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Processo nº 617/2000
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença de 25 de Julho de 2000 do Tribunal Administrativo e Fiscal agregado do Funchal foi anulada a deliberação do Conselho dos Oficiais de Justiça de 27 de Abril de 1998 que homologara a proposta de classificação de serviço de RM, escrivão de direito aposentado (desde Maio de 1998). A anulação baseou-se no juízo de inconstitucionalidade que o Tribunal proferiu relativamente às normas constantes dos artigos 95º e 107º, a), do Decreto-Lei nº
376/87, de 11 de Dezembro, cujo texto é o seguinte: Artigo 95º Ao Conselho dos Oficiais de Justiça cabe apreciar o mérito e exercer o poder disciplinar relativamente aos oficiais de justiça. Artigo 107º Compete ao Conselho dos Oficiais de Justiça: a. Apreciar o mérito profissional e exercer a acção disciplinar sobre os oficiais de justiça, sem prejuízo da competência disciplinar atribuída a juízes.' Entendeu o Tribunal Administrativo e Fiscal agregado do Funchal que 'as normas do decreto-lei nº 376/87, de 11 de Dezembro, que estabelecem a competência do Conselho dos Oficiais de Justiça par apreciar o mérito e para exercer o poder disciplinar relativamente aos oficiais de justiça, ofendem o artigo 218º, nº 3 da Constituição e são, por isso, materialmente inconstitucionais [cf. Acórdão. nº 145/2000 do TC (...)]. Tais normas são concretamente as dos artigos 95º e 107º, alínea a), do referido decreto-lei, enquanto determinam as atribuições e competência do Conselho dos Oficiais de Justiça. Actualmente, são os arts. 68º-1-3, 72º, 73º, 92º, 94º, 98º e 111º-a-b) do EFJ-DL 343/99 de 26-8.'
2. Deste acórdão recorreram para o Tribunal Constitucional o Ministério Público
(requerimento de fls. 84) e o Conselho dos Oficiais de Justiça (requerimento de fls. 86), ao abrigo do disposto na al. a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. O Ministério Público recorre da recusa de aplicação das normas 'constantes dos artigos 95º e 107º alínea a) do DL 376/87 de 11/12 e dos artigos 68º nº 1, 3,
72º, 73º, 92º, 94º, 98º e 111º alíneas a) e b) do EFJ aprovado pelo DL 343/99 de
26/8', pretendendo a sua apreciação. O Conselho dos Oficiais de Justiça limita o âmbito do recurso às normas constantes dos artigos 95º e 107º, al. a) citadas.
O recurso foi admitido, em decisão que não vincula este Tribunal (nº
3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. Notificadas para o efeito, as partes vieram apresentar as respectivas alegações. O Conselho dos Oficiais de Justiça veio sustentar que as normas em causa não violam o disposto no nº 3 do artigo 218º da Constituição, pois que este preceito
'não atribui competência exclusiva ao CSM em matéria de jurisdição sobre os funcionários', antes 'permite, apenas (...) que o legislador ordinário alargue a composição do CSM, definida no nº 1 deste preceito constitucional, de forma a que dele façam parte funcionários de justiça eleitos pelos seus pares e com intervenção restrita à discussão das matérias relativas à apreciação do mérito e exercício da função disciplinar, se a lei ordinária lhe atribuir tal competência.' O referido nº 3 regula tão somente a composição do Conselho Superior da Magistratura, não a sua competência. O Ministério Público pronunciou-se também no sentido da não inconstitucionalidade, por entender que o nº 3 do artigo 218º da Constituição
'deve ser visto e interpretado – não como mera norma que (embora implicitamente) atribua determinada competência ao COJ – mas como uma norma que impõe a
(necessária) representatividade nesse órgão de todos os destinatários da avaliação do CSM – magistrados e funcionários judiciais.' O texto constitucional não impede que o legislador ordinário opte 'pela atribuição de tal tarefa de avaliação e inspecção dos funcionários de justiça a outros órgãos ou entidades.' RM, finalmente, veio apoiar a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal agregado do Funchal.
4. Cabe começar por delimitar o objecto do presente recurso. Com efeito, nele apenas cabem as normas cuja aplicação foi efectivamente recusada pela decisão recorrida com fundamento na sua inconstitucionalidade, ou seja, neste caso, as que constam do artigo 95º e da alínea a) do artigo 107º do Decreto-Lei nº
376/87, de 11 de Dezembro. A sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal agregado do Funchal apenas refere os artigos 68º nº 1, 3, 72º, 73º, 92º, 94º,
98º e 111º alíneas a) e b) do Estatuto dos Funcionários de Justiça, aprovado pelo Decreto-Lei nº 343/99, de 26 de Agosto, para indicar quais são as disposições hoje correspondentes àquelas, não para afastar a sua aplicação por inconstitucionalidade. Nestes termos, considera-se limitado o objecto do recurso às normas constantes dos preceitos acima transcritos.
5. O Tribunal Constitucional – como, aliás, se refere na sentença recorrida – já teve a oportunidade de apreciar a eventual inconstitucionalidade destas mesmas normas, no seu acórdão nº 145/2000 (Diário da República, II Série, de 6 de Outubro de 2000). Não obstante estar em causa, no recurso então julgado, matéria de natureza disciplinar, a verdade é que as considerações valem da mesma forma para a competência relativa à apreciação do mérito. Julgou-se nesse acórdão nº 145/2000:
'Com a Constituição de 1976, o artigo 223º, n.º1, e o n.º 2 do artigo 226º remeteram para a lei as regras de composição do Conselho Superior da Magistratura (adiante, CSM) e da Procuradoria Geral da República. Em
31 de Dezembro de 1976, o Governo invocando uma lei de autorização legislativa para legislar sobre as matérias referidas nos artigos 223º, n.º1, e 226º, n.º2, da Constituição, editou o Decreto-Lei n.º 926/76, que constituiu a Lei Orgânica daquele Conselho. Este diploma, emitido ao abrigo da Lei n.º 5-B/76, de 30 de Dezembro, e no qual se definiu a estrutura, organização, competência e funcionamento do CSM, veio a incluir a possibilidade de fazerem parte do Conselho quatro funcionários de justiça, justificando-se esta opção, no preâmbulo do diploma nos termos seguintes: ‘Tal como é configurado, o Conselho Superior da Magistratura é constituído basicamente por magistrados, com a só excepção de dele passarem a fazer parte quatro funcionários de justiça, de intervenção restrita às matérias que lhes digam directamente respeito. Trata-se de uma opção que o texto constitucional, rigorosamente, nem anima nem desanima. A este respeito, limita-se a consignar que o Conselho deverá incluir membros de entre si eleitos pelos juízes.’
No que respeita aos funcionários de justiça, o diploma orgânico do CSM estabeleceu como competência própria do Conselho a de ‘apreciar o mérito profissional e exercer a acção disciplinar sobre os funcionários de justiça, sem prejuízo do disposto no artigo 461º do Estatuto Judiciário’ (cfr. nº 2 do artigo 1º e alínea b) do nº 1 do artigo 9º).
Esta matéria foi justificada no preâmbulo do diploma da forma seguinte: ‘Por outro lado, em obediência ao facto de o Governo ser o órgão superior da Administração Pública (artigo 185º da Constituição) e de, nessa qualidade, lhe competir a prática de todos os actos exigidos pela lei respeitantes aos funcionários e agentes do Estado, [alínea e) do artigo 202º], manteve-se na órbita do Executivo a gestão dos funcionários de justiça. Abriu-se tão-só uma excepção para a respectiva acção disciplinar por óbvias razões de eficiência e por se ter entendido que não contraria frontalmente a letra do n.º2 do artigo 223º da Constituição. Não deixa a excepção, no entanto, de justificar algumas dúvidas’.
Esta orientação de manter no âmbito de competência do Conselho Superior da Magistratura as matérias relativas à apreciação do mérito profissional e do exercício da função disciplinar dos funcionários de justiça continuou através do Estatuto dos Magistrados Judiciais de 1977 [Lei n.º 72/77, de 30 de Dezembro, artigo 149º, alínea b)] e de 1985 (Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, artigo 137º, n.º2). Importa, então, descobrir e explicitar os fundamentos desta opção do legislador ordinário e, bem assim, os motivos que levaram depois o legislador constitucional a proceder a uma modificação substancial no respectivo ordenamento a partir de 1982. Efectivamente, com a revisão constitucional de 1982 (Lei Constitucional n.º1/82, de 30 de Setembro) procurou superar-se qualquer dúvida que porventura existisse. De facto, o artigo 223º teve nova redacção, tendo-lhe sido acrescentado um n.º3, com o seguinte teor: ‘3.A lei poderá prever que do Conselho Superior da Magistratura façam parte funcionários de justiça, eleitos pelos seus pares, com intervenção restrita à discussão e votação das matérias relativas à apreciação do mérito profissional e ao exercício da função disciplinar sobre os funcionários de justiça’.
Esta redacção do n.º 3 não voltou a ser modificada, mas a numeração do preceito sofreu alterações com as revisões constitucionais posteriores, sendo actualmente o artigo 218º e tendo o respectivo n.º 3 o mesmo conteúdo.
Assim, a orientação tradicionalmente adoptada pelo legislador ordinário quanto à apreciação do mérito profissional e ao exercício da função disciplinar foi considerada como regulando de modo adequado e eficaz tal matéria, que obteve o reconhecimento da comunidade, e o legislador constitucional resolveu elevá-lo à categoria de princípio jurídico-constitucional, incluindo-o na Constituição em 1982 e não mais o retirando.
A finalidade do legislador constituinte, ao acolher o que antes apenas constava da lei ordinária, foi necessariamente a de dar execução ao mandato que conferiu ao CSM a respeito dos funcionários de justiça: o legislador constitucional decidiu atribuir ao CSM a competência para discutir e votar as matérias relativas à apreciação do mérito profissional e ao exercício da função disciplinar sobre os funcionários de justiça.
5. - A Constituição de 1976, ao definir os tribunais como ‘órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo’, logo cuidou de referir que ‘os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei’ e, bem assim, de estabelecer que os juízes dos tribunais judiciais formam um corpo
único e regem-se por um só estatuto, sendo inamovíveis e não podendo ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções legais. Também a Constituição estabeleceu logo as respectivas incompatibilidades e, para garantir o conjunto e unidade desta estrutura, criou o Conselho Superior da Magistratura, a quem cometeu a tarefa de proceder à nomeação, colocação, transferência e promoção dos juízes e, ainda, o exercício da acção disciplinar, nesta se incluindo a apreciação do mérito profissional A Constituição, na sua versão originária, remeteu para a lei a composição do Conselho, mas desde logo estabeleceu que o mesmo deveria incluir membros de entre si eleitos pelos juízes. A independência dos tribunais e dos respectivos juízes é uma das garantias essenciais dos cidadãos do Estado de direito democrático, visando defender os tribunais de ingerências indevidas dos demais poderes do Estado e garantindo que a defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos se fará por órgãos do Estado independentes e imparciais. A independência dos juízes constitui uma garantia essencial da independência dos tribunais. Foi também para realizar estes valores constitucionalmente relevantes que a Constituição criou um órgão próprio de governo da magistratura judicial - o Conselho Superior da Magistratura - que passou a ter como função essencial a gestão e a disciplina dos juízes dos tribunais judiciais, colocando-os a coberto de ingerências do Governo e da Administração, uma vez que fica proibida toda a intervenção externa directa na nomeação, colocação, transferência e promoção dos juízes, bem como na respectiva disciplina.
É ainda esta necessidade e finalidade de garantir a independência dos tribunais da forma mais completa possível que vem justificar que ao Conselho Superior da Magistratura seja também atribuída a competência para decidir as matérias relativas à apreciação do mérito profissional e ao exercício da função disciplinar sobre os funcionários de justiça. Com efeito, desenvolvendo estes funcionários a sua actividade nos diferentes tribunais, coadjuvando os magistrados judiciais e o ministério público na realização das tarefas cuja finalidade última é a realização da justiça, através da prática dos mais diversos actos processuais, bem se compreende que a matéria da avaliação profissional e da disciplina de tais funcionários venha a caber, necessariamente, ao órgão constitucional autónomo, cuja finalidade é a de ser garante da independência dos tribunais. Na verdade, não pode deixar de se considerar que os funcionários de justiça também fazem parte da estrutura dos tribunais; e, por isso, são elementos fundamentais para a realização prática da garantia constitucional da respectiva independência. Assim, a norma do nº 3 do artigo 223º (actual artigo 218º) da Constituição, ao estabelecer que ‘a lei poderá prever que do Conselho Superior da Magistratura façam parte funcionários de justiça, eleitos pelos seus pares, com intervenção restrita à discussão e votação das matérias relativas à apreciação do mérito profissional e ao exercício da função disciplinar dos funcionários de justiça’, está a criar, para estes funcionários, relativamente àquelas matérias, um estatuto particular que se justifica à luz da garantia da independência dos juízes e da autonomia do Ministério Público. Ou seja: é a independência dos tribunais que explica que só o CSM possa exercer tal competência em relação aos funcionários de justiça. Por isso, a lei ordinária não pode afectar essa competência a qualquer outra entidade, uma vez que a sua atribuição ao CMS constitui uma verdadeira imposição constitucional. A Constituição da República Portuguesa, quando prescreve que do CSM podem fazer parte funcionários de justiça que intervirão apenas na apreciação do mérito profissional e no exercício da função disciplinar relativa a tais funcionários, autoriza a lei a prever que do CSM façam parte funcionários. Não impõe, porém, tal intervenção. A Constituição não consente, porém, que o legislador atribua tal competência a órgão diferente do CSM. Essa competência só o CSM a pode exercer. Assim, aquela norma do nº 3 do artigo 223º (hoje artigo 218º) é, efectivamente, o parâmetro de aferição da constitucionalidade das normas infra-constitucionais que criam o Conselho dos Oficiais de Justiça, fixam as respectivas atribuições, competências, forma de designação ou eleição, bem como o respectivo funcionamento.
Ora, assim entendido o n.º 3 do artigo 223º (actual artigo 218º) da Constituição, não pode a lei ordinária atribuir a competência para se pronunciar sobre aquelas matérias (apreciação do mérito profissional e exercício da função disciplinar) relativas aos funcionários de justiça ao Conselho dos Oficiais de Justiça ou a qualquer outra entidade que não seja o CSM, sem modificação da norma constitucional.
O que vale por dizer que são materialmente inconstitucionais as normas infra-constitucionais que disponham em sentido contrário ao da referida disposição da Lei Fundamental. Nem esta conclusão é prejudicada pela decisão tomada pelo Tribunal no Acórdão nº 589/99, de 20 de Outubro de 1999, ainda inédito. Nele, a norma constante do artigo 122º do Decreto-Lei nº 376/87, de 11 de Dezembro, não foi julgada inconstitucional. No entanto, nesse Acórdão, a questão apreciada foi unicamente a de saber se o mencionado artigo 122º - ao dispor que os recursos interpostos das deliberações do COJ em matéria disciplinar são interpostos para os tribunais administrativos, em vez de o serem para o STJ, como sucedia quando a competência para o exercício da acção disciplinar era do CSM – é organicamente inconstitucional. O Tribunal concluiu negativamente, por ter entendido que não ocorre qualquer modificação na distribuição da competência material entre tribunais e que portanto não havia qualquer inconstitucionalidade orgânica. Tal conclusão não impede, porém, que, agora, em sede de inconstitucionalidade material, se conclua em sentido positivo.
Assim, as normas do Decreto-Lei n.º 376/87, de 11 de Dezembro, que estabelecem a competência do Conselho do Oficiais de Justiça para apreciar o mérito e para exercer o poder disciplinar relativamente aos oficiais de justiça ofendem o artigo 218º, nº 3 da Constituição e são, por isso, materialmente inconstitucionais.
Tais normas são concretamente as dos artigos 95º e 107º, alínea a), do referido Decreto-Lei, enquanto determinam as atribuições e competência do Conselho dos Oficiais de Justiça. (...)'.
Nestes termos, o acórdão nº 145/2000 julgou 'inconstitucionais as normas dos artigos 95º e 107º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 376/87, de 11 de Dezembro, por violação do n.º 3 do artigo 218º da Constituição da República Portuguesa; (...)'.
6. É este julgamento de inconstitucionalidade, pelas razões ali apontadas, que aqui se reitera.
Apenas se acrescenta que em nada contraria esta conclusão a alteração – considerada decisiva pelo Conselho dos Oficiais de Justiça nas suas alegações de recurso – que a Lei nº 10/94, de 5 de Maio, introduziu na Lei nº
21/85, de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais). Com efeito, aquela lei suprimiu a alínea b) do artigo 149º da Lei nº 21/85, relativo à competência do Conselho Superior da Magistratura, cujo conteúdo era o seguinte:
'b) Apreciar o mérito profissional e exercer a acção disciplinar sobre funcionários de justiça, sem prejuízo da competência disciplinar atribuída a juízes'.
Estando em causa a conformidade constitucional de normas que atribuem esta competência ao Conselho dos Oficiais de Justiça, não tem qualquer relevo, para esse efeito, o facto de o legislador ordinário a ter retirado do Conselho Superior da Magistratura.
Assim, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que toca ao julgamento da questão de constitucionalidade. Lisboa, 4 de Abril de 2001 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa (vencido, por entender no essencial e na linha do voto de vencido do Exº Conselheiro Artur Maurício lavrado no acórdão nº 145/2000, que o alcance do nº 3 do artº 218º da Constituição limita-se à composição do Conselho Superior da Magistratura e não obsta ao exercício do poder disciplinar pelo Conselho dos Ofíciais de Justiça) Luís Nunes de Almeida