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Proc. nº 265/97
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. A SRF, S.A. (ora recorrida) deduziu oposição à execução fiscal que lhe foi instaurada pela CD, no Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, oposição que, por decisão de 20 de Dezembro de 1994, foi julgada improcedente.
2. Inconformada com o assim decidido, a SRF, S.A., recorreu para o Tribunal Tributário de 2ª Instância que, por acórdão de 30 de Janeiro de 1996, julgou o recurso deserto por falta de alegações tempestivas.
3. Novamente inconformada, aquela Sociedade recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo que, por acórdão de 19 de Março de 1997, julgou o recurso procedente. Para o feito, recusou aplicar o disposto no art. 356º, nº 1 do Código de Processo Tributário, 'por violação do princípio constitucional do due process of law, ínsito no direito de acesso aos tribunais, previsto no art. 20º, nº 1, da Constituição da República'. Escudou-se, para tanto, na seguinte argumentação:
'Deste modo, temos que no processo de oposição à execução fiscal se aplicam sucessivamente as seguintes regras processuais: até (inclusive) à notificação da oposição ao representante da Fazenda Pública aplicam-se os artigos 285º a 292º; desde essa notificação até à sentença aplicam-se as regras do processo de impugnação judicial, ex vi do art. 293º, nº1; a partir da sentença e aos recurso jurisdicionais aplicam-se os art.s 356º e 357º, próprios dos recurso de actos jurisdicionais nas execuções fiscais. O Mº Juiz a quo seguiu impecavelmente esta lógica sistemática do Código de Processo Tributário, com a qual a recorrente não se conforma. Terá o Mº Juiz a quo trilhado o melhor caminho ? Indo directamente ao assunto: será que o art. 356º, nº 1, conjugado com os art.s
357º e 171º, nº 4 do CPT, não será materialmente inconstitucional por violação do princípio constitucional do due process of law, ínsito no art. 20º, nº 1, da Constituição. Desde logo, o grande número de recursos julgados desertos com base no art. 356º do CPT mostra que a solução legal não é a melhor. Por outro lado, o desencontro da jurisprudência deste STA a respeito da interposição do aludido art. 356º, nº 1, do CPT, evidente pelo confronto da jurisprudência citada na sentença recorrida com a citada no douto parecer do Mº Pº (fl. 88) – até há bem pouco tempo havia três interpretações neste STA – aconselha uma solução criadora de melhor direito. Depois, o desencontro de regimes especiais de recurso no mesmo Código de processo só tem causado confusão
às partes, as quais caem em verdadeiros 'alçapões', com o consequente naufrágio dos direitos substantivos. Vejamos a questão de constitucionalidade do art. 356º, nº 1, CPT, na parte em que impõe que juntamente com o requerimento de recurso sejam logo apresentadas as alegações e conclusões, sob pena de deserção. Diz o art. 20º, nº 1, da Constituição, que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos. Neste direito de acesso aos tribunais está abrangido o direito a um processo justo, a um processo devido, ao devido processo em justiça e direito, a um processo que assegure a tutela efectiva dos direitos e interesses legítimos dos justiciáveis, a um processo não arbitrário mas garantístico. Como disse o Dr. Cardoso da Costa na declaração de voto aposta no acórdão nº 404/87, do Tribunal Constitucional (II Série do DR de 21.12.87) «é inquestionável que o processo, em geral, não é imune
à Constituição e que desta decorrem implicitamente, quanto à sua conformação e organização, determinadas exigências impreteríveis, que são directo corolário da ideia de Estado de Direito democrático: bem se sabe, com efeito, como um dos elementos estruturais deste modelo de Estado é a observância de um due process of law na resolução dos litígios que deva ter lugar no seu âmbito». A regra do due process of law tem sido seguida pelo Tribunal Constitucional especialmente a propósito da violação do contraditório (cfr. acórdãos nºs
404/87, 85/88, 396/89, 222/90 e 605/96, os três primeiros publicados na II série do DR de 22.12.87, 22.8.88 e 14.9.89, o quarto nos acórdãos do TC, 16º vol.,
1990, pp. 635 e seguintes e o último na II série do DR de 15.3.96). Mas onde o TC analisa as várias vertentes do direito de acesso aos tribunais é no acórdão nº 960/96, publicado na II série do DR de 19.12.96. Escreveu-se neste aresto:
«Como é sabido a Constituição não enuncia expressamente, como acontece no domínio do processo penal, quaisquer princípios ou garantias a que deva subordinar-se o processo judicial em geral, salvo o consignado nos artigos 209º e 210º. É, todavia, inquestionável que as regras do processo, em geral, não podem ser indiferentes ao texto constitucional de que decorrem implicitamente, quanto à sua conformação e organização, determinadas exigências impreteríveis, que são directo corolário da ideia de Estado de direito democrático - bem se sabe, com efeito, como um dos elementos estruturantes deste modelo de Estado é a observância de um due process of law na resolução dos litígios que no seu âmbito deva ter lugar.
(...). Para além do direito de acção, que se materializa através do processo, compreendem-se no direito de acesso aos tribunais, nomeadamente: (a) o direito a prazos razoáveis de acção ou de recurso; (b) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas; (c) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas; (d) o direito a um processo de execução, ou seja, o direito a que, através do órgão jurisdicional se desenvolva e efective toda a actividade dirigida à execução da sentença proferida pelo tribunal». Importa reter, in casu, que o direito ao due process of law é o direito a um processo justo. Não é justo um processo ou lei processual que, sem razão plausível, multiplique os processos especiais ou as especificidades dentro dos processos já de si especiais em relação ao processo civil. Não é justo um processo que estabeleça como que um regime regra sob a forma de interposição do recurso (art. 171 do CPT) e depois, no fim de um longo diploma, estabeleça uma especificidade sobre a forma de interposição dos recurso de actos jurisdicionais no processo de execução fiscal (art.s 356º, nº 1, do CPT). Os contribuintes, ao lidar com a lei processual, estão a contar com a aplicação de uma regra, e depois são surpreendidos com a aplicação de uma regra totalmente diferente e inversa. Não há qualquer razão lógica para esta especificidade introduzida nos recursos interpostos nos processos de execução fiscal. Os recorrentes são surpreendidos, como que «rasteirados», com regras de processo arbitrárias e sem justificação racional plausível. Demais que o art. 2º, nº 3, da Lei de autorização nº 37/90, de 10 de Agosto, ordenou que as regras dos recursos visassem maior celeridade processual, mas que assegurassem a tutela efectiva dos direitos e interesses legítimos dos contribuintes. A lei de autorização mandou que se fizessem vários regimes de recursos, mas aludiu apenas ao regime dos recursos, como que prevendo apenas um regime especial de recursos relativamente ao regime geral do processo civil. A forma de interposição dos recursos prevista no art. 171º do CPT concede uma tutela muito maior aos direitos dos contribuintes que a forma de interposição dos recursos prevista no art. 356º do CPT, nº 1, do CPT. Dá-lhes mais tempo para fazerem as alegações, permite-lhes que não façam as alegações em vão para a hipótese de o tribunal não admitir o recurso e está mais de acordo com a forma de interposição dos recursos em processo civil. Por todas estas razões, é um acto de «higiene jurídica» eliminar uma regra que viola o princípio do due process of law ou do processo justo, a fim de não se coartarem arbitrariamente os direitos dos contribuintes. E uma vez eliminada a regra constante do art. 356º, nº 1, do CPT, já é de aplicar o regime geral tributário previsto no nº 1 do art. 171º do CPT, admitindo-se os recursos interpostos em processo de execução fiscal, ou no incidente de oposição à execução fiscal, que não venham desde logo acompanhados das alegações e conclusões. Nestes termos, recusando a aplicação do art. 356º, nº 1, do CPT, por violação do princípio constitucional do due process of law, ínsito no direito de acesso aos tribunais previsto no art. 20º, nº 1, da Constituição, acordam os juizes deste STA em conceder provimento ao recurso e em revogar o acórdão recorrido'.
4. É desta decisão que vem interposto pelo representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC, o presente recurso de constitucionalidade, tendo por objecto a norma constante do artigo 356º, nº1 do Código de Processo Tributário (aprovado pelo Decreto-Lei nº 154/91, de 23 de Abril), a que o Tribunal recorrido recusou aplicação com fundamento na violação princípio constitucional do due process of law, ínsito no direito de acesso aos tribunais previsto no art. 20º, nº 1, da Constituição.
5. Já neste Tribunal foi o Ministério Público, recorrente, notificado para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
'1º - A norma constante do art. 356º do Código de Processo Tributário, interpretada em termos de estabelecer que nos recursos de decisões jurisdicionais proferidas no âmbito da oposição à execução fiscal, cumpre ao recorrente cumular a respectiva alegação com a interposição do recurso, não viola os princípios da igualdade de armas e do contraditório, ínsitos no artigo
20º da Constituição da República Portuguesa.
2º - Termos em que deverá proceder o presente recurso'.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II – Fundamentação.
6. O artigo 356º, nº 1, do Código de Processo Tributário (aprovado pelo Decreto-Lei nº 154/91, de 23 de Abril), ora objecto de recurso, dispunha como segue: Artigo 356º
(Recursos de actos jurisdicionais)
1. Os recursos das decisões de natureza jurisdicional serão interpostos por meio de requerimento com a apresentação das alegações e conclusões no prazo de oito dias a contar da notificação.
2. (...).
Importa, antes de mais, começar por evidenciar que o preceito em que se insere a norma cuja constitucionalidade agora vem questionada não se encontra já em vigor, por ter sido revogado pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº 433/99, de 26 de Outubro, que aprovou o novo Código de Procedimento e Processo Tributário. Hoje, o regime previsto para a apresentação de alegações no recurso jurisdicional interposto no âmbito de um processo de execução fiscal consta do artigo 282º, nº
3, do Código de Procedimento e Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei nº
433/99, de 26 de Outubro, que prescreve (diferentemente do que acontecia com a norma que agora constitui objecto de recurso) que o prazo para alegações a efectuar no tribunal recorrido é, para o recorrente, de 15 dias contados da notificação do despacho que admita o recurso. Não obstante, continua a ter interesse conhecer do objecto do presente recurso reportado à norma do artigo 356º do anterior Código de Processo Tributário, porque foi essa a norma aplicada nos autos, ao abrigo, de resto, do art. 4º do Decreto-Lei nº 433/99, de 26 de Outubro, segundo o qual o novo Código de Procedimento e Processo Tributário só se aplica aos procedimentos iniciados e aos processos instaurados após 1 de Janeiro de 2000, data da sua entrada em vigor. Avançar-se-á, por isso, para o conhecimento do objecto do recurso.
7. A questão de constitucionalidade que agora vem colocada à consideração deste Tribunal pode enunciar-se da seguinte forma: a norma constante do art. 356º, nº
1 do anterior Código de Processo Tributário, interpretada em termos de estabelecer que nos recursos de decisões jurisdicionais proferidas no âmbito da oposição à execução fiscal, cumpre ao recorrente cumular a respectiva alegação com a interposição do recurso, a apresentar no prazo de oito dias a contar da notificação da decisão recorrida, viola o princípio constitucional do due process of law, ínsito no direito de acesso aos tribunais previsto no art. 20º, nº 1, da Constituição ? Cremos que não. Como, bem, nota o Ministério Público, a situação que agora é objecto dos autos
é, de algum modo, paralela à que se verificava com o art. 76º do Código de Processo do Trabalho de 1988 (recentemente revogado pelo Decreto-Lei nº 480/99, de 9 de Novembro, que aprovou o novo CPT), que preceituava, como acontece com a norma ora objecto de recurso, que as alegações fossem apresentadas juntamente com o requerimento de interposição do recurso, no prazo de oito dias contados da notificação da decisão recorrida. Ora, a propósito daquele artigo 76º, decidiu já o Tribunal Constitucional, nos acórdãos nºs 51/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., págs. 597 e segs.), 266/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., págs. 699 e segs.) e 313/2000 (inédito), que a exigência de que as alegações fossem apresentadas juntamente com o requerimento de interposição do recurso, no prazo de oito dias contados da notificação da decisão recorrida, não era inconstitucional. Como se ponderou logo no acórdão nº 51/88:
'Se é certo poder dizer-se que, não obstante a Constituição da República não adiantar expressamente nenhum princípio em matéria de recursos, tal matéria não
é constitucionalmente neutra, nem significa que a lei possa discipliná-la de forma arbitrária (cfr. acórdão nº 199/86, no Diário da República, 2ª série, de
25 de Agosto de 1986), a verdade é que não se consegue descortinar, neste caso, qualquer violação do art. 20º, nº 2, da Constituição. As alegações são, do ponto de vista lógico, um momento ou fase da marcha dos recursos típicos, cujo momento de apresentação pode, cronologicamente, recair em diferentes fases do processo, consoante as previsões da lei (cf., por todos Armindo Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil, III, «Recursos», 1982, pp. 281 e segs.). São, por isso, uma das condições necessárias de natureza meramente processual, para que o tribunal de recurso se possa ocupar do objecto deste. Ora, como sublinha Castro Mendes (Direito Processual Civil, Recursos, 198, p.
