Imprimir acórdão
Proc. nº 269/99
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - J. A. e mulher, M. P., intentaram no Tribunal Judicial da comarca de Guimarães – 3º Juízo -, contra M. C., todos identificados nos autos, acção declarativa sob a forma sumária pedindo a resolução do contrato de arrendamento para habitação do prédio urbano de que são donos e identificam, contrato esse celebrado entre os antepossuidores do imóvel, como locadores, e a primitiva locatária, mãe da demandada, para quem a respectiva posição contratual se transmitiu por morte daquela.
Fundamentaram o pedido na alínea i) do nº 1 do artigo
64º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº
321-B/90, de 15 de Outubro, alegando, para o efeito, a falta de residência permanente da inquilina.
A acção foi contestada e veio a ser julgada procedente, por sentença de 15 de Julho de 1998, e, consequentemente, foi decretada a resolução do contrato de arrendamento e condenada a ré a despejar imediatamente o prédio em causa, entregando-o devoluto aos autores.
Interposto recurso pela demandada para o Tribunal da Relação do Porto, este, por acórdão de 12 de Janeiro de 1999, julgou o recurso improcedente e confirmou a decisão recorrida.
Inconformada, recorreu a ré para o Tribunal Constitucional por não concordar com o acórdão recorrido que, em seu critério,
'deu ao artigo 64º, nº 2, a) e c) do RAU uma interpretação cuja inconstitucionalidade, por violação do artigo 67º da Constituição, se arguiu
[...]'.
Admitido o recurso pelo Desembargador relator – o que não vincula o Tribunal Constitucional, face ao disposto no nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro -, convidou-se a recorrente, nos termos e para os efeitos dos nºs. 1, 5 e 7 do artigo 75º-A do mesmo diploma legal, no pressuposto (implícito) do recurso ser o da alínea b) do nº 1 do artigo 70º desse texto, a indicar a peça processual em que a questão de constitucionalidade foi suscitada e a precisar, inequivocamente, a interpretação normativa que, por alegada inconstitucionalidade, se pretende apreciar.
Respondeu a recorrente no sentido de, quanto ao primeiro ponto, ter suscitado a questão na minuta das alegações da apelação para o Tribunal da Relação – mais precisamente na conclusão 6ª - repetindo-a no recurso de constitucionalidade (conclusão 3ª da respectiva peça processual).
Lê-se, com efeito, na citada conclusão 6ª:
'Ao decretar o despejo nas condições de facto descritas, a sentença recorrida, reduzindo a categoria família, do ponto de vista patrimonial, a um vínculo de dependência económica, que aliás se deve presumir, pelo menos no sentido de cooperação ou interdependência, e do ponto de vista pessoal a uma simples relação pais/filhos, fez errada aplicação da lei [artigo 1º da Lei nº 1662, de
2/9/24, artigo 46º, nº 2, alínea b), da Lei nº 2030, de 22/6/48 e artigo 64º, nº
2, alíneas a) e c), do RAU], dando a esta última norma uma interpretação manifestamente inconstitucional que se argui, por afrontadora do artigo 67º da Constituição, que o Tribunal de recurso não pode sufragar' (sublinhados originais).
Nas alegações apresentadas oportunamente, nos termos do artigo 79º da Lei nº 28/82 (e não extemporaneamente, como observa a recorrente quando notificada para o efeito, pois extemporâneas foram as suas primeiras alegações, por prematuras), desenvolve-se o mesmo tipo de argumentação, agora incluindo também no elenco de normas constitucionais alegadamente ofendidas a do artigo 71º da Lei Fundamental.
Os recorridos vieram aos autos informar que não ofereciam alegações, prescindindo do respectivo prazo.
Foi ainda a recorrente ouvida, nos termos do nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil, sobre a eventualidade do não conhecimento do objecto do recurso, por falta dos pressupostos de admissibilidade do recurso, dada a possibilidade de se vir a entender não mais se pretender de que a mera reapreciação da anterior decisão, intento não compaginável com o recurso concreto de fiscalização da constitucionalidade e sua natureza.
Respondeu apenas a recorrente, em ordem a sustentar estarem preenchidos os pressupostos de recurso de constitucionalidade.
II
1. - Importa, antes de mais, delimitar o objecto do presente recurso.
Sendo este definido pelo requerimento de interposição verifica-se estar questionada uma determinada interpretação das normas das alíneas a) e c) do nº 2 do artigo 64º do RAU, que, dispondo sobre os casos em que o senhorio pode resolver o contrato de arrendamento, assim preceitua, na parte impugnada e na que com ela naturalmente se imbrica:
'1.- O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário:
------------------------------------------------
i. Conservar o prédio desabitado por mais de um ano ou, sendo o prédio destinado a habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia;
---------------------------------------------------
2.- Não tem aplicação o disposto na alínea i) do número anterior: a) Em caso de força maior ou de doença;
---------------------------------------------------- c) Se permanecerem no prédio o cônjuge ou parentes em linha recta do arrendatário ou outros familiares dele, desde que, neste último caso, com ele convivessem há mais de um ano.'
É este o quadro normativo cuja apreciação de constitucionalidade se pretende, numa interpretação normativa que, no esclarecimento prestado ao abrigo do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, 'deixou cair' a alínea a) do nº 2 citado, reportando-se apenas à alínea c), interpretada 'no sentido de que a família se dissolve por doença do seu principal elemento e no sentido de que a expressão 'familiares' se reconduz a um vínculo de dependência económica' (sublinhados originais).
Invocando ao longo dos autos quer a alínea c) do nº 2 do artigo 64º, quer as alíneas a) e c) conjuntamente, não se torna, na realidade, fácil determinar que norma se pretende impugnar em sede de recurso de constitucionalidade.
Certo é, no entanto, que no momento processualmente mais adequado apenas se apontou a alínea c) e também só nesta dimensão foi apresentada a questão perante o tribunal a quo que, como tal, só sobre ela se pronuncia.
Delimita-se, por conseguinte, o recurso em causa à norma da alínea c) do nº 2 do artigo 64º do RAU, naturalmente conexionada com a alínea i) do seu nº 1.
2. - Coloca-se, no entanto, o problema de saber qual a dimensão interpretativa em causa.
Com efeito, o acórdão da Relação pronunciou-se sobre a convocada questão de constitucionalidade na exacta medida do artigo 67º da Lei Fundamental para, reconhecendo o elenco das várias incumbências que oneram o Estado na tarefa de proteger a família, não surpreender em nenhuma delas enquadramento adequado para o caso vertente. O artigo 67º, pondera-se, reporta-se à família em si, como elemento fundamental da sociedade, ocupando-se de princípios com vista à sua protecção social, económica, assistencial, educacional, de planeamento familiar, etc., abstraindo das condições externas da habitabilidade, já que destas cuida o artigo 65º. De qualquer modo, escreve-se, não se verifica 'agressão a qualquer família porque, e por razões estranhas à vontade de qualquer pessoa medianamente formada, a tal célula da sociedade, devido à doença do elemento principal da mesma, já não tinha expressão factual'.
Este entendimento subentende, como é claro, uma determinada factualidade, ora insindicável, e o juízo que o citado acórdão emitiu quanto ao respectivo suporte legislativo.
Disse-se:
'Quando o artigo 1º e seus parágrafos da Lei nº 1662, de 2/9/1924, admite a transmissão do arrendamento para o «cônjuge ou qualquer herdeiro legitimário», tal não autoriza [...] que por morte do arrendatário fiquem investidos no contrato dois ou mais herdeiros e que a sucessão no arrendamento se faça atenta a sobrevivência após a morte de um deles. O que se pode retirar do texto da lei é que sucederia no arrendamento qualquer um dos herdeiros e nada mais. Quando o artigo 46º, nº 2, b), da Lei nº 2030, de 22/6/1948, admite a transmissão para os «cônjuge ou descendentes, preferindo os mais próximos»
[...], «os mais próximos» têm em conta não todos, pois daí resultaria manifesta confusão que, seguramente, o legislador não quis, mas antes os mais próximos em termos de grau de parentesco – cfr. o artigo 2160º do Código Civil [...].'
Para além desta compreensão do âmbito da norma, pode perguntar-se se a convivência a que a norma em discussão se refere implica dependência económica, de modo a considerarem-se familiares, para os efeitos desta norma, apenas aqueles que estejam economicamente dependentes do elemento principal da família.
Só que, a este respeito, a conexão económica não foi alegada pela ora recorrente, não podendo, como tal, provar-se.
De resto, escreve-se, ainda que se tivesse articulado matéria pertinente, 'não se vê como seria possível provar a aludida conexão económica ao familiar que permaneceu no locado quando a arrendatária não trabalha há vinte anos [...] por via da doença que padece, e, como rendimento, ao que resulta da matéria de facto provada, apenas tem a pensão de reforma que, face à sua profissão (operária textil e empregada doméstica), deve ser modesta'.
3. - Ora, a reacção da recorrente, no tocante à interpretação feita pelo acórdão recorrido da norma do artigo 64º, nº a, alínea c) do RAU, assenta na desprotecção da família que, em seu entender, essa interpretação implica, reduzida a tutela constitucional à verificação da existência, ou não, de um vínculo de dependência económica entre arrendatário e familiares.
A equacionação do problema permite reflectir quanto à eventual não verificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso, por não ser caso de apreciar uma dada norma mas sim de reapreciar o anteriormente decidido, o que, obviamente, não se integra no poder de cognição do Tribunal Constitucional. A concluir-se por esta última hipótese, não se conheceria do objecto do recurso, por falta de um dos pressupostos da sua admissibilidade.
A resposta não se configura simples, recortando-se o caso sub judice como mais um exemplo de situação de fronteira entre uma questão de inconstitucionalidade normativa de uma dada interpretação e o amparo constitucional, em que se visa o controlo da decisão judicial, em si mesma considerada.
No concreto caso, no entanto, entende-se que se está perante uma dimensão normativa cuja apreciação se pretende obter em sede de recurso de constitucionalidade. Esta é, na verdade, a tese que melhor se compagina com as passagens em que a questão foi, ao longo dos autos, suscitada, em torno de uma norma – vinda já do Código Civil, com expressão no artigo 1093º, nº 2, alínea c) - e do entendimento dispensado quanto à necessidade de verificação de subsistência de dependência económica, com significativo apoio doutrinal e jurisprudencial (cfr. inter alia, Pereira Coelho, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 120, pág. 84; Pais de Sousa, Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, Lisboa, 5ª ed., pág. 213; Aragão Seia, Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, Coimbra, 4ª ed., 1998, pág. 372; acórdãos das Relações de Lisboa e do Porto de 27 de Outubro de 1994 e de 27 de Setembro do mesmo ano, in – Colectânea de Jurisprudência, 1994, tomo 4, 129 e
198, respectivamente, e da Relação de Lisboa, de 9 de Fevereiro de 1995, na mesma publicação, 1995, tomo 1, págs. 125 e ss.).
4. - Sendo de conhecer do objecto do recurso, desde já se adianta, no entanto, não merecer este provimento.
Não se duvida, a este propósito, que a protecção da família seja uma incumbência dirigida pelo legislador constitucional ao legislador ordinário, aliás e desde logo, como reflexo do princípio da dignidade humana que o artigo 1ºda CR acolhe.
Como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, enquanto o artigo 36º do mesmo texto garante o direito das pessoas a constituir família, o artigo 67º garante o direito das próprias famílias à protecção da sociedade e do Estado e à realização das condições propiciadoras da realização pessoal dos seus membros (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, pág. 351). Para estes autores, trata-se de 'um típico «direito social», ou seja, de um direito que se analisa numa imposição constitucional de actividade ou de prestações por parte do Estado (cfr. nº 2)' (ibidem).
No entanto, o comando constitucional com expressão nos vários números deste artigo 67º, enuncia uma série de incumbências do Estado para a protecção da família mas, só por si, não é directamente exequível, necessitando da interposição do legislador.
E porque o artigo 67º da CR se articula com o artigo 65º do mesmo diploma, é pertinente lembrar que a Constituição reconhece a todos os cidadãos o direito a uma habitação dimensionada ao número de membros da respectiva família, onde possa ser preservada a intimidade individual e a privacidade familiar, que ofereça condições de vida condigna e minimamente integrada na vida da comunidade, como se sublinha noutro aresto deste Tribunal, o nº 280/93, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 24, págs.
741 e ss..
Só que o direito à habitação é um direito a prestações, o que implica acções ou prestações do Estado.
'Está-se perante um direito [diz-nos outro acórdão, o nº 130/92, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Julho de 1992] cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, cuja efectividade está dependente da «reserva do possível» (Vorbehalt des Möglichen), em termos políticos, económicos e sociais (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 365, e 'Tomemos a Sério os Direitos Económicos, Sociais e Culturais', separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia, Coimbra, 1984, pág. 26; J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976
(reimpressão), Coimbra, 1987, págs. 199 e segs. e 343 e segs.).'
Como mais se ponderou no citado acórdão, sempre debruçado sobre o direito à habitação, traduz-se este, no seu aspecto positivo,
'na exigência de medidas e prestações do Estado visando a sua realização mas que todavia não confere a qualquer cidadão um direito imediato a uma prestação efectiva, porquanto não é directamente aplicável ou exequível, exigindo uma actuação do legislador que permita concretizar tal direito, pelo que o seu cumprimento só pode ser exigido nas condições e nos termos definidos na lei'.
As considerações expostas, tecidas para o artigo 65º da CR, valem, ao menos adaptadamente, para o artigo 67º do mesmo texto.
De acordo com o que já se observou em acórdão deste Tribunal, uma vez que se está perante um direito a prestações não vinculadas, a norma constitucional invocada só ganha um conteúdo positivo através da sua projecção, no direito à habitação, o que, in casu, de forma alguma significa o direito imediato a uma prestação efectiva, dada a imprescindibilidade daquela interpositio (cfr. acórdão nº 829/96, publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Março de 1998).
Retomando a última parte da transcrição feita, haverá tão só que atentar se a norma objecto do presente recurso, como concretização do direito infraconstitucional no âmbito dos casos em que o senhorio pode resolver o contrato de arrendamento, se revela inconstitucional – à sombra dos valores constitucionalmente protegidos pelo artigo 67º, ou mesmo outros, com os do artigo 71º, convocado mais tardiamente.
5. - Ora, a norma do RAU em sindicância, seja na sua literalidade, seja na interpretação que o Tribunal a quo lhe deu, não sofre, face às considerações expostas, de vício de inconstitucionalidade, por ofensa dos princípios e normas cuja violação se alega e defende.
A incumbência do Estado constitucionalmente fixada que, para protecção da família, persegue a efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros. Pela sua natureza, a norma do artigo 67º da CR encerra uma teleologia de preservação do agregado familiar e daí destacar, naquele espírito, a promoção da independência social e económica dos agregados familiares, o que naturalmente implica que uma norma legal que contrarie esse teleologia será inconstitucional.
Sem embargo, a norma do RAU está inserida no regime jurídico da resolução do contrato de arrendamento para habitação e a sua interpretação, ao exigir uma dependência de ordem económica por parte dos familiares do arrendatário quando, ao contrário deste, residam no espaço locado
- aos quais compete o ónus de provar essa conexão de matriz económica - não surpreende inconstitucionalidade. Não é censurável, deste ponto de vista, a medida legislativa que, perante o inegável enfraquecimento que a ausência dessa dependência importa, pondere os outros valores constitucionalmente tutelados em jogo, relativos ao senhorio e ao direito de propriedade, fazendo prevalecer estes últimos.
Justifica-se, assim, um juízo de não inconstitucionalidade – aliás, na linha já traçada por anterior jurisprudência, como é o caso do acórdão deste Tribunal, nº 952/96, inédito.
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2000 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida