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Processo nº 788/96
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Exposição preliminar elaborada nos termos do artigo 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional.
1 - No Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, A... e C..., operadores de centrais elevatórias dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal de Almada (SMAS), interpuseram 'recurso contencioso de anulação da deliberação tomada pela Assembleia Municipal de Almada na sessão realizada em 6 de Janeiro de 1988 sobre o 'Quadro de Pessoal dos SMAS' e a 'Estrutura Orgânica e Definição de Funções', ex vi do Decreto-Lei nº 247/87, de 17 de Junho'.
Para tanto, na parte que aqui importa destacar, alegaram os recorrentes que as transições de carreira e de grupo resultantes daquela deliberação 'constituem uma violação
flagrante dos direitos adquiridos, protegidos legal e constitucionalmente, que não podem ser revogados (Artigo 83º do Código Administrativo e Artigos 266º e
269º da Constituição)'. Com tal deliberação foi violado 'o direito ao lugar dos Operadores de Centrais, pois os funcionários têm o poder e o direito de exercer as funções do cargo em que tiverem sido legalmente providos, devendo a transição do pessoal para os novos quadros fazer-se na categoria ou classe em que os funcionários se encontram providos, sem prejuízo da atribuição de nova letra de vencimento nos casos em que haja lugar (Artigo 62º, nº 2 do Decreto-Lei nº
247/87, de 17 de Junho)'.
E concluiram, alegando que a deliberação impugnada 'violou os Artigos 266º, nº 1, 268º, nº 2 (in fine) e 269º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, revelando claramente fins persecutórios'.
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2 - Por sentença de 18 de Setembro de 1995, considerando--se que as deliberações impugnadas [deliberações tomadas pela Assembleia Municipal de Almada em 6 de Janeiro e 11 de Março de 1988] não constituem actos administrativos recorríveis foi rejeitado o recurso.
No essencial, ateve-se esta decisão aos fundamentos seguintes:
'Em conclusão: qualquer das deliberações impugnadas, pelo seu tipo e pelo concreto conteúdo, é acto dotado de generalidade e abstracção. Não se esgotam na sua aplicação aos funcionários e agentes que naquele momento integravam o quadro de pessoal do SMAS, sendo de vigência sucessiva e de aplicação a todos os funcionários que venham a integrar esses quadros. Integram o ordenamento. São actos de produção normativa; não são actos de aplicação do ordenamento jurídico mas de conformação desse ordenamento (salvo na medida
(perspectiva Kelseneana) em que todos os actos de produção normativa infraconstitucional são actos de aplicação da norma de hierarquia superior em que se funda a sua validade).
A situação individual e concreta dos recorrentes face ao novo quadro normativo não resulta directa imediata e concretamente lesada por qualquer das deliberações que impugnaram. Só ficará definida mediante um outro acto que - aplicando a disciplina resultante i.a. dessas deliberações da AM quanto ao quadro de pessoal e quanto à estrutura orgânica e definição de funções dos SMAS
- opere a transição para os novos quadros, eventualmente com reclassificação, nos termos do artº 62º /2, 3 e 4 do cit. DL 247//87. Seria deste acto de aplicação das deliberações em causa - eventualmente precedido de impugnação administrativa necessária a torná--lo contenciosamente impugnável, se tomado a um nível hierárquico cujas decisões sejam insusceptíveis de recurso contencioso
- que os recorrentes deveriam ter recorrido contenciosamente, inclusivamente com fundamento na ilegalidade das normas estabelecidas pela Assembleia Municipal de Almada, relativamente à reestruturação dos serviços e quadro de pessoal. As normas contidas nestas deliberações poderiam ser impugnadas - verificados os respectivos pressupostos processuais - mediante o adequado processo de impugnação de normas (processo de recurso de normas ou processo de declaração de ilegalidade). Mas não podem constituir objecto de recurso contencioso de acto administrativo, porque não são acto administrativo (É certo que num acto que não assuma formalmente essa natureza pode estar contida uma decisão que constitua um acto administrativo, sendo nesse caso e nessa medida admitido o recurso contencioso. Todavia os recorrentes não lograram identificar qualquer segmento decisório dentro do conteúdo aprovado
pelas deliberações em causa que possa ser isolado como incidindo concreta e individualmente sobre a sua situação jurídica).'
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3 - Desta decisão levaram os interessados recurso ao Supremo Tribunal Administrativo, havendo nas alegações e no que à matéria de constitucionalidade respeita, argumentado assim:
'- O texto constitucional no artº 268º/4/ garante o direito ao recurso contencioso contra quaisquer actos administrativos, independentemente da sua forma, quando estes diminuem e empobrecem o passado administrativo dos funcionários, como sucede com os recorrentes.
- Há, assim, vontade constitucional de ampliar a possibilidade de impugnação contenciosa contra todos os actos administrativos ilegais mesmo não definitivos e executórios, desde que sejam lesivos dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, sendo certo que as deliberações impugnadas são gravosas para os recorrentes ex vi do artº 18º/2/ da Lei Fundamental.
- No caso dos outros autos estamos perante actos materialmente administrativos, externos, que se projectaram negativa, mas eficazmente, na esfera jurídica dos destinatários, e como tal são recorríveis.
- Verificam-se todos os pressupostos processuais relativos ao Tribunal, às partes, ao objecto e os inominados, pelo que se impõe que o Juiz exercite a autêntica função jurisdicional, o que foi evitado pelo TAC Lx, pela única razão de se tratar de um 'Thema decidendum' de complexidade acrescida, fácil no entanto, de resolver de uma penada, com uma rejeição meramente formal.
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- A interpretação emprestada pela 1ª Instância às normas contidas no artº
39º/2/f/ do DL 100/84 de 29 de Março e no artº 62º do DL 247/87 de 17 de Junho são inconstitucionais por violarem os seus direitos adquiridos funcionais e nesse sentido contrariarem o artº 18º/2/ da Lei Fundamental.'
Por acórdão de 24 de Setembro de 1996, o Supremo Tribunal Administrativo, depois de julgar improcedentes as conclusões constantes da alegação, negou provimento ao recurso.
No essencial, suportou-se na fundamentação seguinte:
'17 - Como atrás ficou já aflorado, a única questão a decidir é a de saber se aquelas duas deliberações da Assembleia Municipal de Almada, uma que aprovou o 'Quadro do Pessoal do SMAS' e outra que aprovou a 'Estrutura Orgânica e Definição de Funções do SMAS', são ou não actos administrativos impugnáveis através da via do recurso contencioso, regulado nos artigos 24º a 58º do L.P.T.A..
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As deliberações em causa, tal como vem decidido são assim verdadeiros actos normativos ou genéricos que não entram no conceito stricto sensu de actos administrativos e sendo assim só os actos de aplicação dessas deliberações que envolvam modificação da situação jurídica dos particulares interessados, são susceptíveis de impugnação contenciosa, tendo justamente em atenção o que dispõe o nº 4 do respectivo artigo 268º da Constituição e que se dispõe no artigo 25º da L.P.T.A. e art. 120 do C.P.A..
Na conclusão oitava das suas alegações dizem os recorrentes que a
'interpretação emprestada pela 1ª Instância às normas contidas no art. 39º 2º al. f) do DL 100/84, de 29 de Março e no artigo 62º do DL nº 247/87, de 17 de Junho, são inconstitucionais por violarem os seus direitos adquiridos funcionais e nesse sentido
contrariarem o artº 18º, nº 2 da Lei Fundamental.'
Mas nenhuma razão lhes assiste.
Primeiro e desde logo porque os recorrentes não dizem quais esses
'seus direitos adquiridos funcionais' que foram violados.
Depois, porque não demonstram nem será fácil demonstrar que os
'direitos funcionais' ou pelo menos todos, estão previstos e protegidos por aquela disposição constitucional.
Finalmente, naquelas disposições legais fixa-se apenas a competência das Assembleias Municipais para deliberar sobre as matérias nelas referidas. E se alguma dessas deliberações, como as deliberações em causa, viola os direitos adquiridos de alguém, quem poderá estar ferido de inconstitucionalidade serão esses actos, mas não aquelas normas, seja qual for a interpretação que lhes seja
'emprestada'.
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4 - Não conformados com o assim decidido, sob invocação do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, interpuseram os interessados recurso para este Tribunal.
E, notificados nos termos do artigo 75º-A, nº 5, daquele diploma, a fim de virem aos autos completar as indicações constantes da petição de recurso, esclareceram no requerimento de fls. 863 e ss. pretenderem ver apreciada 'a inconstitucionalidade//ilegalidade das normas contidas no art. 39º/2/f) do DL
100/84, de 29 de Março e no art. 62º do DL 247/87, de 17 de Junho, devido à interpretação desfocada inconstitucionalmente que lhes foi emprestada', sendo que 'foram violadas as normas constitucionais contidas no art. 83º do Código Administrativo, arts. 266º a 269º da então Constituição da República Portuguesa e actuais arts. 18º/2 e 268/4 da Lei Fundamental, pois tal interpretação desfocada diminuiu, empobreceu e lesou gravosamente os direitos adquiridos e interesses legal e constitucionalmente protegidos dos cidadãos recorrentes'.
Entende o ora relator que, por inverificação de pressupostos de que depende a admissibilidade do recurso constitucional, não pode, do presente, tomar-se conhecimento.
Vejamos porquê.
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5 - Como é sabido, a suscitação da inconstitucionalidade de uma dada norma legal só faz sentido (e, assim, só é relevante para o efeito de abrir a via do recurso de constitucionalidade), se esta vier ou puder ser convocada para o julgamento do caso que emerge do recurso. Com efeito, só no caso de a norma desaplicada, com fundamento em inconstitucionalidade (ou aplicada, não obstante a suspeita de inconstitucionalidade que relativamente a ela se levantou), ser relevante para a decisão da causa (isto é, só quando tal norma for aplicável ao julgamento do caso decidido pelo tribunal recorrido) é que se justifica a intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso. Só em tal caso é que a decisão que este Tribunal venha a proferir quanto à questão de constitucionalidade apreciada pelo tribunal ' a quo' é susceptível de se projectar utilmente sobre a decisão da questão de fundo, ou seja, sobre a decisão da causa julgada pelo tribunal recorrido.