138, nota 1), «só perante cada regulamentação – dos vários ramos de direito processual – se pode averiguar se as alegações têm ou não de ser apresentadas no requerimento de interposição do recurso». E, conforme acrescenta Armindo Ribeiro Mendes (ob. cit., pp. 103 e 104), a norma de direito processual laboral segundo a qual o requerimento de interposição de recurso deve conter logo as alegações – aliás, à semelhança do que também acontece, nos termos do artigo 259º do Código das Contribuições e Impostos, em direito processual fiscal – é precisamente uma das especialidades do direito processual laboral relativamente ao direito processual civil. Mas é evidente que essa especialidade [do regime do direito processual laboral] não coarcta ou elimina, ou sequer dificulta de modo particularmente oneroso, o direito ao recurso que o Código de Processo do Trabalho reconhece, não violando o art. 20º, nº 2, da Constituição, pois que, se o recorrente cumprir a obrigação que a lei lhe impõe de fazer a sua alegação de recurso no requerimento de interposição, o processo seguirá os seus termos'.
E, no mesmo sentido, pode ler-se no Acórdão nº 266/93:
'A exigência de a alegação ter de constar do requerimento de interposição de recurso ou, quando muito, de ter de ser apresentada no prazo de interposição do recurso de oito dias, não diminui, por si mesma, as garantias processuais das partes, nem acarreta um cerceamento das possibilidades de defesa dos interesses das partes que se tenha de considerar desproporcionado ou intolerável. Na verdade, o legislador tem ampla liberdade de conformação no estabelecimento das regras sobre recursos em cada ramo processual [...].
O essencial da argumentação antes exposta vale, com as necessárias adaptações, para a situação que agora é objecto dos autos, conduzindo a considerar que também o regime previsto no artigo 356º, nº 1, do CPT/91, não diminui intoleravelmente as garantias processuais do recorrente, nem implica um cerceamento das suas possibilidades de defesa que se tenha de considerar desproporcionado ou intolerável, em termos de dever considerar-se que estamos perante uma solução constitucionalmente censurável. Desde logo, não só a solução processual que ali se consagra decorre da mesma liberdade de conformação do legislador no estabelecimento das regras sobre recursos em cada ramo processual, que se invocou expressamente no acórdão nº
266/93, como obedece a um idêntico objectivo de celeridade e economia processual. Acresce, como já se referiu, que não se vê no prazo concretamente fixado para a apresentação de alegações (oito dias, contados da notificação da decisão recorrida) um encurtamento que se repercuta no adequado exercício do direito do recorrente de modo a retirar-lhe a possibilidade de uma tutela jurisdicional efectiva. Não pode, por isso, afirmar-se, que aqueles objectivos de celeridade e economia processual são alcançados à custa de uma intolerável diminuição das garantias de defesa. Finalmente, deve ainda evidenciar-se que a solução processual consagrada no art.
356º do CPT/91 (obrigatoriedade de cumular a alegação com o requerimento de interposição do recurso, a apresentar no prazo de oito dias contados da notificação da decisão recorrida) não era única no âmbito dos direitos processuais então em vigor. A mesma regra processual podia encontrar-se, designadamente, no âmbito do processo do trabalho (como já vimos) ou no âmbito do processo penal. Tratava-se, por isso, de uma solução processual que estava em consonância com outras do sistema jurídico, o que retira valor ao argumento
(decisivo, na perspectiva da decisão recorrida) de que a mesma traduz a aplicação de uma regra processual com que os seus destinatários não podiam legitimamente contar.
Tudo ponderado, conduz a que não se considere inconstitucional a norma agora objecto de recurso III – Decisão.
Por tudo o exposto, decide-se: a. conceder provimento ao recurso; b. ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de constitucionalidade. Lisboa, 20 de Dezembro de 2000 José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com dispensa de visto) José Manuel Cardoso da Costa