Imprimir acórdão
Processo n.º 569/10
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
1. A., S.A., interpôs recurso ao abrigo das alíneas a), b) e i) do n.º 1 do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC):
A) Do acórdão da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 19 de Setembro de 2007, que concedeu provimento a recurso interposto pela Fazenda Pública e revogou a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgara procedente a impugnação de actos tributários relativos à liquidação de IVA;
B) Do acórdão de 10 de Março de 2010 da mesma Secção, que julgou findo o recurso que a recorrente interpusera daquele primeiro acórdão para o Pleno da Secção.
Alegou e concluiu nos seguintes termos:
“(…)
Quanto ao recurso do Acórdão do STA de 10.03.2010
344. 0 artigo 687º nº 4 do CPC, na interpretação segundo a qual o recurso jurisdicional pode ser admitido e depois recusado, pela mesma instância jurisdicional (da qual se recorre), é materialmente inconstitucional, por violação do direito de acesso ao direito (de recurso jurisdicional) e à tutela jurisdicional efectiva, consagrado nos artigos 20º e 268º nº 4 da CRP.
345. Com efeito, o artigo 687º nº 4 do CPC, nessa interpretação, viola estas disposições legais constitucionais, na medida em que daí advém a inviabilização prática do recurso jurisdicional em questão, sem qualquer fundamento substancial, bastando “dar o dito por não dito”.
346. E note-se que, quanto à matéria concretamente recorrida, esta havia sido apreciada em “1ª Instância” pelo Tribunal de que se recorreu – a Secção de Contencioso Tributário do STA.
347. De modo que, ao inviabilizar o recurso jurisdicional em questão – da Secção para o Pleno da Secção – o Tribunal recorrido eliminou a possibilidade de existência, sequer, de um único grau de recurso jurisdicional.
348. Com efeito, a única interpretação constitucionalmente admissível do artigo 687º nº 4 do CPC reside em considerar que a questão da admissibilidade do recurso apenas pode ser “revista” na esfera do Tribunal para o qual se recorre, sob pena de eliminação, sem qualquer “saída”, de qualquer grau de recurso jurisdicional.
(3) Quanto ao recurso do Acórdão do STA de 19.09.2007
349. Aqui, o artigo 4º, nº 2, 2ª parte, do DL 241/86, de 20/8, na interpretação segundo a qual só é possível solicitar o reembolso do IVA depois de celebrada a escritura pública (de locação), apesar de, à data do pedido de reembolso de IVA, o inquilino já estar a ocupar o imóvel e a pagar rendas ao respectivo proprietário, e daquela escritura pública firmar expressamente o início da locação desde a data dessa ocupação,
350. É materialmente inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da legalidade, tipicidade, justiça, igualdade, proporcionalidade e boa fé, consagrados nos artigos 103 nº 2 e 3, e 266º nº 2 da CRP;
351. É materialmente inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da protecção da confiança e da segurança jurídica, princípios basilares do Estado de Direito Democrático (artigos 2º e 9º b) da CRP);
352. É materialmente inconstitucional por violação dos princípios da liberdade de iniciativa económica privada, da liberdade de organização empresarial e de funcionamento eficiente dos mercados, no quadro de uma equilibrada concorrência empresarial, consagrados nos artigos 61º nº 1, 80º, alínea c), e 81º, alínea e), da CRP;
353. E é materialmente inconstitucional por violação do princípio constitucional do primado do direito comunitário sobre o direito interno, consagrado no artigo 8º nº 4 da CRP, do princípio do juiz legal (ou natural), consagrado no artigo 32º nº 9 da CRP, e do princípio da tutela jurisdicional efectiva, consagrado nos artigos 20º nº 1 e 268º nº 4 da CRP, atenta a violação do artigo 234º, parágrafo 3º, do Tratado de Roma - o não reenvio prejudicial ao TJCE, antes da interpretação e aplicação daquele artigo 4º nº 2, 2ª parte, do DL 241/86, de 20/8.
Nestes termos, nos melhores de Direito e com o douto suprimento de V. Exas., concedendo provimento ao presente recurso e, consequentemente, declarando a inconstitucionalidade dos sobreditos preceitos legais, nas interpretações ou dimensões normativas acima mencionadas, V. Exas. farão, como sempre, inteira justiça.”
A Fazenda Pública contra-alegou no sentido da improcedência de ambos os recursos.
2. Após alegações, o relator proferiu o seguinte despacho:
“Notifique as partes para se pronunciarem, querendo, sobre as seguintes questões:
A) Recurso do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 10 de Fevereiro de 2010 [lapso: é de 10 de Março de 2010].
Este acórdão não parece ter feito aplicação, como ratio decidendi, da norma cuja apreciação de constitucionalidade se pretende, pelo que não se verificará a previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC) e, portanto, não pode dele conhecer-se
Com efeito, a razão de confirmação, por esse acórdão, da decisão do relator, não consistiu em entender-se que o n.º 4 do artigo 687.º do Código de Processo Civil (CPC) permite que um recurso jurisdicional seja admitido e depois recusado pela mesma instância jurisdicional (da qual se recorre). Segundo o acórdão, não se trata de sucessivos despachos de sentido contrário, proferidos pela mesma instância jurisdicional, quanto à admissão (e não admissão) de determinado recurso. O que o acórdão considerou foi que do n.º 5 do artigo 284.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) resulta que, após despacho de admissão e subsequente alegação do recorrente para demonstrar a oposição de julgados, cabe ao relator e, em último termo, à conferência no tribunal a quo (no caso, a Secção do Contencioso Tributário, em formação corrente de julgamento) apreciar a existência de oposição e, consequentemente, decidir o prosseguimento ou não do recurso. E (na medida em que confirmou o despacho do relator que assim discorreu) que faltando os pressupostos do recurso por oposição de julgados, a decisão que não deixa prosseguir o recurso abrange ou prejudica a questão da competência da Secção em razão da hierarquia, da qual só poderia conhecer-se se o recurso por oposição devesse prosseguir.
Ora, nenhuma destas decisivas razões vai o acórdão recorrido buscá-las ao n.º 4 do artigo 687.º do CPC, preceito de que o acórdão não retira e a que objectivamente não pode imputar-se o conteúdo normativo que a recorrente quer ver apreciado.
B) Recurso do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 19 de Setembro de 2007
A recorrente interpôs oportunamente recurso de constitucionalidade do acórdão de 19 de Setembro de 2007. Sobre esse recurso recaiu neste Tribunal, a “decisão sumária” de 18 de Agosto de 2008 (fls. 498), confirmada por acórdão de 30 de Setembro de 2008 (Acórdão n.º 465/08 – fls. 522), no sentido de não poder tomar-se dele conhecimento.
Ter-se-á, pois, formado caso julgado formal sobre a não admissibilidade do recurso de constitucionalidade desse mesmo acórdão (artigo 672.º do CPC), a tanto não obstando a circunstância de, entretanto, ter sido interposto e ter sido rejeitado recurso do mesmo acórdão da Secção para o Pleno da Secção.
De todo o modo, não foi suscitada pela recorrente, no recurso interposto para Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, qualquer questão de constitucionalidade relativamente à norma que se quer ver apreciada [alínea b) do n.º 1 do artigo 70.ºe n.º 2 do artigo 72.º da LTC], sendo certo que na sua interpretação e aplicação se centrava o recurso então interposto pela parte contrária.
Acresce que a opção por não proceder ao reenvio prejudicial da eventual questão de direito comunitário ao Tribunal de Justiça da União Europeia é directamente decorrente da decisão judicial, em si mesmo considerada. Se houver infracção ao valor constitucionalmente atribuído na ordem interna às disposições dos tratados que regem a União Europeia ou a qualquer preceito constitucional de que resulte a obrigatoriedade de proceder a tal reenvio, isso será obra dos tribunais, não do legislador. E, de todo o modo, ainda que seja possível descortinar uma norma de direito interno interposta e aplicada pela decisão de que tenha resultado tal efeito, nunca será o n.º 2 (2ª parte) do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 241/86, de 20 de Agosto. Teria de ser essa norma respeitante aos poderes do tribunal ou ao processamento do recurso, nunca a norma de direito material sobre que versa o litígio.
É fortemente sustentável que, por qualquer destas razões, não possa conhecer-se deste recurso.
C) Condenação da recorrente como litigante de má fé
É razoável sustentar que a recorrente, ao interpor novo recurso de constitucionalidade de um acórdão de que já anteriormente trouxera ao Tribunal Constitucional recurso de cujo objecto não se conheceu por falta dos pressupostos estabelecidos pelo artigo 70.º da LTC, não podia ignorar que estava a deduzir uma pretensão a que se opunha o caso julgado formal. A omissão de qualquer referencia a tal anterior recurso e à respectiva decisão de não conhecimento, indicia ter feito dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, procurando aproveitar a complexidade do processo para induzir os tribunais em erro, fazendo que o tribunal a quo admitisse e o Tribunal Constitucional pudesse vir a conhecer de um recurso inadmissível em razão do caso julgado formal.
Assim sendo, admite-se a hipótese de o Tribunal Constitucional vir a condenar a recorrente como litigante de má fé, ao abrigo dos artigos 456.º e 457.º do CPC e do n.º 6 do artigo 84.º da LTC.”
3. A recorrente respondeu que:
“(…)
15. É certo que, nos termos do artigo 672º do CPC, formou-se o “caso julgado formal” dessa douta Decisão Sumária de 18.08.2008, que decidiu não tomar conhecimento do recurso interposto em 08.10.2007, com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC (a posterior reclamação para a conferência, apresentada em 19.08.2008, e o sequente Acórdão do Tribunal Constitucional, de 30.09.2008, não tiveram por objecto esta matéria).
Contudo,
16. Esse “caso julgado formal” circunscreve-se aos termos e fundamentos em que assentou essa mesma Decisão Sumária, na parte em que esta decidiu não tomar conhecimento do recurso apresentado com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70 da LTC: “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique” (cfr. artigo 673º do CPC - “Alcance do caso julgado”).
17. Foi precisamente isso que sucedeu: segundo aquela Decisão Sumária, de 18.08.2008, o Tribunal Constitucional não podia então tomar conhecimento do objecto do recurso interposto em 08.10.2007, com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, porque o mesmo se mostrava, então, prematuro, já que, à data, ainda não se haviam esgotado os “recursos ordinários”,
18. E este “esgotamento” dos meios de reacção “ordinários”, no âmbito da esfera jurisdicional recorrida, constituía, na óptica do próprio Tribunal Constitucional, condição para o conhecimento do objecto do recurso.
19. Ora, nos termos do artigo 673º do CPC, e do entendimento do próprio Tribunal Constitucional, acima citado, nada impedia – antes demandava – que a Recorrente, assim que esgotados esses meios de reacção ordinários, na esfera do STA, interpusesse novo recurso para o Tribunal Constitucional, do mesmo Acórdão de 19.09.2007, pois então já se verificava o requisito da “definitividade” ou “ultima palavra” do STA.
20. E assim fez.
Em suma, e por um lado,
21. Parece-nos, respeitosamente, que não pode ser rejeitado o conhecimento do objecto do presente recurso, com fundamento no anterior “caso julgado formal” formado por aquela Decisão Sumária, de 18.08.2008.
22. Disso constitui impedimento o disposto no citado artigo 673º do CPC e o conteúdo dessa mesma decisão, na parte – ponto 1.2 – em que a mesma fundamentou concretamente os motivos pelos quais não tomou conhecimento do recurso interposto em 08.10.2007, no segmento em que este se fundou na alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da LTC.
Por outro lado,
23. Como se referiu, através do presente recurso para o Tribunal Constitucional, do Acórdão do STA de 19.09.2007, a Recorrente limitou-se a agir segundo a lei e o entendimento do próprio Tribunal Constitucional.
24. De modo que, parece-nos, não lhe pode ser assacada qualquer litigância de “má fé”.
25. Quando muito, e na pior das hipóteses, a Recorrente poderá ter interpretado mal a lei e o entendimento que sobre a matéria o próprio Tribunal Constitucional vem expressando sobre a matéria - embora julguemos, respeitosamente, que não.
26. Mas não mais do que isso.
27. Sendo certo que a Recorrente nunca omitiu nem pretendeu “esconder” o anterior recurso para o Tribunal Constitucional, do Acórdão de 19.09.2007, que anteriormente havia interposto em 08.10.2007.
28. Aliás, fosse em que circunstância fosse, nunca o poderia ocultar, pois esse recurso – e a sequente tramitação processual que dele foi feita – está nos autos.
29. Sendo certo que não havia, nem há, disposição legal que obrigasse a Recorrente a fazer qualquer referência ao anterior recurso interposto em 08.10.2007 e/ou à tramitação processual subsequente que dele foi feita.
30. Aliás, e pelos motivos acima mencionados, entendia e entende a Recorrente, respeitosamente, que o anterior “caso julgado formal”, resultante da sobredita Decisão Sumária de 18.08.2008, não constitui impedimento ao conhecimento deste recurso.
31. Muito pelo contrário: como se referiu, foi precisamente pelo facto dessa Decisão Sumária ter decidido nos termos em que decidiu, quanto ao anterior recurso apresentado com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, que motivou a Recorrente a apresentar novo recurso, assim que esgotados os meios de reacção “ordinários” contra o Acórdão do STA de 19.09.2007.”
II – Fundamentos
4. Os autos demonstram o seguinte:
a) O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou procedente a impugnação deduzida pela ora recorrente do despacho que indeferiu a reclamação graciosa apresentada contra a liquidação adicional de IVA, referente ao ano de 1995, no montante de 300.987.765$00, e contra a liquidação de juros compensatórios no montante de 105.222.723$00, e, em consequência, anulou as liquidações impugnadas e declarou o direito da impugnante a ser indemnizada, nos termos previstos no artigo 53.º da LGT;
b) A Fazenda Pública interpôs recurso desta sentença.
c) Por acórdão de 19 de Setembro de 1997, o Supremo Tribunal Administrativo (Secção do Contencioso Tributário) concedeu provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação:
“III – Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Mmo Juiz do TAF do Porto que julgou ter a impugnante direito à dedução do IVA na situação em apreço e, em consequência, ordenou a anulação da liquidação efectuada pela AF por à data desta reunir a impugnante os requisitos previstos no artigo 4.º, n.º 2 do DL 241/86, de 20 de Agosto. Vejamos.
A locação de bens imóveis está isenta de IVA, nos termos do n.º 30 do artigo 9.º do CIVA.
Contudo, poderão renunciar a tal isenção, de acordo com o n.º 4 do artigo 12.º do CIVA, os sujeitos passivos que arrendem esses bens ou partes autónomas dos mesmos a outros sujeitos passivos do imposto, determinando o n.º 6 do citado normativo que, para exercer a renúncia prevista nos números anteriores, o locador ou o alienante deverão apresentar declaração, de modelo aprovado, de que conste o nome do locatário ou do adquirente, a renda ou o preço e demais condições do contrato e que, comprovados os pressupostos referidos naqueles números, a administração fiscal emitirá um certificado, isento de selo, que será exibido aquando da celebração do contrato ou da escritura de transmissão.
As formalidades e os condicionalismos a observar pelos sujeitos passivos que decidam optar pela aplicação do IVA à transmissão ou à locação de bens imóveis ou partes autónomas destes encontram-se estabelecidas no DL 241/86, de 20 de Agosto.
Dispõe o n.º 2 do artigo 4.º deste diploma que não será, todavia, permitido aos sujeitos passivos efectivar a dedução relativa a cada imóvel ou parte autónoma no imposto apurado em outros imóveis ou partes autónomas ou quaisquer outras operações, nem solicitar o respectivo reembolso nos termos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 22.º do CIVA, antes da celebração da escritura de transmissão ou do contrato de locação de imóveis.
Da matéria de facto provada resulta que a impugnante optou pela renúncia à isenção de IVA relativamente ao imóvel descrito nos autos, nos termos dos n.ºs 4 a 7 do artigo 12.º do CIVA e do DL 241/86, de 20 de Agosto, tendo solicitado no período 95-06 o reembolso do correspondente IVA, o qual lhe foi deferido.
No entanto, na sequência de acção de fiscalização a que a impugnante foi sujeita, veio a apurar-se que à data em que solicitara aquele reembolso a impugnante ainda não celebrara qualquer contrato de locação do imóvel em causa, o que só viria a suceder em 31 de Outubro de 1997, ou seja, não se mostrava preenchido o requisito previsto no n.º 2 do artigo 4.º do DL 241/86, de 20 de Agosto.
Sendo a exigência dessa formalidade absolutamente essencial, atenta a natureza do imposto em causa, e como, de resto, se salienta expressamente no preâmbulo do DL que estabelece as formalidades e os condicionalismos a observar pelos sujeitos passivos que decidam optar pela aplicação do IVA à transmissão ou à locação de bens imóveis, ao nele se referir que “Nas normas especiais a que deve obedecer o exercício do direito à dedução nestes casos assume ainda particular relevância o seu reporte para a data da escritura ou do contrato de locação …”.
A celebração do contrato de locação apenas em 31/10/1997, ainda que reportando os seus efeitos a 1/2/1995, não pode ter a virtualidade de validar o reembolso efectivado em 06/1995 já que isso violaria expressamente o disposto no n.º 2 do artigo 4.º do DL 241/86, de 20 de Agosto, uma vez que à data em que o pedido de reembolso foi solicitado pela impugnante esta não reunia ainda os requisitos previstos na lei para ter direito ao mesmo.
E nem se diga que esta situação é semelhante à que mereceu despacho concordante do Subdirector Geral dos Impostos de 9/9/2001 (v. fls. 93 dos autos) pois nesse caso tratou-se de uma situação em que o sujeito passivo ainda que tenha solicitado o reembolso numa altura a que ainda não lhe tinha direito o facto é que o mesmo só veio a ser reembolsado numa data em que já possuía as condições para o receber e, como tal, não tendo retirado benefícios desse facto, não faria sentido obrigá-lo a repor para, logo depois, regularizada a situação ele solicitar novamente o reembolso a que então já teria direito.
Contrariamente nesta situação a impugnante à data do reembolso ainda não possuía as condições para o receber, razão por que a sua manutenção geraria uma situação de benefício dum reembolso a que não tinha direito, pois só depois da celebração do contrato de locação a lei lhe permitia efectivar a dedução do imposto.
A legalidade da liquidação impugnada há-de aferir-se, neste caso, à data da efectivação do reembolso do imposto e não à data da liquidação que apenas pretende corrigir uma situação desconforme com a lei aplicável.
Por outro lado, quando, por facto imputável ao sujeito passivo, como é o caso, este beneficiar de reembolso a que não teria direito, são devidos juros compensatórios contados desde a data em que ele beneficiou daquele reembolso até à data do suprimento ou correcção da falta que o motivou (artigos 35.º da LGT e 89.º do CIVA).
E, sendo assim, também será de manter a liquidação efectuada no que concerne aos juros compensatórios.
A sentença recorrida que assim não entendeu não pode, por isso, manter-se”.
d) Notificada desse acórdão a recorrente: (i) arguiu uma nulidade processual por omissão da colocação da questão de interpretação do direito comunitário ao TJCE, em “reenvio processual”, arguiu a nulidade do acórdão e pediu a sua reforma; (ii) recorreu para o Pleno da Secção com fundamento na violação das regras de competência em razão da hierarquia (iii) recorreu para o Pleno da Secção com fundamento em oposição de acórdãos; (iv) recorreu para o Tribunal Constitucional;
e) Por acórdão de 11 de Dezembro de 2007, foram indeferidas as arguições de nulidade e o pedido de reforma do acórdão;
f) A recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional deste último acórdão no segmento que respeita à nulidade processual;
g) E também para o Pleno da Secção por oposição de acórdãos.
h) Este último acórdão para o Pleno da secção não foi admitido, primeiro por despacho do relator e, depois, por acórdão da conferência (21/5/2008 – fls. 486) que confirmou esse despacho;
i) Em 18 de Agosto de 2008, recebido o processo no Tribunal Constitucional, foi aqui proferida “decisão sumária” de não conhecimento dos recursos de constitucionalidade até então interpostos;
j) Pelo acórdão n.º465/08, o Tribunal Constitucional indeferiu a reclamação para a conferência que a recorrente apresentou dessa decisão sumária.
k) Após baixa do processo, o relator no Supremo Tribunal Administrativo veio a proferir despacho a admitir “o recurso interposto para o Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, com fundamento em violação das regras de competência em razão da hierarquia e oposição de acórdãos”, mandando notificar a recorrente para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 284.º do CPPT;
l) Após as alegações tendentes a demonstrar a oposição de acórdãos invocada, o relator do processo no STA proferiu despacho a julgar findo “o recurso apresentado para o Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo com fundamento em oposição entre o acórdão de fls. 326 e 332 dos presentes autos e os acórdãos especificados no requerimento de interposição do recurso, e ainda com fundamento em violação das regras de competência em razão da hierarquia (artigo 284.º, n.º 5 do CPPT).
m) Por acórdão de 10 de Março de 2010 [um dos acórdãos agora objecto de recurso de constitucionalidade] foi indeferida reclamação da recorrente para a conferência, além do mais, com a seguinte fundamentação:
“Por último, alega ainda a reclamante que o artigo 687.º, n.º 4 do CPC, na interpretação segundo a qual o recurso jurisdicional pode ser admitido e depois recusado pela mesma instância jurisdicional da qual se recorre, padece de inconstitucional material, por violação do acesso ao direito (de recurso jurisdicional) e à tutela jurisdicional efectiva, consagrado nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP.
Mas também aqui a argumentação da reclamante não colhe.
Com efeito, sustenta a reclamante que tendo o recurso com fundamento em oposição de julgados sido expressamente admitido por despacho de relator desta Secção Tributária do STA não poderia o mesmo ser agora não admitido pela mesma Secção, através do despacho reclamado porquanto o despacho que admite o recurso apenas não é vinculativo para o tribunal superior para onde se recorre mas já o é para o tribunal recorrido, pois faz caso julgado formal junto desse mesmo tribunal, conforme prescreve o artigo 672.º do CPC.
Todavia, o despacho reclamado não se trata de despacho de não admissão do recurso apresentado com fundamento em oposição de julgados mas antes de despacho proferido, ao abrigo do n.º 5 do artigo 284.º do CPPT, e que, após apreciação da alegação da recorrente, apresentada por esta após notificação do despacho que lhe admitiu o recurso e tendente a demonstrar a invocada oposição, conclui pela não existência desta e, por isso, julga o recurso apresentado e admitido com esse fundamento findo, na falta de um dos seus pressupostos.
E, assim sendo, não se trata de despacho que tenha alterado posteriormente outro despacho já proferido e transitado com o mesmo objecto pois enquanto o primeiro verifica os pressupostos da admissibilidade do recurso o segundo aprecia a alegada oposição de acórdãos.
Sendo certo que, como supra se disse já, tem o relator desta Secção competência para proferir tal despacho.
Razão por que se não verifica a alegada violação das regras de competência nem das normas constitucionais que garantem o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.
E não vindo o despacho reclamado nos seus restantes segmentos decisórios minimamente posto em causa é de confirmar, por isso, o mesmo.”
n) A recorrente pediu a reforma do acórdão referido na alínea anterior e interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC tanto deste acórdão como do acórdão de 19 de Setembro de 2007.
