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Proc. nº 54/98
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por decisão do Tribunal Colectivo da Comarca de Caminha, foram os ora recorrentes JP, LP e o Município de Caminha condenados, respectivamente: a) os dois primeiros, como co-autores, pela prática:
· de cinco crimes de fraude na obtenção de subsídio, um consumado e os demais tentados, previstos e punidos pelos artigos 36º, nº 1, alíneas a), b) e c), e nºs 2, e 5, alínea a), e 8 alínea a) do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, e 22º, 23º e 74º do Código Penal;
· de três crimes de desvio de subsídio, previsto e punidos dois deles pelo artigo 37º, nºs 1 e 3 do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, e um deles apenas pelo nº 1 daquele preceito. b) o Município de Caminha, como autor material, pela prática de dois crimes de fraude na obtenção de subsídio, um consumado e outro tentado, e por um crime de desvio de subsídio, previstos e punidos pelos preceitos supra referidos. A final - efectuados os correspondentes cúmulos jurídicos e ponderado o perdão concedido pela lei nº 23/91, de 4 de Julho – foram os arguidos condenados:
· o primeiro, na pena de 2 anos e cinco meses de prisão e sessenta dias de multa (com a alternativa de 40 dias de prisão);
· o segundo, na pena de 1 ano e seis meses de prisão e 40 dias de multa
(com alternativa de 26 dias de prisão);
· o Município de Caminha, na pena de multa de 150 dias à razão diária de
10.000$00, num valor total de um milhão e quinhentos mil escudos.
2. Inconformados com o teor do aresto supra referido os arguidos recorrerem para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações que apresentaram naquele Tribunal formularam, entre outras, as seguintes conclusões:
'1ª - Ao condenar os recorrentes com fundamento na aplicabilidade do Decreto-Lei nº 24/84, de 20 de Janeiro, pelos crimes p.p., pelos artigos 36º e 37º deste diploma, o douto acórdão recorrido fez indevida aplicação das citadas normas legais e violou o princípio da legalidade/tipicidade plasmado no artigo 31º, nº1, da CRP;
2ª Tal diploma, todavia, é inaplicável aos factos arguidos nos autos;
3ª As únicas sanções legalmente previstas para os factos objecto dos autos eram as cominadas nos despachos ministeriais em vigor ao tempo da prática daqueles – v.g. o Despacho de 13/5/86, publicado no D.R., II série nº 125; e o Despacho Normativo nº 22/5/87, publicado no D.R., II série nº 143 de 25/6/87 – ou seja a reposição das verbas recebidas indevidamente, a suspensão, redução ou supressão das não recebidas e incluídas no pedido de pagamento de saldo que veio a ser accionada, mais tarde, através do Decreto-Lei nº 158/90, de 17 de Maio, alterado pelo Decreto-Lei nº 246/91, de 6 de Julho.
4ª A aplicação 'in casu' das sanções penais cominadas no Decreto-Lei nº 28/84, envolve a violação dos princípios 'non bis in idem' e da necessidade da tutela penal de que é corolário o princípio da proporcionalidade consagrado no art.
18º, nº 2, da CRP;
5ª Ao aplicar ao recorrente as penas cominadas nos artigos 36º e 37º do Decreto-Lei nº 28/84, o douto acórdão recorrido aderiu incondicionalmente à tese que considerava as comparticipações do FSE como subsídios, tal como são conceitualizados no art. 21º do mesmo diploma;
6ª Todavia as comparticipações do FSE não são subsumíveis ao conceito de subsídio definido no art. 21º do Decreto-Lei nº 28/84, seja por razões objectivas, seja porque a aplicação do Decreto-Lei nº 28/84 às comparticipações do FSE postula uma interpretação analógica do artigo 21º às situações -
'rectius', às entidades, como no caso das accionadas nos autos à margem referenciados – a que não corresponde a natureza de 'empresas' ou 'unidades produtivas', com flagrante violação dos princípios da legalidade/tipicidade e nullum crimen sine lege ínsitos nos artigos 2º, 3º e 29º, nºs 1 e 3 da CRP, daí a sua inconstitucionalidade que se argui.
7ª As normas comunitárias reguladoras do FSE visam a promoção do emprego e a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores e não desenvolvimento económico
– v.g. artigos 123º a 128º do Tratado de Roma e legislação complementar – de onde resulta a impropriedade da aplicação do conceito de subsídio recortado no artigo 21º do Decreto-Lei nº 28/84 às comparticipações do FSE;
8ª Fica assim excluída, no que se refere a tais comparticipações, a aplicabilidade da alínea b) do nº 2 do artigo 21º
9ª Assim como é igualmente de excluir em relação a tais comparticipações o pressuposto da alínea a) do mesmo nº 2 do artigo 21º, na parte em que alude à contraprestação em termos normais de mercado, uma vez que, no caso, tal contraprestação existe e consiste na realização das acções de formação profissional;
10ª Do texto das alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 21º decorre assim a sua inaplicabilidade às comparticipações obtidas do FSE e, concomitantemente, a inaplicabilidade aos recorrentes das penas cominadas nos artigos 36º e 37º do Decreto-Lei nº 28/84;
11ª Assim, ao condenar os recorrentes com base nas referidas normas legais do Dec.Lei nº 28/84, o douto acórdão recorrido fez aplicação das mesmas e dos princípios constitucionais acima referidos, pelo que não pode subsistir na ordem jurídica.
12ª O crime tipificado no art. 36º do Dec.Lei nº 28/84 pressupõe que os actos descritos nas suas als a) a c) sejam contemporâneos da preparação e apresentação da candidatura (logo, anteriores à decisão de concessão ou atribuição do subsídio). Ora, os factos impugnados aos recorrentes tiveram lugar após a aprovação do pedido de candidatura e na fase do pedido de elaboração do pedido de pagamento do saldo, pelo que, na obtenção de subsídio, o douto acórdão fez incorrecta aplicação daquele art. 36º.
13ª Acresce que o legislador nacional tem adoptado soluções normativas que contendem com a aplicabilidade do Dec-Lei 158/90, de 17 de Maio, e o Dec-Lei
246/91, de 6 de Julho, que remetem exclusivamente para o domínio fiscal o mecanismo coercivo de restituição das prestações recebidas do FSE (v., diferentemente e para outros domínios, o regime da Lei 86/89, de 8 de Setembro
(art. 49º, nº 1 e 3), da Lei 103/80, de 9 de Maio (art. 6º), e do Dec-Lei
118/83, de 25 de Fevereiro (art. 45º)).
14ª Aliás, o regime previsto nos Dec-Lei nºs 132/83, de 18 de Março, 75-A/91, de
15 de Fevereiro, 146/93, de 8 de Julho, e 289/92, de 26 de Dezembro, demonstra bem que o legislador refere expressamente os casos em que criminaliza os comportamentos ilícitos com sanções de outra natureza, o que não acontece no caso sub judice para o qual não está prevista senão a sanção de reposição.
15ª Ao decidir em contrário, o douto acórdão violou, além do mais, o princípio
«ne bis in dem», atento o regime sancionatório previsto nos despachos de
13/5/86, 22/7/87 e 2/5/88, referidos supra.
(...)'.
3. O Supremo Tribunal de Justiça veio, porém, a negar provimento ao recurso. Para o efeito escudou-se, designadamente, na seguinte fundamentação:
'Em primeiro lugar não é exacto que a previsão legal da reposição das verbas recebidas indevidamente, contemplada nos diplomas citados pelos recorrentes, colida com os princípios «non bis in idem» e da necessidade da tutela penal.
(...) O facto de estar previsto na lei que no caso de incumprimento haverá lugar
à restituição das quantias recebidas não retira a ilicitude ao comportamento, mais não sendo do que a concretização da indemnização a que sempre haveria lugar pelo ilícito cometido.
(...) Em segundo lugar é hoje dado adquirido na jurisprudência deste Supremo Tribunal que a definição de subsídio ou subvenção ínsita no art. 21º do DL nº
28/84 se estende – sem aplicação analógica – às comparticipações do Fundo Social Europeu. Isto, pelo menos, desde o citado acórdão de 30/1/90, onde já se afirmava que o conceito de subsídio, para os efeitos do DL nº 28/84, é o que este diploma estabelece no art. 21º, nenhuma dicotomia podendo razoavelmente fazer-se entre aquele conceito e o de «comparticipação», pois são uma e a mesma realidade, confundidas na mesma sinonímia.
(...) De resto, e posto que o DL nº 28/84 seja anterior à entrada de Portugal na CEE, o certo é que o art. 21º daquele diploma não estabelece qualquer distinção relativa à origem ou proveniência do subsídio ou subvenção, nele cabendo claramente os subsídios (pouco importando que os recorrentes lhes chamem comparticipações, pois que, substancialmente, se trata da mesma realidade) concedidas pela CEE, no caso sempre acompanhadas de determinada percentagem de contribuição do Estado português, o que é razão acrescida para se considerar
«dinheiros públicos».
(...) Por último, o mencionado art. 21º, quando fala em «unidade produtiva», tem de ser interpretado em conjunto com os artigos 3º, nº 1 e 6º, al. b), do DL nº
28/84, inferindo-se da natureza dos destinatários da lei qual o sentido
(bastante amplo, que compreende qualquer pessoa singular ou colectiva que tenha por objectivo principal ou acessório a produção de bens económicos que são consumidos ou proporcionados ao consumo de terceiro) da expressão «unidade produtiva». A conjugação daqueles artigos diz-nos claramente que, para os efeitos do DL nº
28/84, a unidade produtiva, com o referido alcance, tanto pode ser pessoa singular (a quem a lei penal é, em princípio, dirigida) como uma sociedade civil e comercial (artigo 2º, nº 3), como uma associação de facto, uma sociedade ou pessoa colectiva (artigo 3º, nº 1), podendo esta ser uma pessoa colectiva pública, como é o Município de Caminha. Não se dúvida de que os arguidos estão incluídos nesta disposição legal. E não se trata aqui de interpretação analógica, mas meramente declarativa, que não infringe o princípio da legalidade.
(...) Sustentam os recorrentes que o acórdão recorrido fez incorrecta aplicação do artigo 36º do Decreto-Lei nº 28/84, porque os factos imputados tiveram lugar após a aprovação do pedido de candidaturas e na fase de elaboração do pedido de saldos. Não têm razão. As acções típicas previstas nos artigos 36º e 37º do falado diploma são estruturalmente diferentes. Na primeira (fraude na obtenção de subsídio), terá de existir uma actividade enganosa prévia à obtenção de uma subvenção; na segunda (desvio), é pressuposto uma obtenção lícita da subvenção, incidindo a norma incriminadora (artigo 37º) sobre a conduta do agente subsequente a tal obtenção. O chamado 'dossier de saldo' não constitui um mero acerto de contas relativo a subsídio anteriormente obtido, pois não pode confundir-se o compromisso de efectuar uma prestação com a prestação propriamente dita. São as informações constantes do referido'dossier' que determinam a decisão de efectuar ou não uma nova prestação, consistente na entrega de dinheiros públicos. As informações inexactas atinentes ao pagamento da 2ª tranche (ou pagamento do saldo) e determinantes não só da entrega como do seu quantitativo podem constituir um crime de fraude (no caso de efectivo pagamento do saldo) ou crime de fraude na forma tentada (se o saldo não vier a ser pago por motivos alheios à vontade do agente), crimes estes que podem coexistir, em concurso real, com o crime de desvio de subsídio (relativo à 1ª tranche), se se verificar em relação a esta a acção típica do art. 37º - utilização da prestação para fins diferentes daqueles a que legalmente se destinava'.
4. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso de constitucionalidade. Pretendem os recorrentes, nos termos do respectivo requerimento de interposição, ver apreciada a constitucionalidade dos artigos 21º, 36º e 37º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, na interpretação que deles adoptou a decisão impugnada, por considerarem que tais preceitos, naquela interpretação, violam o disposto nos artigos 2º, 3º, 18º, nº 2, 29º, nºs 1 e 3 e 31º, nº 1 da Constituição.
5. Já neste Tribunal foram os recorrentes notificados para alegar, o que fizeram, tendo concluído nos seguintes termos:
'1. A aplicação aos arguidos neste processo e a inclusão das irregularidades praticadas no âmbito das acções de formação do FSE e da apresentação do respectivo dossier de saldo na previsão normativa dos artigos 21º, 36º e 37º do DL 24/84 importa a extensão analógica destes preceitos e, portanto, violação do princípio da legalidade/tipicidade salvaguardados pelos artigos 3º, nº 3 e 29º, nº 1 da CRP. Com efeito,
2. Nenhum dos arguidos tem a natureza de empresa ou unidade produtiva nem a formação profissional por elas prestada pode considerar-se actividade produtiva, nem as comparticipações do FSE podem considerar-se abrangidas por tais normativos, especificamente criados, antes da adesão de Portugal à CEE, para punir as actividades delituosas contra a economia nacional, ainda porque a tais comparticipações corresponde sempre directamente uma contraprestação segundo os termos normais do mercado (a realização das acções de formação – cfr. cit. art.
21º).
3. Acresce que quando o legislador quis criminalizar os comportamentos ilícitos em acumulação com sanções de outra natureza, referiu-o expressamente, como aconteceu, por exemplo, no DL 152/95, de 1 de Julho (que cria o sistema integrado de incentivos a jovens empresários), na Lei 86/89, de 8 de Setembro
(cfr. art. 49º, nºs 1 e 3), no DL 103/80, de 9 de Maio (cfr. art. 6º), ainda os DLs 132/83, de 18 de Março, 75-a/91, de 15 de Fevereiro, 146/93, de 8 de Julho, e 289/92, de 26 de Dezembro. Ora,
4. Os DL 157/90, de 17 de Maio, e 246/91, de 6 de Julho (v. também o regime sancionatório previsto nos Despachos de 13/5/86, 22/7/87 e 2/5/88), remetem exclusivamente para o domínio fiscal o mecanismo coercivo de restituição das prestações recebidas do FSE,
5. Pelo que a extensão daqueles art.s 21º, 36º e 37º ao caso vertente importa violação do princípio ne bis in idem e ofensa do princípio da proporcionalidade acolhido no art. 2º do art. 18º da CRP.
6. Do mesmo modo, a interpretação desses preceitos adoptada pela decisão recorrida, que permitiu a sua aplicação ao caso dos autos – em que as entidades promotoras realizaram efectivamente a formação profissional a que se candidataram – envolve ofensa desse mesmo princípio da proporcionalidade e ainda dos da legalidade/tipicidade ínsitos nos artigos 3º, nº 3 e 29º, nº 1 da CRP'.
5. Notificado para responder, querendo, às alegações dos recorrentes, disse o Ministério Público, aqui recorrido, a concluir:
'1º - As normas incriminadoras, constantes dos artigos 36º e 37º do Decreto-Lei nº 28/84, ao sancionarem criminalmente os crimes de fraude na obtenção e de desvio de subsídios ou subvenções, incluindo os que decorrem da participação da CEE em acções de formação, não violam qualquer preceito ou princípio da Lei Fundamental, como decorre da jurisprudência uniforme e reiterada deste Tribunal.
2º - Não constitui extensão analógica da previsão normativa constante do art.
21º daquele diploma legal, constitucionalmente vedada, a que se traduz em responsabilizar pelo cometimento de tais crimes tanto as entidades colectivas que figuram como beneficiárias dos subsídios ilegalmente obtidos ou desviados, como os próprios agentes ou funcionários, ao serviço de tais entes colectivos, que, no exercício das suas funções, praticaram as irregularidades em causa.
3º - Na verdade, as acções de formação profissional em que os arguidos participaram constituem manifestamente actividade produtiva, subsidiada por dinheiros públicos, que não origina qualquer contraprestação segundo os termos normais de mercado – sendo, deste modo, as actividades que originaram as condenações plenamente subsumíveis à literalidade do citado art. 21º.
4º - Termos em que deverá manifestamente improceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de constitucionalidade das normas em causa'.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação
6. A alegada inconstitucionalidade do disposto nos artigos 36º e 37º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro. Os artigos 36º e 37º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, foram já, por diversas vezes e à luz de diferentes perspectivas, objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, que sempre se pronunciou, em casos inteiramente análogos ao que agora está a ser julgado, pela sua não inconstitucionalidade. Fê-lo, designadamente, nos acórdãos nºs 651/93 (Diário da República, 2ª Série, de 31 de Março de 1994), 212/95 (Diário da República, de 24 de Junho de 1995),
213/95 (Diário da República, 2ª Série, de 26 de Junho de 1995), 302/95 (Diário da República, 2ª Série, de 29 de Setembro de 1995), 604/99 (Diário da República,
2ª Série, de 26 de Maio de 2000) e 1142/96, 364/97, 440/97, 310/98, 633/98 e
487/2000 (estes ainda inéditos). Aí, concluiu já o Tribunal Constitucional que as normas agora objecto de recurso não eram nem organicamente, nem formalmente, nem materialmente inconstitucionais. E, no que a esta última dimensão se refere, que não o eram designadamente por violação das normas e princípios da Constituição com que agora, mais uma vez, se pretende que as mesmas sejam confrontadas. Recordaremos por isso, agora, apenas o que a certa altura se ponderou no acórdão nº 604/99 (já citado), remetendo, em tudo o mais, para a fundamentação daqueles arestos:
'É que o recorrente questiona ainda a constitucionalidade da norma por violação dos princípios da proporcionalidade, danosidade social, subsidariedade e fragmentaridade do direito penal e ainda do princípio non bis in idem. Ora, a este respeito, importa relembrar que, na incriminação por desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado, está em causa o êxito dos programas que o Estado se propõe levar a cabo, pelo que uma incorrecta aplicação dos dinheiros públicos pode comprometer ou mesmo frustrar o interesse público subjacente. A medida justifica-se pela gravidade dos efeitos dessa aplicação e pela necessidade de se proteger o interesse do correcto emprego dos dinheiros públicos nas actividades produtivas, como se realça no ponto 6 da nota preambular ao Decreto-Lei nº 28/84 e tem sido destacado pela jurisprudência deste Tribunal, ao analisar a questionada norma, se bem que em resposta a problemática diversa - como é o caso, entre outros, dos citados acórdãos nºs.
213/95 e 302/95. Como se observou noutro aresto já mencionado, o nº 1142/96, 'se é sabido que o direito penal de um Estado de Direito visa a protecção de bens jurídicos essenciais ao viver comunitário, só estes assumindo dignidade penal, o certo é que a Constituição não contém qualquer proibição de criminalização, e, observados que sejam certos princípios, como sejam o princípio da justiça, o princípio da humanidade e o princípio da proporcionalidade [...] «o legislador goza de ampla liberdade na individualização dos bens jurídicos carecidos de tutela penal (e, assim, na decisão de quais os comportamentos lesivos de direitos ou interesses jurídico-constitucionalmente protegidos que devem ser defendidos pelo recurso a sanções penais)», (na linguagem do acórdão nº 83/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 137, de 16 de Junho de 1995, que seguiu na linha dos acórdãos nºs. 634/93 e 650/93, publicados no Diário da República, II Série, Suplemento, nº 76, de 31 de Março de 1994).
«É evidente - lê-se no citado acórdão nº 634/83 - que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se há-de reconhecer, também nesta matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva»'. Não se crê que a norma em sindicância coenvolva uma situação reconduzível, pela sua excessividade, à violação do princípio da proporcionalidade e ao desrespeito do artigo 18º da CR, ou, tão pouco, que importe 'danosidade social' a exigência de utilização vinculada dos meios financeiros concedidos exclusivamente para a execução de programas nessa medida e enquanto tais a eles concretamente afectados. Pois bem, sublinhou-se na decisão ora recorrida a passagem do preâmbulo do Decreto-Lei nº 28/84 onde a tipificação das condutas que passaram a ser tuteladas criminalmente se justifica pela necessidade de proteger o interesse público que a 'correcta aplicação dos dinheiros públicos' encerra, nesse tipo de actuação. E, na verdade, verificada a insuficiência da lei civil para controlar os interesses em jogo, surgiu, naturalmente, a necessidade de tipificar legalmente, no plano da criminalidade económica, as condutas eticamente censuráveis, dando-se, assim, combate às violações mais graves dos respectivos bens jurídicos que integram o direito penal económico, como se escreve, a certo passo, no acórdão nº 1142/96, citado, a propósito das chamadas 'irregularidades' nos subsídios do Fundo Social Europeu, um trabalho de Pedro Verdelho, publicado na Revista do Ministério Público, nº 66, págs. 61 e ss. ('As chamadas
«irregularidades» nos subsídios do Fundo Social Europeu são crime ou apenas constituem ilícito civil?'). Ora, não contendo o texto constitucional uma qualquer proibição de criminalização e conhecendo a necessidade experimentada em Estado de direito de proteger penalmente os bens e interesse jurídicos essenciais ao viver em comunidade, a liberdade de conformação do legislador ordinário só conhecerá limitação, nesta perspectiva, se se representar como manifestamente excessiva a punição criminal encontrada. O que significa que a existência de instrumentos legais disciplinadores da matéria de concessão de subsídios concedidos pelo Fundo Social Europeu, sancionando civil ou administrativamente as referidas 'irregularidades' - globalmente consideradas -, não significa, nem exclui, que certos desses
'desvios' tenham merecido do legislador ordinário uma sanção mais severa, do foro criminal, uma vez tipicizados os respectivos comportamentos. O facto de o direito comunitário prever sanção diferente para a prática de irregularidades na utilização das contribuições do FSE - suspensão, redução ou supressão, quando ainda não estejam pagas, a sua repetição, nos casos em que já tenha havido pagamento - pode significar que o legislador nacional não qualifique como penalmente ilícitas as correspondentes condutas exigidas ou autorizadas por aquele direito, mas não exclui, em princípio, que os Estados membros punam actuações que tenham por ilícitas, o que é substancialmente distinto, como, aliás, se fez notar no acórdão nº 440/97, inédito.
3.4. - Por outro lado, com a interpretação dada à norma tão pouco se desenha violação do princípio non bis in idem, cuja contrariedade depende da identidade do bem jurídico tutelado por normas sancionadoras concorrentes, ou do desvalor pressuposto por cada uma delas, como se observou recentemente no acórdão nº
244/99, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Julho último. Com efeito, não se vê que à prática da infracção em causa corresponda uma plúrima aplicação de sanções jurídico-penais, sendo certo que os lugares legislativos convocados pelo recorrente, nas suas alegações, se situam em planos diferenciados (assim, v.g., o caso Decreto-Lei nº 132/83, de 18 de Março, ao regular o regime de incentivos fiscais e financeiros ao investimento, revogando o regime estabelecido pelo Decreto-Lei nº 194/80, de 19 de Junho; do Decreto-Lei nº 75º-A/91, de 15 de Fevereiro, ao aprovar o sistema de incentivos à modernização do comércio; do Decreto-Lei nº 289/92, de 26 de Dezembro, ao prever a resolução dos contratos, nomeadamente por não cumprimento dos objectivos e obrigações aí estabelecidos ou pelo não cumprimento atempado das obrigações fiscais por parte da empresa promotora ou, ainda, pela prestação de informações falsas sobre a situação da empresa ou viciação de dados fornecidos na apresentação e apreciação e no acompanhamento dos projectos; do Decreto-Lei nº
246/93, de 8 de Junho, situado na mesma área e de outros, que nada têm a ver com o bem jurídico tutelado especificamente pela norma do questionado artigo 37º)'.
É, pois, esta jurisprudência, que, por manter inteira validade, mais uma vez há agora que reiterar, o que nos conduz a concluir que não são inconstitucionais as normas que, nesta parte, constituem objecto do recurso.
7. A alegada inconstitucionalidade do disposto no artigo 21º do Decreto-Lei nº
28/84, de 20 de Janeiro. O artigo 21º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, tem o seguinte teor:
Artigo 21º Para efeitos deste diploma, considera-se subsídio ou subvenção a prestação feita a empresa ou unidade produtiva, à custa de dinheiros públicos, quando tal prestação: a) Não seja, pelo menos em parte, acompanhada de contraprestação segundo os termos normais do mercado, ou quando se tratar de prestação inteiramente reembolsável sem exigência de juro ou com juro bonificado; b) Deva, pelo menos em parte, destinar-se ao desenvolvimento da economia.
No entender dos recorrentes tal norma é inconstitucional, por violação do princípio da tipicidade consagrado no artigo 29º, nº 1, da Constituição, quando interpretada em termos de enquadrar os ora recorrentes no conceito de 'empresa ou unidade produtiva' que ali se utiliza, bem como quando interpretada em termos de considerar abrangidas pelo conceito de 'subsídio ou subvenção' as comparticipações provenientes do Fundo Social Europeu. Para delimitar, com mais rigor, a exacta dimensão normativa do art. 21º do Decreto-Lei nº 28/84, utilizada pela decisão recorrida, importa começar por evidenciar que não é exactamente verdade que aquela tenha interpretado o disposto naquela art. 21º de forma a enquadrar os ora recorrentes, pessoas singulares, no conceito de 'empresa ou unidade produtiva'. Como, bem, evidencia o Ministério Público, 'não são, obviamente, aqueles dois arguidos, pessoas singulares, qualificados, eles próprios, como «empresa ou unidade produtiva»; o destinatário e beneficiário das acções de formação, irregular e fraudulentamente realizadas, foram diferentes entes colectivos [o Município de Caminha, a A, a D e a T, também condenados nos autos], em cuja representação actuavam os dois primeiros arguidos (...)'. A responsabilidade dos arguidos, pessoas singulares, não assenta na circunstância de eles próprios serem considerados 'empresa ou unidade produtiva', mas na circunstância de as normas conjugadas dos artigos 2º, 3º e 6º, al. b), que a decisão recorrida cita, estenderem a responsabilidade criminal às pessoas singulares que tenham agido voluntariamente como órgãos, membros ou representantes do ente colectivo ou simples associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem (art. 2º, nº 1). E, delimitado nestes termos o objecto do recurso, é manifesto que dele não se pode conhecer nesta parte, por a norma não ter sido aplicada com o sentido questionado pelos recorrentes - e isto independentemente da questão de saber se neste ponto seríamos confrontados com uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa. III – Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso na parte em que dele se conhece, em consequência, confirmar o acórdão recorrido, na parte impugnada. Lisboa, 28 de Março de 2001 José de Sousa e Brito Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida Messias Bento Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa