão quanto à pena de morte, o Ministro da Presidência e da Defesa respondeu 'que não, que a questão deveria ser mantida' (ibidem).
Também se depreende das audições que a alteração constitucional era desejada pelo Governo como forma de superar as dificuldades que, segundo a sua interpretação, a jurisprudência do Tribunal Constitucional levantava à cooperação internacional do Estado em matéria criminal. O Ministro da Justiça referiu perante a Comissão Eventual para a Revisão Constitucional a jurisprudência constitucional no caso Varizo (Acórdão nº 474/95) como estando na origem da dúvida sobre se Portugal, face à jurisprudência do Tribunal Constitucional, estaria em condições de cumprir a Convenção de Aplicação de Schengen. Com efeito, no caso de um cidadão jugoslavo que foi condenado na Alemanha a uma pena de prisão perpétua e que, meses depois, foi encontrado em Portugal, não lhe foi concedida a extradição por um acórdão da Relação de Lisboa, o qual, para o efeito, invocou a doutrina do Tribunal Constitucional, acabando o extraditando por ser solto. Em consequência, os outros Estados contratantes da Convenção de Aplicação de Schengen terão pedido a Portugal uma declaração adicional, que foi feita, no sentido de que 'Portugal reitera a validade dos compromissos subscritos nos acordos internacionais a que está vinculado e, em particular, com base no artigo 5º da Convenção de Adesão de Portugal à Convenção de Aplicação de Schengen'. Em consequência da doutrina do Tribunal Constitucional, segundo a mesma comunicação do Ministro da Justiça, Portugal teria finalmente feito a seguinte declaração depois anexa à Convenção Estabelecida com base no Artigo K.3 do Tratado da União Europeia, Relativa à Extradição entre os Estados Membros da União Europeia, também chamada Convenção de Dublin:
'Tendo formulado uma reserva à Convenção Europeia de Extradição de 1957, segundo a qual não concederá a extradição de pessoas reclamadas por um crime a que corresponda uma pena ou uma medida de segurança com carácter perpétuo, Portugal declara que, nos casos em que o pedido de extradição se baseie numa infracção a que corresponda tal pena ou medida de segurança, apenas concederá a extradição, respeitadas as disposições pertinentes da sua Constituição, conforme interpretadas pelo seu Tribunal Constitucional, se considerar suficientes as garantias prestadas pelo Estado membro requerente de que aplicará, de acordo com a sua legislação e a sua prática em matéria de execução de penas, as medidas de alteração de que a pessoa reclamada possa beneficiar. Portugal reitera a validade dos compromissos subscritos nos acordos internacionais a que está vinculado e, em particular, com base no artigo 5º da Convenção de Adesão de Portugal à Convenção de Aplicação de Schengen' (segundo a ulterior publicação no Diário da República, I série-A, de 5-9-1998, p. 4663).
Estas declarações, contudo, não afastariam, segundo o Ministro da Justiça, a dificuldade de cumprir a Convenção de Aplicação de Schengen, 'se esta interpretação do Tribunal Constitucional se mantiver'.
Na mesma sessão o Procurador-Geral da República relatou que em Agosto de 1996 tinha proposto ao Ministro da Justiça uma alteração da Constituição, por lhe parecer 'que não haveria perspectivas de uma solução da jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido de admitir a extradição nos casos de aplicação da prisão perpétua', 'tanto mais que essa jurisprudência foi seguida pelo Supremo Tribunal da Justiça e, em grande parte, pelas Relações'. No seu pensamento, essa alteração deveria ser no sentido de que 'seja prevista a possibilidade de extraditar, mesmo nos casos em que é possível a aplicação da prisão perpétua, se o Estado requisitante der garantias consideradas suficientes de que não será aplicada na prática, ou será, enfim, alterada, modificada ou comutada a prisão perpétua noutro tipo de pena'. (José Magalhães, CD Rom cit.). Já quanto à pena de morte, o Procurador Geral da República pronunciou-se pela não alteração da Constituição: 'Sobre esse ponto não tomei qualquer iniciativa e não tenho qualquer rebuço em dizer que penso que a questão é totalmente diferente. Temos um património histórico e cultural que temos de preservar. Fomos os primeiros países a abolir a pena de morte, a qual não é aplicada em Portugal para crimes políticos desde 1834, embora só abolida em 1852, e para os crimes comuns em 67. Por isso, parecer-me-ia, de facto, um mau contributo, não só para a formação da opinião pública internacional como para o próprio património europeu, se Portugal, neste momento, recuasse nesse ponto' (ibidem). Enfim, o Ministro da Presidência e da Defesa disse que a alteração se propunha
'por contraponto com uma interpretação do Tribunal Constitucional'. Nas suas próprias palavras: 'há uma interpretação do Tribunal Constitucional que, pelos vistos e no entendimento de uma maioria especialmente qualificada da Assembleia da República, vai para além daquilo que é a interpretação que deveria ser consagrada no texto constitucional. E a alteração da Constituição, por contraponto com uma interpretação constitucional, não é um factor de crise, antes pelo contrário, é um factor de vitalidade do sistema político-constitucional. É exactamente assim que as coisas se devem fazer. Por outro lado, acho que nos devemos orgulhar pelo facto de termos uma democracia consolidada onde esse diálogo entre os poderes do Estado existe e onde é possível que cada um assuma a sua responsabilidade. Nem cabe à Assembleia da República pedir ao Tribunal Constitucional que assuma a responsabilidade de fazer leituras correctivas da Constituição, nem cabe também ao Tribunal Constitucional nenhum poder de se sobrepor à interpretação do que é o sentido do programa normativo constitucional, o que cabe, em exclusivo, à Assembleia da República.' (José Magalhães, CD Rom. cit.). Destas audições resulta claramente que o Governo desejava alterar a Constituição de modo a fazer alterar, por consequência, a jurisprudência do Tribunal Constitucional quanto à extradição, quer por crimes puníveis com penas de morte, quer por crimes puníveis com prisão perpétua, jurisprudência que era uniforme quanto às duas espécies de pena. No entanto, as dificuldades alegadas quanto ao cumprimento de compromissos internacionais relativos à extradição diziam exclusivamente respeito à prisão perpétua e aos acordos celebrados no âmbito da União Europeia. O mesmo é confirmado pelas referências do Procurador Geral da República a essas mesmas dificuldades nas suas declarações perante a Comissão
(José Magalhães, CD Rom, cit.). Explica-se assim – e face às já aludidas reacções que o 'Acordo Político' para a revisão constitucional, celebrado entre o PS e o PSD, suscitara, no tocante à matéria da extradição – que a discussão na Comissão se tenha encaminhado para uma separação das propostas sobre a extradição em caso de pena de morte e em caso de prisão perpétua, acabando o PS e o PSD por apresentarem à votação do plenário a proposta 88-P com os actuais nºs 4 e 5 do artigo 33º da Constituição. Na discussão no Plenário da Assembleia da República desta prosposta os deputados Barbosa de Melo, pelo PSD, e José Magalhães, pelo PS, foram neste ponto perfeitamente claros e coincidentes: 'Quanto à pena de morte, disse o deputado Barbosa de Melo: 'sendo caso de pena de morte ou pena que importe lesão irreversível da integridade física entre elas a amputação ... ninguém é extraditado, seja português, seja estrangeiro' (Diário da Assembleia da República, I série, 23 de Julho de 1997, p. 3646). Nas palavras do deputado José Magalhães, em matéria de pena de morte, houve uma 'não alteração', 'pelo que se deixa imprejudicada a jurisprudência do Tribunal Constitucional neste ponto, com o exacto âmbito que ela tem, nem mais nem menos' (ibidem). Quanto à pena de prisão perpétua, 'houve - segundo o deputado Barbosa de Melo - uma generosidade excessiva por parte do nosso Tribunal Constitucional, que, a partir de uma proibição, a de que não há extradição em caso de pena de morte, por um excesso de «escuteirismo», e acabou por identificar à pena de morte outras penas, nomeadamente a prisão perpétua... O Tribunal Constitucional foi longe de mais e agora fica claro que ... nos outros casos, em que sejam aplicáveis penas de duração indefinida ou que envolvam a perda de liberdade com carácter perpétuo, poderá haver extradição se o Estado requisitante der garantias consideradas suficientes de que esta pena, que na nossa cultura é um tanto desumana, não será aplicada' (ibidem). Segundo o deputado José Magalhães 'corrige-se no nº 5 deste artigo a jurisprudência do Tribunal Constitucional em vários pontos, desde logo porque esta estendeu às penas de prisão perpétua o que a Constituição aplicava tão-só à pena de morte ... só é admitida a extradição, quando o direito do Estado requisitante preveja pena ou medida de segurança privativa ou restritiva de liberdade com carácter perpétuo ou duração indefinida em determinada condições, que nos parecem, francamente cautelares e satisfatórias' (p. 3647). Logo por aqui, pois, se afigura claro que o legislador constituinte não quis alterar a doutrina do Tribunal Constitucional relativa à extradição por crimes a que seja aplicável pena de morte e quis criar direito constitucional diferente mais permissivo para a extradição por crimes a que seja aplicável pena ou medida de segurança de carácter perpétuo. Uma vez, porém, que a argumentação do Provedor de Justiça parte de uma certa interpretação da proibição constitucional de extradição por estes últimos crimes para chegar à sua tese sobre o alcance da proibição de extradição por crimes puníveis com pena de morte, há que – para confirmar o resultado a que acabou de chegar-se – apurar precisa e 'positivamente' qual o sentido da alteração constitucional, quanto àqueles crimes (a que seja aplicável pena ou medida de segurança de carácter perpétuo).
9 - Importa, antes de mais, recordar a doutrina do Tribunal Constitucional sobre a extradição, que os constituintes quiseram afastar quanto aos crimes puníveis com prisão perpétua. No acórdão nº 474/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
31, p. 759 ss.) sobre o caso Varizo, que foi o exemplum crucis recorrentemente citado durante a revisão, o Tribunal considerou inconstitucional - por violação do preceituado no artigo 30º, nº 1 da Constituição - a norma da alínea e) do nº
1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 43/91, «quando interpretada de modo a não proibir a extradição por casos em que seja juridicamente possível a aplicação da pena de prisão perpétua, embora não seja previsível a sua aplicação, por terem sido dadas garantias nesse sentido pelo Estado requisitante'. Para concluir que a norma sub judice fora aplicada no caso Varizo na interpretação julgada inconstitucional o Tribunal considerou :
'se resulta dos autos que o gabinete do Procurador [do Estado de Nova Iorque]
«não tenciona interpor recurso da decisão proferida na ordem» que manda julgar o extraditando por crime punível apenas com multa e prisão até 20 anos, a verdade
é que já não resulta dos autos que um tal recurso não seja juridicamente possível e admissível. Bem pelo contrário, deles resulta a possibilidade legal - embora, de facto, improvável - da impugnação judicial dessa ordem, e, portanto, a sua não definitividade. Por outro lado, se resulta igualmente dos autos que não é habitual a aplicação da pena de prisão perpétua em circunstâncias idênticas à do presente processo, não tendo, aliás, a mesma pena sido aplicada a co-arguidos do ora recorrente, já dos mesmos não resulta que uma tal aplicação seja juridicamente vedada, apesar da ordem de julgamento entretanto emitida. De facto, a entidade requerente não fez prova - como lhe cumpria - que a mencionada ordem do juiz tenha fixado, em termos definitivos e irrevogáveis, os limites máximos da pena aplicável pelo juiz, no julgamento. Assim sendo, não se pode afirmar que ao crime não corresponde a pena de prisão perpétua, «segundo o direito do Estado requisitante», atribuindo-se a esta
última expressão o sentido que lhe foi fixado no já citado Acórdão nº 417/95.'
(p. 768). O acórdão 474/95 considerou assim aplicáveis a crimes abstractamente puníveis com pena de prisão perpétua os mesmos critérios da admissibilidade de extradição que foram definidos para a pena de morte no acórdão 417/95 e que atrás (supra nº
4) se transcreveram. O fundamento axiológico da proibição de prisão perpétua do nº 1 do artigo 30º da Constituição foi assim descrito no acórdão:
'tendo sido a prisão perpétua abolida em Portugal há mais de cem anos, pela Lei de 4 de Junho de 1884, encontra-se a mesma proscrita pela Constituição da República em virtude de a sua aplicação repugnar à consciência jurídica que enforma o nosso ordenamento, tendo em conta a prevalência da dignidade da pessoa humana e do seu reflexo na ponderação dos fins das penas, onde necessariamente avulta a recuperação e a reintegração social do delinquente'. (p.768-9).
10 - Foi este entendimento do Tribunal Constitucional (quanto aos crimes puníveis com prisão perpétua) que, com bons ou maus fundamentos, os constituintes quiseram afastar, através da alteração da Constituição. Para saber em que medida, ou em que sentido, o fizeram, importa averiguar o elemento histórico da interpretação, mas também e sobretudo o sistema e a lógica da Constituição.
A forma encontrada para consagrar um regime especial de extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena ou medida de segurança privativa da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida foi permitir excepcionalmente a extradição mediante 'reciprocidade' e
'garantias'. Ora, ouvido na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, o Presidente do Tribunal Constitucional recordou que segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional a nossa Constituição, no texto anterior à revisão 'não consente a extradição por crimes a que corresponda pena de morte ou pena de prisão de carácter perpétuo, com base unicamente numa garantia diplomática ou política do Estado requisitante'; e daí derivou que 'a alteração do nº 3 do artigo 33º só pode significar que vão ser possíveis garantias de tipo diplomático porque, quanto às garantias jurisdicionais, já a suficiência delas resulta da jurisprudência do Tribunal Constitucional. Quanto a essas, não há dúvida alguma, se houver uma sentença judicial ou um despacho do juiz, irrevogáveis, que, antecipadamente, comutem a pena do acusado. Ou até, por exemplo, se num qualquer Estado existir um mecanismo semelhante ao do artigo 16º, nº 3, do Código Penal, que permite ao Ministério Público propor a pena até um certo máximo e modifica a competência do Tribunal – e essa é uma decisão irrevogável -, de maneira que a condenação não pode ultrapassar... Bom, garantias dessas, já o Tribunal as considera suficientes. Portanto, a abertura às garantias há-de, naturalmente, entender-se como uma abertura às garantias de tipo diplomático. Sobre o nível em que as mesmas garantias se devem colocar, aí é que há, de facto, gradações possíveis. Porventura, uma garantia diplomática, expressa na forma de uma mera declaração unilateral, é provavelmente, diferente de uma garantia dada pelo Estado, no quadro de uma convenção multilateral, em que há uma assunção recíproca de direitos e deveres nesta matéria' (José Magalhães, CD Rom,cit.). A propósito deste último ponto, o Presidente do Tribunal Constitucional recordou ainda um caso, de que o Tribunal Constitucional não conheceu por razões processuais, e em que um cidadão italiano 'foi extraditado com base na prática de um crime para o qual não estava prevista pena de prisão perpétua e veio, depois, pedir a revisão da sentença de extradição porque, entretanto, tinha sido pronunciado em Itália pela prática de um crime a que correspondia pena de prisão perpétua e quis evitar a extradição com esta circunstância. Porém, o Supremo Tribunal de Justiça não lhe concedeu a revisão porque, de acordo com a convenção subscrita por Portugal e pela Itália, a extradição só pode ter efeito para aquele crime, para o crime pelo qual foi concedida a extradição' (ibidem). Do exposto resulta que as garantias diplomáticas a que se referiu incluiam as dadas no âmbito de uma convenção internacional, ou as garantias inerentes à mesma (no caso a Convenção Europeia de Extradição), e que obrigam juridicamente o Estado requisitante do ponto de vista do direito internacional público. Do debate na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional não se obtêm mais esclarecimentos sobre estes pontos, uma vez que nenhuns comentários houve às palavras transcritas do Presidente do Tribunal Constitucional. No debate em plenário antes da votação, o deputado Barbosa de Melo, falando em nome do PSD, um dos partidos proponentes do texto do actual nº 5 do artigo 33º, apenas disse quanto às garantias consideradas suficientes que 'mais uma vez, fica devolvida à jurisprudência uma longa e rigorosa tarefa de integração neste domínio' (Diário da Assembleia da República, I série, 23 de Julho de 1997, p. 3646). Seja como for, e embora a intervenção do Presidente do Tribunal Constitucional tenha tido lugar antes da apresentação da proposta que resultou no actual texto do nº 5 do artigo 33º, ela permite iluminar (justamente por isso) o alcance deste último.
É que, tendo a Comissão de Revisão Constitucional ficado perfeitamente inteirada, com tal intervenção, do sentido da jurisprudência do Tribunal Constitucional, e havendo-se posto em evidência, na mesma intervenção, a possibilidade de outro tipo de garantias (para além das já havidas como suficientes por aquela jurisprudência), é mais do que legítimo concluir ter desejado a Comissão reportar-se (no nº 5 do artigo 33º) justamente a esse outro tipo de garantias – e nomeadamente às garantias 'convencionais' de não aplicação de uma pena que é devida segundo o direito interno do Estado requisitante
(postas especialmente em realce na aludida intervenção do Presidente deste Tribunal).
Torna-se nítido, assim, que a permissão do nº 5 claramente excede a anterior doutrina do Tribunal; e que tal ocorre quando admite que as garantias sejam apenas de direito internacional público e relativas à mera não execução da pena, mesmo em casos onde esta ainda pode ser aplicada pelos tribunais. Tais serão as garantias anteriores à condenação relativas à aplicação de medidas que pressupõem uma prévia condenação, como sejam o indulto, o perdão, a comutação de pena, a amnistia e análogas medidas de clemência que, por definição, não são obrigatórias do ponto de vista do direito interno, isto é, não são juridicamente decretáveis pelos tribunais, embora possam ser prometidas e devidas a um Estado estrangeiro e, uma vez decretadas, sejam juridicamente vinculantes para os tribunais. As garantias diplomáticas de tais medidas são garantias de direito internacional público - e nesse sentido não são meramente políticas -, mas não são garantias de direito interno imediatamente vinculantes para os tribunais. Não há dúvidas de que o legislador constituinte quis admitir as garantias de mera não execução quanto à pena ou medida de segurança privativa ou restritiva de liberdade de carácter perpétuo ou de duração indefinida. A redacção originária da cláusula, no 'Acordo' de revisão constitucional PS/PSD, independentemente da diferença inicial de escopo, quanto ao seu âmbito de aplicação, referia-se exclusivamente à não execução ('ou de qualquer outra forma não executada') e assim também a redacção intercalar da mesma cláusula que foi discutida na Comissão Eventual de Revisão Constitucional (supra nº 7). Na discussão em Plenário, o deputado Barbosa e Melo, centrou na inaceitabilidade da mera garantia de não execução no caso de pena de morte a diferença essencial relativamente à proposta inicial do Acordo PS-PSD na primeira leitura (Diário da Assembleia da República, I - série, 23 de Julho de 1997, p. 3645). Pelo que respeita, entretanto, à exigência de 'reciprocidade' – também feita no nº 5 do artigo 33º – não pode ter o sentido de reciprocidade nas condições de extradição por pena ou medida perpétua, pois tal não existe na ordem jurídica portuguesa. Há, pois, que entender que a exigência se reflecte sobre as garantias consideradas suficientes, uma vez que estas terão que ser vinculativas por força de uma convenção ou acordo internacional. Tal parece ser o entendimento de um dos deputados interventores na negociação do acordo entre o PS e o PSD, Luis Marques Guedes, segundo o qual o nº 5 visa 'ao mesmo tempo que se abre a porta a conversações internacionais no plano da cooperação judiciária, fazer acrescer a garantia suplementar de que não poderá haver extradição para crimes a que possam corresponder penas de carácter perpétuo ou de duração indefinida, exigindo-se sempre o compromisso convencionado de que tal não ocorrerá' (Uma Constituição para Portugal, cit., p.90). Em suma: o que o Tribunal declarou com força obrigatória geral no Acórdão nº
1146/96 foi que era inaceitável, para o efeito de permitir a extradição, uma garantia da substituição da pena de morte - e mais geralmente, poderia interpretar-se, uma garantia da sua não execução -, se esta garantia não fosse, segundo o ordenamento penal e processual penal do Estado requerente, juridicamente vinculante para os respectivos tribunais. E estendeu essa doutrina no caso Varizo (Acórdão nº 474/95) à extradição por crimes puníveis com prisão perpétua. Foi esta extensão que se pretendeu reverter na revisão constitucional de 1997, com o novo nº 5 do artigo 33º. Ao invés do argumento do Provedor de Justiça, o argumento sistemático que aqui vale é, pois, de sentido contrário: se não tivessem passado a ser permitidas garantias de não execução da prisão perpétua que não são desde logo vinculantes para os tribunais do Estado requerente, mas que apenas vinculam pelo direito internacional as autoridades desse Estado com poderes de clemência penal, não haveria diferença da anterior doutrina do Tribunal Constitucional. Muito mais há ainda que interpretar acerca do nº 5 do artigo, nomeadamente quanto à natureza e suficiência das garantias, mas não é indispensável para responder ao Provedor de Justiça.
11 - Resta demonstrar que a interpretação feita do artigo 33º da Constituição não só é a única que faz jus ao elemento histórico da interpretação, como também se integra adequadamente no espírito e no sistema da Constituição. Há que partir interpretativamente da proibição da extradição que se deriva a contrario da permissão excepcional do nº 5 do artigo 33º para averiguar o seu fundamento e, a partir deste, determinar o seu alcance. Ora, o fundamento desta proibição de extradição é a garantia individual de não haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida (nº 1 do artigo 30º da Constituição), que se entende integrar a ordem pública internacional do Estado português. A única maneira de evitar a sua total denegação por parte de Estados que prevêm genericamente tais penas ou medidas na sua legislação para factos praticados por certas pessoas é recusar a extradição dessas pessoas, se não houver garantia de não execução. Qual o exacto alcance desta garantia ? Para responder há que remontar ao próprio fundamento constitucional da garantia, que como vimos (supra, nº 9) o Acórdão nº 474/95 situou na 'prevalência da dignidade da pessoa humana e do seu reflexo na produção dos fins das penas, onde necessariamente avulta a recuperação e a reintegração social do delinquente' e o Tribunal Constitucional Federal alemão (BVerfGE, 45, 187 [245]) encontra na protecção da dignidade humana e no princípio do Estado de direito. Dir-se-á, com este último Tribunal (ibidem), que 'o núcleo da dignidade humana é atingido quando o condenado, sem atender ao desenvolvimento da sua personalidade, tem de abandonar a esperança de voltar a obter a sua liberdade'. Tendo em conta o modo como a Constituição Portuguesa desenvolve, através do reconhecimento de direitos pessoais, a protecção da dignidade da pessoa humana, as penas ou medidas de segurança privativas de liberdade perpétuas ou de duração ilimitada ou indefinida atacam a integridade moral da pessoa, que a Constituição considera
'inviolável' (nº 1 do artigo 25º). Por palavras mais expressivas, quebram a espinha do delinquente. Ora tais penas estão, por isso, expressamente proibidas no nº 2 do artigo 25º da Constituição como 'desumanas', e o mesmo vale para medidas análogas. Por outro lado, os fins das penas articulam-se com a dignidade da pessoa humana e com o princípio do Estado de direito, tal como ele se concretiza na Constituição portuguesa. A dignidade da pessoa não é respeitada se ela não é tratada como livre e, por isso, susceptível de culpa (artigo 1º da Constituição). Ora a pena perpétua é uma pena fixa, que não pode variar segundo a medida da culpa. As únicas variações que admite são indirectas, através da substituição por outra pena, ou através do regime da sua execução. A pena perpétua é sempre imperfeitamente retributiva, pelo que haveria que demonstrar a necessidade (face ao princípio geral do artigo 18º, nº 2 da Constituição) dessa limitação ao princípio da culpa. Ora a prisão perpétua é constitucionalmente tida por desnecessária do ponto de vista da prevenção geral. Desde que a Lei de
1 de Julho de 1867 aboliu a pena de prisão maior perpétua (artigo 6º) que não existe tal pena em Portugal e nada indica que isso tenha prejudicado no mínimo a prevenção geral dos crimes mais graves (note-se que na Alemanha se invoca o exemplo de Portugal para defender a sua desnecessidade e consequente abolição: assim Eberhard Schmidhäuser, Strafrecht. Allgemeiner Teil. Lehrbuch, 2ª ed., Tübingen, Mohr, 1975, p. 761). Ora penas e medidas de segurança desnecessárias são ofensas de direitos fundamentais proibidas pelo nº 2 do artigo 18º da Constituição. Finalmente, a pena perpétua tira todo o sentido racional que deve ter a execução de qualquer pena ou medida de segurança. A recuperação do delinquente é uma obrigação do Estado na medida do possível (artigos 1º, 2º e
18º da Constituição) e a Constituição, independentemente da questão filosófica do livre arbítrio e do determinismo, obriga as entidades públicas e privadas a tratarem as pessoas como livres (artigos 1º e 27º da Constituição) e, portanto, susceptíveis de escolherem o bem e de se recuperarem para a sociedade, se é caso disso. Resta, então, saber se outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, e nomeadamente o interesse na cooperação internacional na repressão e prevenção da criminalidade mais grave, para defesa dos bens jurídicos por ela ameaçados, podem justificar os limites à garantia de não ser sujeito a pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indeterminada, que resultam da permissão constitucional de extradição por crimes assim sancionados, com base em meras garantias de inexecução não juridicamente vinculantes do ponto de vista do direito interno do Estado requisitante. Trata-se aqui de um género de limites que existem qualquer seja o modo de definição de um direito na Constituição, porque resultam simplesmente da existência de outros direitos ou bases, igualmente reconhecidos na Constituição e que em certas circunstâncias com eles conflituam (cfr. o Acórdão nº 254/99, Diário da República, II-série, 25.6.1999, p.8590). Tudo depende da necessidade e da proporcionalidade do limite ou restrição. Ora no caso da extradição em que há garantia de não execução da pena ou medida de segurança de carácter perpétuo ou de duração indefinida trata-se de uma restrição ainda admissível, pois que não é tocada a substância do bem jurídico ou constitucional que o direito fundamental visa proteger. Não deve, assim considerar-se uma restrição desnecessária e desproporcionada. A revisão de 1997 não fez mais do que precisar tal limite ou restrição, relativamente ao nº 1 do artigo 30º, ao introduzir o nº 5 do artigo 33º. Deve, entender-se que, ao fazê-lo, não ofende os limites materiais da revisão (artigo 288º, alínea d)). Nem se diga que a mesma argumentação, ou semelhante, se poderia aplicar à pena de morte. A diferença tem fundamento no máximo valor da vida humana e na irreversibilidade da pena de morte (que é a razão decisiva da submissão de penas de que resulte lesão irreversível da integridade física ao mesmo regime). Compreende-se, assim, que a Constituição tenha imposto uma política internacional abolicionista ao Estado português, ao não acolher a excepção do nº
5 para as hipóteses do nº 4 do artigo 33º. Deve entender-se, assim, que a interpretação do nº 5 do artigo 33º que foi historicamente querida pelo legislador constituinte, se integra harmoniosamente no sistema teleológico da Constituição, ao contrário do que pretende o Provedor de Justiça.
12 - Acresce que a interpretação do Provedor de Justiça representa o retomar, por contraponto, uma tese maximalista, quanto à pena de morte, de não permitir a extradição para nenhum país que preveja, em abstracto, a pena de morte para o tipo de crime, que foi defendida por algumas pessoas perante a Comissão Eventual
- como o representante da Amnistia Internacional e o Dr. José António Barreiros, por exemplo (reunião do dia 5 de Maio de 1997 em José de Magalhães, CD Rom cit)
- e que não tiveram eco na Comissão. Há, portanto, que reafirmar a anterior doutrina do Tribunal Constitucional quanto à pena de morte, agora extensiva à pena de que resulte lesão irreversível da integridade física.
13 - Ora a norma impugnada da alínea a) do nº 2 do artigo 6º da Lei nº 144/99 apenas explicita a doutrina do Tribunal Constitucional quanto ao sentido das palavras 'segundo o direito do Estado requisitante' no nº 4 do artigo 33º da Constituição (sentido que é idêntico, de resto, ao que tal expressão assume no nº 5 do mesmo artigo). Trata-se, portanto, da delimitação do alcance da proibição genérica da extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física. III - Decisão Nestes termos e de acordo com tudo o que fica exposto, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 6º, nº
2, alínea a), da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto, na parte em que permite a extradição na hipótese prevista na alínea e) do mesmo artigo, se o Estado que formula o pedido, por acto irrevogável e vinculativo para os seus tribunais ou outras entidades competentes para a execução da pena, tiver previamente comutado pena de morte ou outra de que possa resultar lesão irreversível da integridade da pessoa.
Lisboa, 10 de Janeiro de 2001 José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida Messias Bento Artur Maurício Paulo Mota Pinto Bravo Serra (com a declaração de que não acompanho as considerações de índole teórica que se surpreendem nos parágrafos 3º e 4º do ponto 11 do vertente acórdão) José Manuel Cardoso da Costa