5. Reponderadas as vicissitudes processuais acabadas de descrever e relidas conjugadamente as peças processuais pertinentes, designadamente a decisão sumária de fls. 498, a reclamação contra ela deduzida e o acórdão n.º 465/08 que se lhe seguiu, concluiu-se que a recorrente tem razão na resposta que apresenta ao despacho do relator, no que respeita ao alcance do caso julgado formal decorrente da “decisão sumária” proferida neste Tribunal em 18 de Agosto de 2008 sobre a cognoscibilidade do recurso anteriormente interposto do acórdão de 19 de Setembro de 2007.
Com efeito, relativamente ao recurso desse acórdão – o mesmo acórdão que agora é objecto do novo recurso de constitucionalidade –, que a recorrente trouxera ao Tribunal com fundamento nas alíneas a), b) e i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a decisão sumária fundou-se em que o conteúdo do acórdão não consentia recurso ao abrigo das alíneas a) e i) do .º 1 do artigo 70.º da LTC e que, para poder interpor-se recurso ao abrigo da alínea b) do mesmo preceito, seria necessário que se considerassem esgotados os meios ordinários. E entendeu que tais meios não estavam esgotados porque, tendo sido interposto recurso da mesma decisão também para o Pleno da Secção, ainda que por oposição de julgados, só com a pronúncia do Pleno viria a ser dita a última palavra sobre o litigio na ordem jurisdicional em causa.
Ora, nesta parte a decisão não foi objecto de reclamação para a conferência, pelo que tem de se considerar que o âmbito do caso julgado formal é aquele que resulta da conjugação dessa decisão com os seus fundamentos necessários e integrativos. Deste modo, só com a decisão que veio a julgar findo o recurso para o Pleno ficou definido que o (anterior) acórdão de 19 de Setembro de 2007 é, afinal, a última palavra da jurisdição respectiva. Na verdade o recurso para o Pleno – cuja interposição não pode afirmar-se que tenha obedecido a propósitos meramente dilatórios – não pôde prosseguir “por razões de ordem processual”, o que abre a porta ao recurso de constitucionalidade da decisão anterior de que se tinha procurado, sem sucesso, interpor recurso na ordem interna (n.º 4 do artigo 70.º da LTC).
Não deve, portanto, rejeitar-se o presente recurso com fundamento no caso julgado formal resultante do não conhecimento de anterior recurso de constitucionalidade interposto do mesmo acórdão. Pelo contrário, está agora preenchida a condição que, pelas concretas vicissitudes do processo, então se não verificava e cuja falta legitimou o não conhecimento do recurso.
E, do mesmo passo, falece o pressuposto que foi essencial para que se tenha admitido e submetido a debate a possibilidade de condenação da recorrente como litigante de má fé. Neste contexto processual, o mero silêncio da recorrente sobre o anterior recurso com o mesmo objecto e o seu resultado perde relevância. O Tribunal aceita as observações da recorrente a este propósito como plenamente esclarecedoras e convincentes de que a sua conduta não cabe em qualquer das previsões do n.º 2 do artigo 456.º do Código de Processo Civil.
6. Todavia, nem por isso pode conhecer-se do objecto dos recursos agora em apreciação, reiterando-se aqui, no essencial, as demais razões adiantadas no despacho do relator de fls. 805 e segs., acima transcrito. Aliás, a recorrente nada acrescentou quanto a estas outras razões obstativas ao conhecimento dos recursos, sobre que também foi ouvida.
6.1. Na verdade, como aí suficientemente se explica, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de Março de 2010 não aplicou o n.º 4 do artigo 687.º do Código de Processo Civil (CPC) como permitindo que um recurso jurisdicional seja, num primeiro momento, admitido e, depois, rejeitado pela mesma instância jurisdicional (da qual se recorre).
A segunda pronúncia (do relator e depois da Secção) não emerge do (re)exercício dos mesmos poderes processuais, não é uma mera revogação ou um contrarius actus do despacho que admitiu o recurso. É o exercício de uma competência processual diversa, a verificação da existência de oposição de julgados que justifique ou permita o seguimento dos recursos (liminarmente) admitidos, nos termos do n.º 5 do artigo 284.º do Código de Procedimento e Processo Tributário. Nos recursos por oposição de acórdãos este Código conserva a tramitação – que nos recursos para uniformização de jurisprudência noutros ramos processuais foi simplificada (cfr. M. Aroso de Almeida e C. Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª ed., pág. 1009) – em que está prevista, após o despacho de admissão, uma fase autónoma destinada a verificar o pressuposto específico desses recursos que é a existência de decisões contraditórias. Fase essa e correspondente decisão que não tem por finalidade a revisão do despacho de admissão mediante reexame dos seus mesmos pressupostos, mas a apreciação, após debate a isso especificamente dirigido, da contradição ou oposição de decisões sobre a mesma questão fundamental de direito. Num primeiro momento, o relator no tribunal a quo verifica a observância dos pressupostos gerais de recorribilidade e os requisitos gerais e específicos do requerimento de interposição. Num segundo momento decide-se a questão preliminar da existência de oposição de acórdãos, após contraditório a isso orientado. Aliás, se bem que não seja argumento decisivo, é sintomático dessa natureza que a lei se refira à decisão de não seguimento do recuso pela fórmula julgar “o recurso findo' e não como decisão de “não admissão” ou de 'rejeição' do recurso.
6.2. E igualmente se reiteram aqui – com ressalva da referência ao caso julgado formal que já se reviu - as demais considerações vertidas nesse despacho relativamente ao recurso do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19 de Setembro de 2007.
Este recurso tem por escopo a apreciação da constitucionalidade da 2.ª parte do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 241/86, de 20 de Agosto, na interpretação segundo a qual só é possível solicitar o reembolso de IVA depois de celebrada a escritura pública ( de locação), apesar de, à data do pedido de reembolso de IVA, o inquilino já estar a ocupar o imóvel e a pagar rendas ao respectivo proprietário e daquela escritura pública firmar expressamente o início da locação desde a data dessa ocupação.
Até à prolação do acórdão, designadamente nas contra-alegações apresentadas no recurso interposto pela Fazenda Pública da sentença do tribunal de 1ª instância, não foi suscitada pela recorrente qualquer questão de constitucionalidade relativamente a esta norma. Ora, de modo algum pode pretender-se que houve aqui uma aplicação normativa processualmente imprevisível deste regime porque a sua interpretação e aplicação com o sentido que o Supremo veio a acolher constituía o cerne da pretensão da Fazenda para revogação da sentença recorrida, tal como constituíra a base legal que fundara os actos tributários impugnados.
Assim, não se considera cumprido o ónus a que se referem a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e do n.º 2 do artigo 72.º da LTC, pelo que não pode conhecer-se do objecto do recurso do acórdão de 19 de Setembro de 2007 do Supremo Tribunal Administrativo.
É certo que a recorrente alega a violação de vários preceitos constitucionais que resultaria, em seu entender, do incumprimento do dever de colocação da questão de direito comunitário ao TJCE, em reenvio prejudicial nos termos previstos no artigo 234.º do Tratado da União Europeia (actual artigo 267.º do TFUE). E bem poderá dizer-se que essa desconformidade só emergiu, na concreta conformação do processo, com a prolação do acórdão recorrido, pelo que não era exigível, quanto a ela ou às suas consequências, que a recorrente tivesse suscitado antecipadamente qualquer questão de constitucionalidade.
Mas, independentemente de outras razões cuja consideração fica prejudicada, jamais tal infracção seria normativamente referível – face ao teor objectivo do preceito ou ao discurso fundamentador adoptado pelo tribunal a quo – ao conteúdo do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 241/86, pelas razões que no despacho se adiantaram.
III. Decisão
Pelo exposto decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso e condenar a recorrente nas custas, com 12 unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2011.- Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.