O recurso de constitucionalidade, como tem sido assinalado pela jurisprudência deste Tribunal, desempenha uma função instrumental, no sentido de só deverem ser conhecidas as questões de constitucionalidade suscitadas durante o processo quando a decisão a proferir nesta sede possa influir utilmente na decisão da questão de mérito em termos de o tribunal recorrido poder ser confrontado com a obrigatoriedade de reformar o sentido do seu julgamento.
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6 - À luz destes princípios consagrados na jurisprudência constitucional, pode afirmar-se não se mostrarem reunidos no presente processo todos os requisitos de que depende a admissibilidade do recurso.
Com efeito, a sentença proferida pelo tribunal da 1ª instância rejeitou o recurso com base na consideração de que as deliberações impugnadas, por não constituirem 'actos de aplicação do ordenamento mas de conformação desse ordenamento', serem irrecorríveis nos termos do artigo 25º do Decreto-Lei nº
267/85, de 16 de Julho (Lei de Processo nos Tribunais Administrativos).
E, o Supremo Tribunal Administrativo, sufragando idêntico entendimento, confirmou a decisão do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, entendendo igualmente que as deliberações impugnadas 'não entram no conceito stricto sensu de actos administrativos e sendo assim, só os actos de aplicação dessas deliberações que envolvam modificação da situação jurídica dos particulares interessados, são suscetíveis de impugnação contenciosa, tendo justamente em atenção o que dispõe o nº 4 do referido artigo 268º da Constituição e que se dispõe no artigo 25º da L.P.T.A. e artigo 120º do C.P.A.'.
Ora, é manifesto que o julgamento da questão de inconstitucionalidade das normas postas em causa pelos recorrentes, fosse qual fosse a decisão a proferir por este Tribunal não se projectaria utilmente sobre o mérito da causa.
Com efeito, respeitando a norma do artigo 39º, nº 2, alínea f) do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, à competência das assembleias municipais para 'aprovar os quadros de pessoal dos diferentes serviços do município e fixar, nos termos da lei, o regime jurídico e a remuneração dos seus funcionários' e a norma do artigo 62º do Decreto-Lei nº 247/87, de 17 de Junho,
às regras relativas à alteração de quadros de pessoal das câmaras municipais, serviços municipalizados, federações e associações de municípios, assembleias distritais e juntas de freguesia, não existe entre elas e a fundamentação e decisão do acórdão recorrido uma relação de conexão e de suporte normativo.
Tanto a decisão da 1ª instância como a do Supremo Tribunal Administrativo que aquela confirmou, rejeitaram o recurso a partir da consideração de que as deliberações em causa, dada a sua configuração e concreto conteúdo, não se configuram como actos administrativos susceptíveis de impugnação contenciosa, inexistindo assim os pressupostos processuais exigidos no domínio dos recursos contenciosos.
Aquelas decisões fundaram-se em razões adjectivas, de natureza processual, não chegando em bom rigor a considerar e aplicar como seu fundamento normativo determinante os preceitos que os recorrentes pretendem ver apreciados por este Tribunal.
Fosse qual fosse a decisão que porventura viesse a ser proferida sobre a (in)constitucionalidade de tais normas nunca disporia ela da virtualidade de conduzir à reforma do acórdão recorrido, pela específica razão de não terem servido elas de fundamento normativo ao aresto impugnado.
Deste modo, por inverificação deste pressuposto de admissibilidade, entende-se que não deve tomar-se conhecimento do recurso.
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Cumpra-se o disposto no artigo 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional.
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1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
Nos presentes autos de fiscalização concreta de constitucionalidade em que figuram como recorrentes A... e C..., o relator, na exposição preliminar de fls. 868 a 878, propôs que não se tomasse conhecimento do objecto do recurso em virtude da manifesta inverificação dos pressupostos processuais de que se acha dependente a sua admissão.
Notificadas as partes para sobre aquela se pronunciarem, veio a entidade recorrida, a fls. 880, manifestar a sua inteira concordância como o não conhecimento do recurso.
Por seu turno, a fls. 889 a 892, juntaram os recorrentes um arrazoado de todo impertinente à matéria da causa, no qual, para além de não infirmarem minimamente as razões jurídicas ali aduzidas, se permitiram ainda, solertemente, vir informar que o
'prazo geral de resposta agora é de 10 dias contínuos e não de 5 dias' revelando deste modo total ignorância sobre a existência do nº 2 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 329-A/95 de 12 de Dezembro, que ressalva os prazos directamente estabelecidos nos diplomas que regem o processo constitucional, como é caso do prazo a que se reporta o artigo 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, prazo esse, na actualidade, contínuo e de 5 dias.
Atento o exposto e com base na fundamentação contida na exposição do relator, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em
8 (oito) Ucs.
Lisboa, 4 de Fevereiro de 1997 Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes Vitor Nunes de Almeida Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa