Imprimir acórdão
Proc. nº 533/98
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
A..., identificado nos autos, foi condenado, pelo Tribunal Judicial da Comarca da Ribeira Grande, por sentença de 10 de Agosto de 1994, pela prática de um crime previsto e punido pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril
(condução sob a influência do álcool), nas penas principal de sete meses de prisão e acessória da inibição da faculdade de conduzir pelo período de um ano. A pena principal foi, no entanto, suspensa por um ano, nos termos do artigo 48º do Código Penal. Recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa, alegando, além do mais, que a Senhora Juíza, ao aplicar a suspensão da pena de prisão sem nela abranger a inibição da faculdade de conduzir, 'não só violou o princípio constitucional do carácter unitário das penas como, igualmente, os pressupostos de suspensão das mesmas decorrentes do artigo 48º do Código Penal'. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 14 de Fevereiro de 1995, considerou que a suspensão da pena principal devia englobar a pena acessória, o que decretou, assim concedendo provimento ao recurso. Baixaram os autos à Comarca e, aqui, foram lavrados dois despachos judiciais: a)- o primeiro, de 8 de Fevereiro de 1996, transitado, no qual o arguido foi
'solenemente advertido' e se prorrogou o período de suspensão da pena por mais um ano, por se verificar a sua condenação por crime idêntico, em 30 de Maio de
1995, com pena de multa e inibição efectiva de conduzir por nove meses (sentença de 31 de Maio de 1995, no processo sumário nº 189/95, do mesmo Tribunal); b)- o segundo, de 24 de Outubro de 1997, revogou a suspensão da pena aplicada nestes autos, principal e acessória, após junção de certidão de sentença condenatória, de 10 de Dezembro de 1996, proferida no mesmo Tribunal em que, por crime idêntico (processo sumário nº 221/96) foi o arguido condenado na pena de oito meses de prisão e em nove meses de inibição de condução automóvel, penas suspensas na sua execução por dois anos. Interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação deste último despacho, agora suscitando a questão da inconstitucionalidade do disposto no nº 2 do artigo 495º do Código de Processo Penal (CPP), ao possibilitar a aplicação de medida privativa de liberdade por simples despacho, sem precedência de acusação legalmente formulada e da possibilidade de o próprio exercer o contraditório, designadamente em sede de julgamento, o que, em seu entender, viola os princípios constitucionais do contraditório e do acusatório, e, bem assim, o disposto no artigo 32º, nºs. 1, 2, 4 e 5, com referência ao artigo 27º, nºs. 1 e
2, da Constituição da República (CR). O Tribunal da Relação, por acórdão de 15 de Abril de 1998, negou provimento ao recurso e manteve o despacho recorrido.
É desta decisão que o arguido, inconformado, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo ver apreciada 'a inconstitucionalidade material do nº 2 do artigo 495º do Código de Processo Penal, por violação dos princípios constitucionais do contraditório e acusatório e, bem assim, do disposto no artigo 32º, nºs, 1, 2, 4 e 5 com referência ao artigo 27º, nºs. 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa'. Recebido o recurso, alegou oportunamente o recorrente, concluindo do seguinte modo:
'A) O disposto no artigo 495º, nº 2, do C.P. Penal ao possibilitar a aplicação duma medida privativa de liberdade sem precedência da existência de acusação formulada nos termos legais, da possibilidade do arguido contradizer cabalmente tal acusação, da obrigatoriedade do mesmo se fazer acompanhar de advogado e, por
último, da obrigatoriedade de ao arguido ser comunicado os fins a que se destina a audiência prévia, é materialmente inconstitucional. B) Tal inconstitucionalidade resulta da violação dos princípios constitucionais do contraditório e acusatório e bem assim, do disposto no artigo 32º, nºs, 1, 2,
4 e 5 com referência ao artigo 27º, nºs. 1 e 2 da C.R.P.'
Por sua vez, contra-alegou o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:
'1- Não padece de inconstitucionalidade a norma constante do nº 2 do artigo 495º do Código de Processo Penal, na parte em que regula a tramitação do incidente processual de suspensão da revogação da pena suspensa, promovido pelo MºPº, sujeito ao efectivo contraditório do arguido, assistido por defensor, em audiência oral perante o juiz e decidido por despacho ampla e devidamente fundamentado.
2- Na verdade, tal tramitação assegura ao arguido e seu defensor todas as oportunidades de defesa no confronto da promoção do MºPº, facultando-lhe a dedução dos factos, razões e meios probatórios que poderiam obstar à pretendida revogação.
3- Termos em que deverá manifestamente improceder o presente recurso.'
Cumpre decidir.
II
1. - O artigo 495º do Código de Processo Penal - na redacção do Decreto-Lei nº
317/95, de 18 de Novembro - cuida da revogação da suspensão da execução da pena, prevendo, no seu nº 1, que quaisquer autoridades e serviços aos quais seja pedido apoio ao condenado no cumprimento de deveres, regras de conduta ou outras obrigações impostos, comuniquem ao tribunal a falta de cumprimento, por aquele, desses deveres, regras de conduta ou obrigações ('para efeitos do disposto no artigos 51º, nº 3, 52º, nº 3, 55º e 56º do Código Penal', de acordo com a redacção introduzida pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto). Mediante esta comunicação, acrescenta o nº 2, 'o tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova e antecedendo parecer de Ministério Público e audição do condenado'. E dispõe, por sua vez, o nº 3 do preceito:
'A condenação pela prática de qualquer crime cometido durante o período de suspensão é imediatamente comunicada ao tribunal competente para a execução, sendo-lhe remetida cópia da decisão condenatória.'
2. - Defende o recorrente a tese de que a norma por si impugnada impossibilita a aplicação de medida privativa de liberdade sem precedência de acusação e viabilização do exercício do contraditório.
É, na verdade, o que se colhe da argumentação aduzida nas respectivas alegações:
'Do disposto no nº 2 do artigo 495º do C.P.Penal constata-se que a decisão de ordenar a revogação da decisão de suspender uma medida de prisão efectiva (como aconteceu no caso ‘sub judice’) carece, tão-somente, dum mero despacho do juiz
(ainda que precedido da audição do arguido e da realização das diligências tidas por convenientes). Atente-se que da redacção da norma em apreço na audição prévia do arguido não é obrigatória a presença de advogado pese embora essa audição poder vir a fundamentar uma privação da liberdade; O juiz no acto de notificação para essa audiência prévia não se encontra sujeito
à obrigatoriedade de comunicar ao arguido o fim específico a que se destina essa audição (sublinhando-se neste particular que nem sempre a decisão de revogação duma decisão passa pela privação da liberdade – pode, por exemplo desembocar na sujeição do arguido a determinadas obrigações). Por último e principalmente, a circunstância do juiz, antecipadamente, não comunicar ao arguido os fins a que se destinam a audiência a que alude o artigo
495º, nº 2, do C.P.Penal leva a que aquele, cabalmente, não possa contradizer os factos que lhe são imputados. Melhor escrevendo: Ignorando o Juiz ‘ab initio’ o conteúdo do despacho que vai ser originado pela audiência do arguido a que alude o artigo 495º (e tanto ignora que esse despacho depende entre outros elementos da audição do MP e pela realização das diligências tidas por convenientes) é óbvio, da mesma forma ignora a forma de se poder defender convenientemente dos objectivos dessa audiência. Parece, assim, e salvo o devido respeito e melhor opinião que o nº 2 do artigo
495º do C.P.Penal enferma de uma clara inconstitucionalidade material na parte em que possibilita ao magistrado judicial a aplicação duma pena privativa de liberdade por mero despacho e sem que ao arguido sejam concedidas garantias de defesa designadamente, a obrigatoriedade de se fazer acompanhar de advogado para a audiência a que essa norma alude e bem assim, a obrigatoriedade do mesmo tomar conhecimento dos fins a que ela se destina. Termos em que, e por violação dos artigos 27º, nº 1 e 2, 32º, nº 1, 2, 4 e 5 da C.R.Portuguesa deverá o artigo 495º, nº 2, do C.P.Penal (versão originária) ser declarado materialmente inconstitucional para o que, desde já, formulam-se as seguintes'.
3. - É manifesto que a norma sindicanda, ao prever a decisão de revogação da suspensão da execução da pena ‘depois de recolhida a prova e antecedendo parecer do Ministério Público e audição do condenado’, não viola o disposto nos nºs. 1 e
2 do artigo 27º, ou os nºs. 1, 4 e 5 do artigo 32º, ambos da CR, nem tão pouco os princípios constitucionais do contraditório e do acusatório. De igual modo, não pode afirmar-se, como pretende o recorrente, que essas garantias que - no seu dizer - se encontram acauteladas na sentença judicial,
'resultado por excelência da audiência de julgamento ' que o legislador acautelou 'por estar consciente que pode culminar numa pena de prisão', se acham desprotegidas no 'mero despacho do juiz' que decide da revogação da suspensão. Semelhante entendimento, na verdade, desconsideraria, pura e simplesmente, que já houve condenação, como diz o preceito legal, transitada, ou seja, o adequado julgamento culminando em sentença condenatória definitiva - onde é suposto terem sido acautelados os ditos valores constitucionais, como o próprio interessado reconhece - decretando-se a suspensão da revogação, após contraditório, por se verificar, como foi o caso, que 'a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizaram, das duas vezes que o arguido foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução, de forma adequada e suficiente as finalidades de punição', tendo, o arguido, nomeadamente, ignorado a advertência solene que lhe foi feita, desse modo revelando que 'as finalidades que estiveram na base das suspensões de execução da pena não puderam por meio dela ser alcançadas'
(despacho revogatório da suspensão, impugnado pelo recorrente). Como, aliás, já ponderou o Supremo Tribunal de Justiça, se o delinquente, após a condenação em pena que ficou com a execução suspensa, 'persiste na criminalidade', a suspensão não pode manter-se e será revogada ou modificada, no seu condicionalismo, não sendo necessário efectivar qualquer julgamento para o efeito, podendo ser decidida por despacho (cfr. acórdão de 7 de Fevereiro de
1990, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 394, págs. 237 e ss.).
4. - Ponto é saber se - proscrita a revogação automática - a convicção formada no sentido de que o comportamento do recorrente subsequente à condenação
'infirmou o juízo de prognose que esteve na base da suspensão' (cfr., Jorge Figueiredo Dias, 'Velhas e Novas Questões sobre a pena de suspensão de execução de prisão' in – Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, pág. 206), interpretou correctamente o disposto no nº 2 do artigo 495º do CPP, em termos de constitucionalidade. O que passa por ajuizar da sua dimensão pragmática, sem que tal envolva o reconhecimento do, entre nós inexistente, direito ao amparo para defesa dos direitos fundamentais. A esta luz, importa salientar que, promovida pelo Ministério Público a revogação da suspensão da pena (fls. 104), procedeu-se a audiência oral do recorrente na qual o recorrente foi assistido por defensor nomeado (fls. 111), podendo consultar o relatório junto aos autos (fls. 108 e ss.), levado a efeito pelo Instituto de Reinserção Social. E que, tendo o mesmo alegado, nessa diligência, factos e meios de prova com os quais pretendia justificar a sua conduta, foi admitido a comprová-los, o que veio efectivamente a fazer (fls. 113 e ss.). A decisão então proferida, facticamente circunstanciada, concluíu, nos termos já parcialmente reproduzidos, pela revogação da suspensão da pena, podendo corroborar-se a apreciação feita pela Relação de que 'o arguido – recorrente teve a possibilidade concreta de contrariar/contradizer a prova recolhida em como tinha violado o seu dever de se abster de conduzir automóveis sob influência do álcool, subjacente, aliás, à aludida suspensão da pena aplicada nestes autos'.
5. - Assim sendo, e mantendo-nos no campo da interpretação normativa, uma vez que não pode estar em causa, aqui, a constitucionalidade da decisão judicial, em si mesma considerada, não se vê como essa interpretação pode dar lugar à violação de qualquer dos preceitos e princípios constitucionais convocados. E, como observa o Ministério Público, nas suas alegações, a única limitação efectiva, decorrente da própria 'natureza das coisas' e do caso julgado inerente
às anteriores condenações, radica no facto de, obviamente, não ser possível neste incidente processual rediscutir os fundamentos das precedentes decisões condenatórias, transitadas em julgado.
III Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente com taxa de justiça que se fixa em 15 (quinze) unidades de conta. Lisboa, 10 de Março de 1999 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida