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Processo n.º 656/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal ConstitucionalI – Relatório1. Garagem A., Lda., Reclamante nos presentes autos em que figuram como Reclamados o Banco B., S.A e Garagem C., Lda., inconformado com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça que não admitiu recurso para o Tribunal Constitucional, vem dizer, o seguinte:
“ (…) nem se conformando pois, com o aliás douto despacho, proferido nos autos, no passado dia 27 de Maio de 2010, e que não admitiu o recurso, oportuna e tempestivamente interposto pela aqui reclamante para o Tribunal Constitucional, de tal despacho apresenta a presente reclamação para V. Exa., ao abrigo do possibilitado pelo estatuído nos artigos 69°, 76°-4 e 77°, os três da Lei de Organização e Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (L.O.F.P.T.C.), 688°, 700°-3 e 726°, os três do Código de Processo Civil (C.P.C.), na redacção de tal diploma legal anterior à para ele estabelecida pelo Decreto-Lei número 303/2007, de 24 de Agosto, por ser a que continua em vigor, relativamente a este processo, a ele sendo pois a aplicável (artigos 11° e 12°, ambos do mesmo Decreto-Lei número 303/2007, 27°, do Decreto-Lei número 34/2008, de 26 de Fevereiro, e 22°, do Decreto-Lei número 226/2008, de 20 de Novembro).
Reclamação esta que se funda no facto dos acórdãos proferidos nos autos, nos dias 21 de Maio de 2009, 29 de Outubro de 2009 e 18 de Março de 2010, e dos quais foi interposto o recurso para o Tribunal Constitucional atrás referido, fazerem uma interpretação da Lei 149/95, de 24 de Junho, maxime, do seu artigo 11.º, na redacção actual, que é a do artigo 265/95, de 02 de Outubro, que se tem que ter por inconstitucional, por flagrante violação do princípio da igualdade, ínsito no artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa, e serem esses acórdãos, ao contrário do decidido no despacho reclamado, recorríveis para o Tribunal Constitucional em secção, nos termos do artigo 70°-1-b), da LO.FPTC, a isso não obstando a situação, constante do mesmo despacho sob reclamação, de nunca ter sido suscitada a inconstitucionalidade de qualquer norma ou interpretação normativa no decurso do processo, na medida em que tal interpretação normativa que a reclamante tem por inconstitucional só surgiu nos acórdãos atrás referidos, e que foram oportunamente objecto de recurso para o Tribunal Constitucional, não podendo pois a reclamante ter levantado a inconstitucionalidade de tal interpretação normativa, antes de tal interpretação ter sido prolatada!”
O despacho reclamado tem o seguinte teor:
“O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade interposto ao abrigo do disposto na al. b) do n° 1 do artigo 70.º da Lei n° 2 8/82, de 15 de Novembro, como é o caso, destina-se a que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional de normas, ou de interpretações normativas, que foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida.
Para além disso, é ainda necessário que essa norma tenha sido aplicada com o sentido acusado de ser inconstitucional e que a inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo de modo adequado.
Na situação vertente, nunca foi suscitada a inconstitucionalidade de qualquer norma ou interpretação normativa no decurso do processo.
Apenas, e tão só agora, no requerimento de interposição de recurso se aflora a inconstitucionalidade de normas aplicadas no acórdão aqui proferido.
Mas esse requerimento de arguição de nulidade não constitui nem o meio idóneo nem o momento processual adequado para suscitar, pela primeira vez, a questão de constitucionalidade normativa.
Pelas razões expostas, dado não ocorrerem os pressupostos indispensáveis à admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional, de acordo com o preceituado no art. 76°, n°s 1 e 2 da citada Lei 28/82 não se admite o recurso interposto com o requerimento de fls. 528.”
O requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade diz o seguinte:
“ (…) não se podendo, como na verdade se não pode, conformar, nem se conformando pois, com os aliás doutos acórdãos, proferidos nos autos, nos dias 21 de Maio de 2009, 22 de Outubro de 2009 e 18 de Março de 2010, na medida em que eles fazem uma interpretação da Lei 149/95, de 24 de Junho, maxime, do seu artigo 11°, na redacção actual, que é a do artigo 265/97, de 02 de Outubro, que se tem que ter por inconstitucional, por flagrante violação do princípio da igualdade, ínsito no artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa, de tais acórdãos, que não admitem recurso ordinário, por a lei o não possibilitar, se interpõe desde já, e através deste requerimento, recurso para o Tribunal Constitucional, o qual é, em secção, o tribunal competente para do mesmo recurso conhecer — artigo 70°, n.º 1 (corpo) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional — L.O.F.P.T.C.).
1 Assim, porque os acórdãos em causa são recorríveis para o Tribunal Constitucional, em secção — artigo 70.º 1 -b), da L.O.F.P.T.C. — a recorrente tem legitimidade — artigos 69° e 72°-1-b) e 2, ambos da L.O.F.P.T.C. e 680.º, n.º1, do Código de Processo Civil (C.P.C), na redacção de tal diploma legal anterior à para ele estabelecida pelo Decreto-Lei número 303/2007, de 24 de Agosto, sendo também tal redacção aquela a que se reportam todos os artigos do CP.C. adiante referidos, por ser aquela que continua em vigor, relativamente a este processo, a ele sendo pois a aplicável (artigos 11.º e 12°, ambos do mesmo Decreto-Lei número 303/2007, 270, do Decreto-Lei número 34/2008, de 26 de Fevereiro, e 22°, do Decreto-Lei número 226/2008, de 20 de Novembro) — e está em tempo — artigos 69.º e 75.º, os dois da L.O.F.P.T.C., e 144°, 145°, 254° e 255°, os quatro do C.P.C. — requer-se a V. Exa, que se digne admitir o presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b), do número 1, do artigo 70°, da L.O.F.P.TC., sendo o artigo 11.º, do Decreto-Lei número 149/95, de 24 de Junho, na interpretação que lhe foi dada pelos acórdãos recorridos, a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, por violar o artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa, (…).”
2. O Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Notificado desse parecer, o Reclamante veio reiterar a sua argumentação, sustentando a sua procedência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. Em sede de reclamações deduzidas ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4 da LTC, compete ao Tribunal Constitucional averiguar se, em concreto, se encontravam reunidos os pressupostos necessários à admissão do recurso que foi recusada pelo tribunal a quo.
O conhecimento de recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, versando normas ou critérios normativos que, tendo sido aplicados na decisão recorrida, viram a respectiva inconstitucionalidade suscitada durante o processo, depende da prévia verificação de vários requisitos. Assim, é necessário que o recorrente haja invocado tal inconstitucionalidade normativa durante o processo em moldes processualmente adequados (cfr. artigo 72.º, n.º 2 da LTC).
4. Para que se possa lançar mão deste recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, é necessário que se tenha verificado, atempadamente, a suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa, isto é, a inconstitucionalidade de uma norma ou de determinada dimensão normativa. O Tribunal Constitucional português é, com efeito, um tribunal de normas, não lhe cabendo apreciar a conformidade da decisão recorrida nem, de qualquer outro modo, sindicar as decisões proferidas por outros tribunais.
Significa isto que o objecto do recurso de constitucionalidade apenas poderá incidir sobre a apreciação, à luz das regras e princípios jurídico-constitucionais, de um juízo normativo efectuado pelo tribunal recorrido.
5. O Reclamante nunca suscitou, durante o processo (i.e. até que fosse proferida a decisão final), a inconstitucionalidade de quaisquer normas, tendo inclusive referido, na resposta ao parecer do Ministério Público, que “ (…) durante o processo não foi suscitada qualquer questão relativamente à inconstitucionalidade da norma em causa (…) só após a prolação dos três atrás referidos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, e devido à interpretação por eles feita da norma em causa, é que surgiu a questão da inconstitucionalidade suscitada no recurso.”.
Ora, não se pode dizer que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça configura uma decisão-surpresa para efeitos de dispensa do ónus de suscitação atempada da questão de constitucionalidade. Para que uma decisão possa ser qualificada como “decisão-surpresa” de modo a considerar-se o recorrente constitucional dispensado do ónus de suscitação atempada (i.e. durante o processo) da questão de constitucionalidade, é necessário que a aplicação do preceito em causa – ou a aplicação do preceito numa determinada interpretação – surja como absolutamente inesperada e imprevisível de um ponto de vista objectivo. Neste sentido se tem vindo a pronunciar, de modo reiterado, a jurisprudência constitucional. Como se afirmou, por exemplo, no Acórdão n.º 479/89, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992, “ (…) desde logo terá de ponderar-se que não pode deixar de recair sobre as partes em juízo o ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais (por outras palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada). E isso – acrescentar-se-á - também logo mostra como a simples ‘surpresa’ com a interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos, certamente, em princípio) a configurar uma dessas situações excepcionais (voltando agora à nossa questão) em que seria justificado dispensar os interessados da exigência de invocação ‘prévia’ da inconstitucionalidade perante o tribunal a quo.” (sublinhado nosso).
Não pode, portanto, esta questão ser conhecida na medida em que a questão de constitucionalidade não foi suscitada durante o processo, pressuposto cujo preenchimento era exigível ao Reclamante.
III – Decisão6. Nestes termos, acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, indeferir a presente reclamação.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 15 de Fevereiro de 2011.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.