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Processo n.º 103/09
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 3ª Secção, do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea b) da CRP e do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da LTC, do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido em 16 de Dezembro de 2008 (fls. 117 a 155).
2. O requerimento de interposição de recurso (fls. 170) não indica expressamente quais as normas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada. Contudo, das alegações que lhe foram anexadas, é possível concluir que o recorrente pretendeu fixar como objecto do recurso as seguintes normas e interpretações normativas:
i) “O artigo 292. ° (Condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas) CP 2007, entendido enquanto “crime de perigo abstracto” e não como “crime de perigo abstracto-concreto”, é materialmente inconstitucional”;
ii) “O artigo 69. ° CP, na sua (automática) articulação/aplicação com o artigo 292. ° CP, ao entender-se que a sanção acessória de “proibição de conduzir veículos com motor” é automática acarreta a violação dos princípios gerais de aplicação das penas acessórias do artigo 65. ° CP.”;
iii) “O artigo 69. ° do CP é manifestamente inconstitucional, sempre que, ao arrepio do disposto no artigo 283.°, n.º 3 do CPP, 358.°, nºs 1 e 3 e 379.°, nº 1, alínea b) se entende desnecessária — como foi o caso —, em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, a sua não indicação na acusação ou pronúncia.”;
iv) “Não operatividade e validade da confissão para a comprovação da verificação dos factos para efeitos do cometimento do crime do artigo 292. ° CP, dado que se trata de uma prova mista de exame e perícia (juízo pericial), 151. ° e 163.°, 171.° CPP 2007 que implica, sob pena de nulidade, 126. °, nºs 1 e 3 CPP 2007, um juízo técnico científico, mediatizado por aparelho, previamente aprovado, homologado.”;
v) “Os artigos 152. ° e 153.° do Código da Estrada, no contexto da aplicação do artigo 292.° CP, são materialmente inconstitucionais e ilegais, por contenderem com o direito ao silêncio e o direito a calar o corpo, nos termos dos artigos 61. °, n.º 1, alínea d) e artigo 32.°, n.º 1, 2, 4 e 8 da CRP, que assiste a qualquer arguido em processo penal (artigo 126.°, nº 1, n.º 2, alínea a) e nº 3 CPP) e em processo contra-ordenacional, por força do artigo 42.°, n.º 2 do Regime Geral das Contra-Ordenações.”;
vi) “Inconstitucionalidade do artigo 374. °, nºs 2 e 3, alínea b) e 4 do CPP, na interpretação que lhe é dada pelas instâncias ao condenarem o arguido em custas (de forma lacunar e sem invocação de qualquer norma específica e, consequentemente, justificação dos critérios adoptados) face ao constitucional dever de fundamentação expressa, acessível (artigo 205.°, 11.0 1 e 268.° CRP 1976) e proporcional (artigos 18.°, n.º 2 CRP 1976).”;
vii) “A inadmissibilidade de recurso, para o STJ, por força do disposto nos artigos 400. °, n.º 1, alínea e) e 432.°, 1, alínea b), a contrario, do CPP, é manifestamente inconstitucional, à luz do “direito ao recurso” e “acesso ao direito e aos tribunais”, constante dos artigos 20. °, 32.°, n.º 1 e 202.° CRP 1976, visto que configura uma desproporcionada e inconstitucional limitação das garantias de defesa do arguido.” (fls. 171 e 172)
3. Verificadas as circunstâncias processuais que obstavam ao conhecimento pleno das diversas interpretações normativas que constituem objecto do presente recurso – e ainda por ser possível decidir parte do recurso por mera remissão para jurisprudência anterior, em função da simplicidade de uma das questões –, a Relatora proferiu o seguinte despacho, nos termos dos quais proferiu decisão sumária parcial e notificou o recorrente para a apresentação de alegações restritas à questão da constitucionalidade da norma extraída do artigo 292º do Código Penal, enquanto crime de perigo abstracto.
4. Na sequência deste despacho, o recorrente viria a produzir as seguintes alegações:
“1.º O artigo 292. ° (Condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas) CP 2007, entendido enquanto “crime de perigo abstracto” e não como “crime de perigo abstracto-concreto”, é materialmente inconstitucional por violação do princípio da culpa (artigos 1º, 2°, 18°, n.º 2, 25°, 26° e 27° CRP 1976 e artigo 40° CP), do princípio da presunção de inocência (artigo 32°, n.º 2 CRP), do princípio da ofensividade, do principio da necessidade ou carência de criminalização “avançada” incompatível com a ideia de Estado de Direito Democrático.
2.° Ao ser configurado como um crime de perigo abstracto, o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, do artigo 292. ° CP 2007, surge-nos como um crime em que o perigo não é elemento do tipo, mas simplesmente motivo da proibição.
O comportamento seria tipificado no tipo em nome da sua perigosidade típica para um bem jurídico (segurança rodoviária), mas sem que ela necessite de ser comprovada no caso concreto: há como que uma presunção in[i]lidível de perigo e, por isso, a conduta do agente é punida independentemente de ter criado ou não um perigo efectivo para o bem jurídico. O perigo é presumido iuris et iure pela lei, Ora, isto bastaria para confrontar e colidir com o princípio da presunção de inocência, princípio da culpa e, acima de tudo, princípio da proporcionalidade ou necessidade, no sentido de que a tutela penal surge como ultima ratio e somente deve entrar em acção quando disso careça a protecção dos bens jurídicos essenciais à sobrevivência da vida em sociedade.
3.º Os crimes de perigo abstracto, como é o do artigo 292.º CP, ao não permitir a prova de que, em concreto — como foi o caso! — o perigo não se verificou ou o bem jurídico “segurança rodoviária” não foi posto em causa, encurta de forma insuportável a possibilidade de defesa do arguido e contende em alta escala com o princípio da culpa, subjacente à ideia de Estado de Direito Democrático e ao princípio da proporcionalidade em matéria de medidas restritivas da liberdade pessoal (artigos 1º, 2°, 25°, 32°, n.º 2 CRP).
4.º O artigo 292. ° CP 2007 deve ser visto, hoje, como um crime de perigo abstracto-concreto, de tal modo que provando-se que não existiu, de forma absoluta, perigo para o bem jurídico, ou que o agente tomou todas as medidas necessárias para evitar que o bem jurídico fosse colocado em perigo, não deveria ter lugar a punição. E o que ocorre nos presentes autos onde não se fez prova de que o agente fosse, ao conduzir, a colocar, em concreto, de forma absoluta, em causa o bem jurídico “segurança rodoviária”.
5.º Com vista a evitar a inconstitucionalidade do artigo 292.° CP 2007 deve considerar-se que se trata de crime de perigo abstracto-concreto, de tal modo que o perigo abstracto não é só critério interpretativo e de aplicação, mas deve também ser momento referencial da culpa e, por isso, admite a “possibilidade de a perigosidade ser objecto de juízo negativo” (TAIPA DE CARVALHO) ou não ser verificar uma conduta concretamente perigosa (BOCKELMANN). Deve entender-se que não sendo o perigo apto a colocar em causa o bem jurídico subjacente ao artigo 292. ° CP 2007, o agente não deveria ser punido.
6.º Os crimes de perigo abstracto são uma tutela demasiado avançada do bem jurídico que coloca em crise o princípio da legalidade e o princípio da culpa. A tudo isto acresce o facto de que não se está perante um bem jurídico de grande importância, nem o mesmo se pode identificar com um grau de concretude compatível com o princípio da legalidade e a conduta não se encontra descrita de forma precisa e minuciosa, já que se alude à conduta de forma genérica com a indexação de uma culpa in re ipsa, isto é, presumida e agarrada ao volante do que conduz com um grau de alcoolemia superior a 1,2 g/l, sem que tal quantidade possa significar, em termos científicos, uma incapacidade automática para a condução, já que a absorção pelo organismo do álcool varia com a massa corporal, idade, se é com ou fora das refeições entre outros factores».
7.º Num verdadeiro Estado de Direito Democrático, fundado na dignidade da pessoa humana e na protecção mais elevada dos direitos fundamentais (artigos 1º, 2°, 7°, n.º 1, 8°, 9º, alínea b), 13°, 16°, 17°, 18°, n.º 1, 19°, n.º 1, 202°, n.º 1 e 204° CRP 1976), nenhuma norma pode desrespeitar a CRP 1976, que possui seus princípios, e entre os quais, destaca-se o da ofensividade (ou Lesividade para ZAFFARONI e FERRRAJOLI): a conduta praticada pelo agente (guiar veículo a motor embriagado) deve afectar concretamente o bem jurídico tutelado pela norma, e na direcção embriagada, a objectividade jurídica é a segurança rodoviária, portanto, mesmo que tenha ingerido razoável quantidade de bebida alcoólica, se o condutor não afectar efectivamente a segurança rodoviária (bem jurídico), a conduta será atípica, pois, não pode existir crime sem lesão ou perigo concreto de lesão à objectividade jurídica, por força do reconhecido princípio do nullum crimen sine iniuria.
8.° Os critérios da validade para a construção de todos os concretos e específicos tipos legais de crime, aí incluídos os de perigo abstracto, implicam que a protecção de bens jurídicos apenas deva ocorrer face a condutas violadoras de bens jurídicos (-penais) com analógica referência axiológico-constitucional.
9.° A consistência teorética da punibilidade da criminalização das concretas situações de pôr-em-perigo, no caso do perigo surgir como «motivação do legislador» — como é caso no tipo legal de crime do artigo 292. ° CP —, implica, na prática, a inexistência de qualquer «ofensividade» relativamente a um concreto bem jurídico, daí que o apelo aos bens jurídicos-penais da paz jurídica ou da segurança, para desempenharem um papel agregador de referências vinculantes, reconduzem-se a meros significantes de vaguíssima referência axiológica, desprovidos de conteúdos, de tal modo que tais valores nunca serão significados axiologicamente relevantes, porquanto também nunca ascenderão à dignidade de nódulos normativos susceptíveis de congregarem um sentido de desvalor (objectivo) que o ilícito-típico tem de comportar.
10.º Os crimes de perigo abstracto não são legítimas prefigurações delituais. De facto, eles mais não são do que uma figura insustentável dentro de uma visão centralizada unidimensionalmente na defesa e protecção de bens jurídicos. Não se nos afigura possível que dentro dos limites racionais da expansibilidade da postura que assenta o eixo da punibilidade no bem jurídico, que a fundamentação dos crimes de perigo abstracto ainda se possa reconduzir à protecção de um qualquer bem jurídico. No máximo, pode-se detectar um “halo” do bem jurídico a proteger ou protegido, “halo” esse que só muito dificilmente é referenciável ao bem jurídico e ao qual a comunidade jurídica concede a dignidade da protecção penal.
11.º A relação onto-antropológica de cuidado-de-perigo do «eu» com o «outro», ao nível do tipo legal de crime do artigo 292. ° CP, não chega a ganhar uma natural expressão que seria mediatizada pela concreta existência de um qualquer bem jurídico. Se é certo que a relação de cuidado-de-perigo ínsita nos crimes de perigo abstracto se funda, ainda e sempre, naquela primitiva relação de cuidado que legitima o próprio Estado, o certo é que não se exigindo a presença imediata de um bem jurídico que tutele, tal poder incriminador do Estado se encontra demasiado «solto», sem limites «materiais», a não ser, obviamente, pelos limites oriundos dos princípios da legalidade (estrita) e da irretroactividade lei penal, daí a sua difícil aceitação à luz do paradigma da ponderação constitucional codificado em sede processual penal.
12.° Exige-se, por isso, uma mais densificada legitimação para a actividade legiferante, em sede de crime de perigo abstracto. Ora, dificilmente tal legitimação ainda se pode perscrutar na relação de cuidado-de-perigo originariamente fundada de todo o ius puniendi. Só a custo os crimes de perigo abstracto podem fundar-se na relação onto-antropológica de cuidado-de-perigo.
13.° Importa notar que é diferente um condutor, com álcool no sangue, guiar o seu automóvel aos ziguezagues e guiá-lo, não obstante o álcool, ainda com capacidade de avaliar os hipotéticos prejuízos que possa causar. As situações descritas são diferentes e são assim valoradas de modo diferenciado pela comunidade, atribuindo-se um distinto desvalor a um e outro comportamento.
14.° Os crimes de perigo abstracto — como é o caso do artigo 292º CP — configuram uma verdadeira e inadmissível «ficção do ilícito» e, enquanto tal, inadmissível à luz dos princípios que enformam a legitimação da tutela penal (princípio da proporcionalidade em sentido amplo: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito — artigo 18°, n.º 2 CRP 1976).
15.° Prever, no domínio estradal — como no domínio económico, como bem sublinhava EDUARDO CORREIA (Ciclo Estudos, CEJ, 18-23) —, «uma pena de prisão para um mero crime de perigo abstracto não respeita a proporcionalidade exigida no art. 88. ° da nossa Lei fundamental [Hoje: artigo 18°, n.º 2 CRP 1976], e, portanto, não é conforme à Constituição Portuguesa» (idem, p. 23 — itálicos do autor — negritos nossos). Desta forma, o artigo 292. ° CP, ao ser recortado como um crime de perigo abstracto, desrespeita o princípio da ofensividade, da carência de tutela penal e a cláusula da exigência mínima (em matéria de incriminação), ínsitos no artigo 18. °, n.º 2 CRP e 40.°, n.º 1 do CP.
16.° A adopção de crimes de perigo abstracto, embora «fosse susceptível à luz dos princípios jurídico-constitucionais da legalidade e da culpa», implicaria para aqueles «a perda da sua dignidade penal e a descaracterização da sua relevância ético-social, tornando-se, então em meros “Kavalliersdelikte”, aos quais não se liga um autêntico juízo de desvalor e de censura e, por isso, nem sequer deviam constar de leis de carácter penal, mas sim de leis de mera ordenação social, de carácter não penal» (LOPES ROCHA, Revista de Direito e Economia, 13 (1987), págs. 243-4).
17.° Não se afigura possível identificar o cerne da legitimidade constitucional dos crimes de perigo abstracto, nomeadamente apelando para o eventual desvio ao cânone da proporcionalidade, nem à concreta determinação do seu sentido (ou ausência dele) violador do princípio da ofensividade.
18.° O carácter irrito da argumentação que pretende justificar os crimes de perigo abstracto no facto de, muito embora não sustentados na imediata protecção de um concreto bem jurídico, serem, ainda assim, meios aptos à protecção de bens jurídicos, acaba, no fundo, por os transmutar em verdadeiras e encapotadas medidas de segurança (aplicadas a imputáveis!).
19° Nos crimes de perigo abstracto — como é o caso do artigo 292. ° CP — o agente é punido por mera desobediência e por subjectiva perigosidade, assim contendendo com o princípio da proporcionalidade originador e legitimador do ius puniendi estatal.
20.° Afigura-se, na maior parte dos casos, impossível, em matéria de crimes de perigo abstracto, proceder à sua justificação e ligação, ainda que através de um cuidado-de-perigo, com o qual se pretenda proteger um bem jurídico com dignidade penal, como serão, indirectamente, a vida humana, a integridade física e o património das pessoas em geral.
21.° O intérprete, perante um caso de «imediato» enquadramento na dogmática dos crimes de perigo abstracto, tem de repensar o tipo perscrutando o seu interior, no sentido de o avaliar em função do princípio da ofensividade. Não basta o legislador definir com exactidão a conduta ou condutas proibidas, é preciso ainda e sempre, através da categoria de mediação do cuidado-de-perigo, ver se aquela conduta proibida visa proteger, se bem que por meio da mais avançada das defesas jurídico- constitucionalmente permitidas, um concreto e determinado bem jurídico com dignidade constitucional, rectius, um bem jurídico-penal. Dito isso, facilmente se verifica a ilegitimidade constitucional do actual recorte dado ao tipo legal de crime do artigo 292. ° CP.
22.° O actual recorte do tipo legal de crime do artigo 292. ° do CP — crime de perigo abstracto — apenas encontrará a sua legitimação numa concepção do perigo como sendo de natureza “abstracto-concreto”, no sentido de ligar o tipo a um dado bem jurídico-penal constitucional e axiologicamente ancorado na Lei Fundamental, sob pena de violação do princípio da ofensividade e da proporcionalidade (sentido amplo), nos termos do artigo 18°, n.º 2 CRP 1976 e 40°, n.º 1 CP. Deste modo, tal não tendo ocorrido, a decisão judicial recorrida enferma de inconstitucionalidade e ilegalidade.
23.° O entendimento, subjacente ao Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de que crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto no artigo 292. ° do CP, é de verificação formal, aplicação automática — havendo teste positivo de alcoolemia e/ou substâncias psicotrópicas — e dispensa a graduação da pena, à luz das finalidades (preventivas — geral de intimidação positiva e especial de socialização positiva ou de prevenção da reincidência) das penas (artigo 40.° e 71.° do Código Penal e artigos 1°, 13.° e 18.°, n.º 2 CRP 1976), dentro da “moldura da prevenção”, afigura-se incompatível com o princípio da culpa, da proporcionalidade e da socialização que subjazem ao princípio do Estado de Direito Democrático assente no princípio da eminente dignidade da pessoa humana (artigos 1° e 2.° CRP 1976). Nesse sentido,
24.° O Tribunal Constitucional Espanhol, face à norma semelhante à do normativo português — artigo 379. ° do CP Espanhol que correspondia ao anterior artigo 340.° bis a) 1 CP Espanhol e consagra o “delito de conducción bajo el efecto de bebidas alcohólicas”, na sua Sentença 2/2003, não considera preenchido o tipo legal apenas com o apontamento de uma dada taxa de alcoolemia. De facto, exige-se que o perigo “abstracto” seja “real”. Nesse sentido, refere o Tribunal Constitucional Espanhol, a dado passo da sua decisão judicial, o seguinte:
«A ausência de carácter formal do crime de condução sob o efeito de bebidas alcoólicas foi realçado por este tribunal em várias ocasiões. Assim, desde a STC 145/1985, de 28 de Outubro, em que declaramos relativamente ao antigo artigo 340. ° bis a) 1 CP anterior, idêntico ao actual artigo 379.° CP, que o tipo de ilícito “não consiste na presença de um determinado grau de impregnação alcóolica, mas sim na condução de um veículo de motor sob a influência de bebidas alcoólicas” (FJ 4; no mesmo sentido SSTC 148/1985, de 30 de Outubro, FJ 4; 145/1987, de 23 de Setembro, FJ 2; 22/1988, de 18 de Fevereiro, FJ 3.a; 5/1989, de 19 de Janeiro, FJ 2; 222/1991, de 25 de Novembro, FJ 2); de modo que para a apreciação do crime não se torna imprescindível nem suficiente a prova da impregnação alcoólica (SSTC 24/1992, de 14 de Fevereiro, FJ 4, 252/1994, de 19 de Setembro, FJ 5). Por isso na STC 111/1999, de 14 de Junho, FJ 3, afirmávamos que “trata-se de uma figura delitual similar, mas não idêntica à correlativa infracção administrativa, caracterizando-se aquela pela exigência de um perigo real para a correlativa infracção administrativa, caracterizando-se aquela pela exigência de um perigo real para a segurança do tráfego». De outro lado, como sustentávamos na STC 161/1997, de 2 de Outubro, FJ 3, “a condução sob a influência de drogas ou de álcool não somente constitui um comportamento delitual autónomo, como também uma forma de comportamento imprudente que pode lesar a vida e a integridade fisica das pessoas”, de modo que se dirige tendencialmente também à protecção destes bens jurídicos»
25.° É manifestamente inconstitucional a interpretação segundo a qual o Auto de notícia e respectivo teste de alcoolemia são prova suficiente, para efeitos do preenchimento do tipo legal do artigo 292. ° do CP (condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas), já que o único valor que se lhe pode atribuir é unicamente de valor de denúncia, não sendo dessa forma, essa prova pré-constituída válida e suficiente para ser admitida em audiência de julgamento como prova suficiente para postergar e eliminar a inadiável presunção de inocência de que goza o arguido, à luz do disposto no artigo 32.°, n.º 2 CRP, além de que se diminuem, drasticamente, as suas garantias de defesa, visto não se respeitar o princípio da imediação e contraditório, vigente em matéria de prova, e democraticamente exigido, em sede de julgamento, sob pena de se dar cobertura a automatismos típicos de regimes não democráticos, mas, sim, totalitários e opressores dos direitos e liberdades fundamentais.
26° O crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto no artigo 292. ° do CP, somente se deve considerar preenchido quando, num caso concreto, foi produzida, para além de toda a dúvida razoável, prova suficiente de que o agente, ao circular com taxa de álcool superior à legalmente fixada, produziu um efectivo e concreto perigo para os bens jurídicos pessoais (vida humana, integridade física ou património alheio de outrem), por tal ser exigido pelo princípio da proporcionalidade, da necessidade e carência de tutela penal (artigo 18°, n.º 2 CRP), pois, de outro modo, tal entendimento afigura-se materialmente inconstitucional por contender com o princípio da eminente dignidade da pessoa humana (artigo 1º), da culpa e com os fundamentos ético- constitucionais que presidem à legitimação da tutela penal enquanto ultima ratio: maxime, face às ideias de fragmentariedade e subsidiariedade de protecção de bens jurídico-penais com referência axiológico-constitucional (artigo 18°, nºs 1 e 2 CRP 1976).” (fls. 206 a 212)
5. Notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou as seguintes contra-alegações:
“1. Apreciação do mérito do recurso.
1.1. Após o despacho de fls. 190 a 193, o objecto recurso é constituído, exclusivamente, pela questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 292º do Código Penal na interpretação identificada pelo recorrente, ou seja, “como consagrando um crime de perigo abstracto” e não “como um crime de perigo abstracto-concreto”, bastando para o seu preenchimento, a simples verificação do estado alcoolemia, abdicando-se da verificação de qualquer resultado lesivo efectivo”.Tal interpretação normativa seria violadora do princípio da culpa e da proporcionalidade.
1.2. O crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto e punido pelo artigo 292º do Código Penal é efectivamente considerado um crime de perigo abstracto, não pressupondo nem o dano nem o perigo de um dos concretos bens jurídicos que se pretendem proteger com a incriminação.
Sobre a natureza e especificidades dos crimes desta natureza, Paula Ribeiro de Faria, em anotação ao artigo 292º do Código Penal, diz o seguinte:
“Isto significa que o perigo não faz parte dos elementos típicos, existindo apenas uma presunção por parte do legislador, as mais das vezes fundada nessa observação empírica, de que a situação é perigosa em si mesma, ou seja, que na maioria dos casos em que essa conduta tem lugar, demonstrou ser perigosa sob o ponto de vista de bens jurídicos penalmente tutelados” (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 1093).
1.3. O Tribunal Constitucional já por diversas vezes teve oportunidade de se debruçar sobre se, dada a sua específica natureza, os crimes de perigo abstracto eram compatíveis com a Constituição, maxime, se violavam o princípio da culpa que extrairia dos artigos 1º e 25º, nº 1 da Constituição, do princípio da proporcionalidade (artigo 18º, nº 2, da Constituição) e do princípio de presunção de inocência (artigo 32º, nº 2, da Constituição).
Fê-lo pela primeira vez, e de forma exaustiva, no Acórdão nº 426/91 em que se apreciou a constitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 23º do Decreto-Lei nº 430/83, de 13 de Dezembro, onde se previa e punia o crime de tráfico de estupefacientes.
Tal como nestes autos também naquele processo o recorrente entendia que o crime era de perigo concreto e que a sua qualificação como de perigo abstracto era inconstitucional.
O tribunal não julgou a norma inconstitucional, face aos princípios constitucionais já anteriormente referidos. Este entendimento foi reiterado nos Acórdãos nºs 441/94 e 604/97 a que poderíamos acrescentar o Acórdão nº 246/96 que não julgou inconstitucional a norma do artigo 22º, nº 1 e 2 do Regime Jurídico das Infracções Aduaneiras, onde se previa e punia o crime de contrabando de circulação.
Da jurisprudência do Tribunal Constitucional resulta, portanto, com clareza, que as especificidades inerentes aos crimes de perigo abstracto não são contrárias aos princípios constitucionais relevantes nesta matéria.
1.4. Permitindo a Constituição a existência de crimes de perigo abstracto é, no entanto, pela análise de uma determinada norma em concreto que se poderá averiguar se ocorre ou não violação dos princípios constitucionais.
É isso que faremos seguidamente quanto ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez (artigo 292º do Código Penal).
Este preceito resulta das profundas alterações introduzidas ao Código Penal pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março. No entanto, já antes dessas alterações vigorava no nosso ordenamento jurídico o artigo 2º do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, onde se tipificava um crime de condução sob o efeito de álcool, com redacção idêntica à do actual artigo 292º do Código Penal e que teria estado na origem deste mesmo preceito.
As razões porque se achou necessário legislar desta forma, neste domínio, constam do preâmbulo daquele diploma, onde pode ler-se:
“A Lei nº 3/82, de 29 de Março, foi o primeiro diploma que versou sobre a condução sob a influência de álcool.
O lapso de tempo já decorrido e os ensinamentos decorrentes da aplicação daquela lei, aliados ao aumento da sinistralidade rodoviária, em que o álcool tem tido um papel relevante, determinam a adopção de novas sanções que possam por si só, actuar como medidas dissuasoras daquele comportamento”
Foi, pois, a noção de grave perigosidade da conduta em causa que levou o legislador a editar uma norma como a do artigo 292º.
E bem se compreende que assim seja, porque se o bem jurídico que está directamente em causa é a segurança da circulação rodoviária, já indirectamente o que se visa proteger são “outros bens jurídicos que se prendem com a segurança das pessoas face ao trânsito de veículos, como a vida ou a integridade física” (Paula Ribeiro de Faria, ob. cit. pág. 1093).
Ora, está cientificamente comprovado e é pacificamente aceite que o álcool no sangue diminui as capacidades do condutor, sendo essa capacidade para a condução menor quanto maior for a taxa de álcool (TAS).
Daí que no artigo 292º se exija um determinado TAS (1,2g/l) para preenchimento do tipo legal, pois se esse TAS for inferior, mas superior a 0,5g/l, tal constitui apenas uma contra-ordenação (artigo 81º do Código de Estrada).
Portanto, só a partir de um determinado grau de alcoolemia e porque o perigo de violação dos bens jurídicos em causa é maior, é que se justifica que a conduta do condutor constitua crime.
1.5. Diremos, por último, que no que toca à definição de crimes, o legislador ordinário – que terá de ser a Assembleia da República ou o Governo se para tal autorizado por aquela (artigo 165º, nº 1, alínea c), da Constituição) – goza de uma ampla liberdade de conformação, que apenas pode ser merecedora de censura constitucional nos casos em que a punição se apresente como manifestamente excessiva, desadequada ou desproporcionada (v.g., Acórdão nº 245/2003).
Esta ampla liberdade na definição de crimes abrange, obviamente, a escolha dos comportamentos que exigem tutela penal, bem como os exactos elementos objectivos e subjectivos do tipo.
Face a tudo o que se disse anteriormente, parece-nos evidente que o legislador, ao editar uma norma com a natureza da do artigo 292º do Código Penal, agiu dentro dos limites impostos pela Constituição.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto conclui-se:
1 – Tal como se encontra tipificado, o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto no artigo 292º do Código Penal, configura-se como um crime de perigo abstracto.
2 – Aquela norma, precisamente enquanto aí se prevê e pune um crime daquela natureza, não é inconstitucional, pois não viola nem o princípio de culpa, nem o princípio de proporcionalidade, nem o princípio de presunção de inocência, consagrados, respectivamente, nos artigos 1º e 25º, 18º, nº 2, e 32º, nº 2, todos da Constituição.
3 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.” (fls. 214 a 218)
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
6. Por força do supra mencionado despacho da Relatora, o presente recurso encontra-se, nesta fase, circunscrito à apreciação da constitucionalidade da norma extraída do n.º 1 do artigo 292º do Código Penal, que prevê um tipo de ilícito criminal configurado como crime de perigo abstracto:
“Artigo 292º
Condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência
de estupefacientes ou substância psicotrópicas
1 – Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
(…)”
Ora, de acordo com o entendimento propugnado pelo recorrente, a configuração típica deste crime – sem que o perigo dele constitua elemento típico, mas apenas motivo de incriminação – implica uma necessária violação do princípio da culpa (artigos 1º e 2º da CRP), do princípio da proporcionalidade (artigo 18º, n.º 2, da CRP) e do princípio da presunção de inocência do arguido (artigo 32º, n.º 2, da CRP).
Vejamos se assim é.
7. O Direito Penal admite a consagração legal de tipos de crime assentes numa ideia de perigo para bens jurídicos constitucionalmente tutelados (cfr. José Faria e Costa, “O Perigo em Direito Penal”, Coimbra, 1992, em especial, fls. 328 a 340; Rui Pereira, “O Dolo de Perigo”, Lisboa, 1995, pp. 22 e 23). Assim, aceita-se que o legislador possa incriminar determinadas condutas, ainda que estas não tenham efectivamente produzido um dano na esfera jurídica de terceiros, enquanto instrumento de antecipação da tutela penal de bens jurídicos carecidos de protecção legal. Deste modo, a mera potencialidade lesiva gera uma necessidade punitiva que é assegurada pelo Estado, mediante a antecipação do momento aferidor da responsabilidade penal.
Como afirma Jorge de Figueiredo Dias:
“Nos crimes de perigo a realização do tipo não pressupõe a lesão, mas antes se basta com a mera colocação em perigo do bem jurídico. Aqui distingue-se entre crimes de perigo concreto e crimes de perigo abstracto. Nos crimes de perigo concreto o perigo faz parte do tipo, isto é, o tipo só é preenchido quando o bem jurídico tenha efectivamente sido posto em perigo. (…). Nos crimes de perigo abstracto o perigo não é elemento do tipo, mas simplesmente motivo da proibição. Quer dizer, neste tipo de crimes são tipificados certos comportamentos em nome da sua perigosidade típica para um bem jurídico, mas sem que ela necessite de ser comprovada no caso concreto: há como que uma presunção inelidível de perigo e, por isso, a conduta do agente é punida independentemente de ter criado ou não um perigo efectivo para o bem jurídico. Diz-se também — sendo esta, malgrado as críticas que lhe possam ser dirigidas, uma razoável forma de expressão — que nesta espécie de crimes o perigo é presumido iuris et de iure pela lei. Temos como exemplo a condução de veículo em estado de embriaguez (art. 292.º), em que o condutor embriagado é punido pelo facto de o estado em que se encontra constituir um perigo potencial para a segurança rodoviária. (…)”. In Direito Penal – Parte Geral, tomo I, 2ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 309.
Por outras palavras, de entre os crimes de perigo, distingue-se entre “crimes de perigo abstracto” e “crimes de perigo concreto”. Entre os primeiros figuram crimes em que a verificação ou a produção do perigo não constitui elemento típico, mas em que a potencialidade danosa indiciada pelo perigo constitui motivação da opção legislativa de incriminação, ainda que não seja possível individualizar um bem jurídico que seja objecto expectável de tal potencialidade de lesão. Já os segundos pressupõem a criação de um perigo especificamente dirigido a um bem jurídico determinado ou determinável, constituindo o próprio perigo um elemento do tipo de crime em questão (assim, ver, entre muitos outros, Rui Pereira, “O Dolo de Perigo”, op. cit., pp. 24 a 27; Rui Patrício, “Erro sobre Regras Legais, Regulamentares ou Técnicas nos Crimes de Perigo Comum no Actual Direito Português”, Lisboa, 2000, pp. 198 a 200; Idem, “Crimes de Perigo”, in «Casos e Materiais de Direito Penal», 3ª edição, Coimbra, 2004, pp. 354 e 355).
Citando de novo Figueiredo Dias:
“Tem sido questionada, também entre nós, a constitucionalidade dos crimes de perigo abstracto pelo facto de poderem constituir uma tutela demasiado avançada de um bem jurídico, pondo em sério risco quer o princípio da legalidade, quer o princípio da culpa (…). A doutrina maioritária e o TC pronunciam-se todavia, com razão, pela sua não inconstitucionalidade quando visarem a protecção de bens jurídicos de grande importância, quando for possível identificar claramente o bem jurídico tutelado e a conduta típica for descrita de uma forma tanto quanto possível precisa e minuciosa.” In op. cit., pp. 309 e 310.
E prossegue Figueiredo Dias:
“ (…) no âmbito da discussão acerca da constitucionalidade deste tipo de crimes surgiram posições que preconizam a não punição de condutas que configurem a prática de um crime de perigo abstracto quando se comprove que na realidade não existiu, de forma absoluta, perigo para o bem jurídico, ou que o agente tomou todas as medidas necessárias para evitar que o bem jurídico fosse colocado em perigo. A este propósito começou a falar-se na doutrina de crimes de perigo abstracto-concreto. Neles o perigo abstracto não é só critério interpretativo e de aplicação, mas deve também ser momento referencial da culpa e, por isso, admitem a “possibilidade de a perigosidade ser objecto de um juízo negativo”. In op. cit., p. 310.
Os “crimes de perigo abstracto-concreto” assentam pois numa ideia de que um tipo de crime originariamente concebido como de perigo abstracto pode ser alvo de um juízo de afastamento de determinada conduta típica, desde que seja possível ao arguido demonstrar a inexistência do perigo, nas concretas circunstâncias que se verificaram no momento da conduta originariamente típica. Desta feita, exige-se assim que o arguido afaste a presunção de perigo, demonstrando que, no caso concreto, a sua conduta não era susceptível de colocar em crise quaisquer bens jurídicos (neste sentido, ver José Faria e Costa, “O Perigo em Direito Penal”, op. cit., nota de rodapé n.º 175, p. 643; Rui Patrício, “Crimes de Perigo”, op. cit., pp. 355 e 356).
Ora, num primeiro momento, o recorrente vem colocar em causa a própria constitucionalidade de qualquer norma incriminadora que preveja um tipo de crime de perigo abstracto, por considerar que, nesses casos – e, em especial, no caso do crime de condução sob o efeito de álcool ou de estupefacientes (artigo 292º, do CP) –, tal incriminação constitui uma “tutela demasiado avançada do bem jurídico que coloca em crise o princípio da legalidade e o princípio da culpa”, por, no seu entender, se prescindir da verificação em concreto de um efectivo risco de lesão de bens jurídicos concretos.
Ainda que nunca se tenha pronunciado sobre esta específica norma incriminadora, o Tribunal Constitucional já apreciou diversas normas que procederam à tipificação de crimes de perigo abstracto. Por exemplo, através do Acórdão n.º 144/04 (tal jurisprudência foi, posteriormente, confirmada pelos Acórdãos n.º 196/04, n.º 303/04, n.º 170/06, n.º 396/07, n.º 522/07 e n.º 591/07, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt), a propósito da configuração do crime de lenocínio, enquanto crime de perigo abstracto (então, artigo 170º, n.º 1, do CP, correspondendo ao actual artigo 169º, n.º 1, do CP), este Tribunal pôde concluir que:
O facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir do qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desprotecção social.
Tal opção tem o sentido de evitar já o risco de tais situações de exploração, risco considerado elevado e não aceitável, e é justificada pela prevenção dessas situações, concluindo-se pelos estudos empíricos que tal risco é elevado e existe, efectivamente, no nosso país, na medida em que as situações de prostituição estão associadas a carências sociais elevadas (sobre a realidade sociológica da prostituição cf., por exemplo, Almiro Simões Rodrigues, “Prostituição: – Que conceito- – Que realidade-”, em Infância e Juventude, Revista da Direcção-geral dos Serviços Tutelares de Menores, nº 2, 1984, p. 7 e ss., e José Martins Barra da Costa e Lurdes Barata Alves, Prostituição 2001 ..., ob.cit., supra) não é tal opção inadequada ou desproporcional ao fim de proteger bens jurídicos pessoais relacionados com a autonomia e a liberdade. Ancora-se esta solução legal num ponto de vista que tem ainda amparo num princípio de ofensividade, à luz de um entendimento compatível com o Estado de Direito democrático, nos termos do qual se verificaria uma opção de política criminal baseada numa certa percepção do dano ou do perigo de certo dano associada à violação de deveres para com outrem – deveres de não aproveitamento e exploração económica de pessoas em estado de carência social (…)”.
Este Tribunal pronunciou-se igualmente sobre a compatibilidade da previsão legal de crimes de perigo abstracto com as exigências dos princípios da culpa e da proporcionalidade, a propósito do crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido no n.º 1 do artigo 23º do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro. Assim, o Acórdão n.º 426/91, de 6 de Novembro (posteriormente corroborado pelo Acórdão n.º 441/94, de 7 de Junho, ambos publicados no Diário da República, II Série, de 2.4.92 e 27.10.94, respectivamente, bem como pelo Acórdão n.º 604/97, disponível in www.tribunalconstitucional.pt) afirmou o seguinte:
“17 — O problema da eventual violação do princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança coloca-se com peculiar acuidade a respeito dos crimes de perigo abstracto — como o previsto no n.º 1 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 430/83 —, por a consumação destes não depender da criação de um perigo e nem sequer da concreta perigosidade da acção.
No entanto, não se pode concluir que estas incriminações violam, in totum, o aludido princípio constitucional. A sua compatibilidade com a Constituição dependerá, decisivamente, da razoabilidade da antecipação da tutela penal quando se incriminam, desde logo, acções que têm em geral aptidão para serem elementos do processo causal dos danos ligados ao tráfico de estupefacientes — tanto os danos das pessoas dos consumidores como os da sociedade —, abstraindo de outras condições indispensáveis para que no caso se produzam realmente tais danos ou sequer o perigo concreto da produção deles.
(…)
18 — No que respeita ao tráfico de estupefacientes, é hoje evidente a necessidade da incriminação de perigo, para promover a tutela de bens jurídicos essenciais. Neste contexto, a alternativa de recorrer, em exclusivo, às tradicionais incriminações do homicídio e das ofensas corporais, designadamente, revela-se insuficiente.
E cabe certamente na margem de apreciação do legislador criminal, como se expôs, entender que, desde logo, as condutas descritas no n.º 1 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 430/83 acarretam, por si mesmas, uma grave carência de defesa de bens jurídicos essenciais. Dificilmente se vislumbra, aliás, como poderá ser feita, num qualquer caso, a prova de que o tráfico de estupefacientes é absolutamente insusceptível de criar perigo.
Por conseguinte, a norma contida no n.º 1 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 430/83, tal como foi interpretada pelo tribunal a quo, não viola o princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança, implicitamente consagrado no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.
D) A alegada violação do princípio da culpa
19 — O recorrente alega, expressamente, a violação do princípio da culpa, «…que decorre do artigo 25.º, n.º 1, da Constituição», pelo n.º 1 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 430/83.
Para fundamentar esta posição, o recorrente invoca os ensinamentos de Cavaleiro de Ferreira e de Figueiredo Dias. Fá-lo, no entanto, de forma equivocada, atribuindo a estes autores uma tese que eles não sustentam.
Na verdade, ao citar os referidos autores, o recorrente pretende que os crimes de perigo abstracto contrariam sempre, pela sua natureza, o princípio de culpa. Ora, Cavaleiro de Ferreira, na obra e no local citados pelo recorrente (Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, A Lei Penal e a Teoria do Crime no Código Penal de 1982, 1988, pp. 240 a 245), nem sequer trata da distinção entre crimes de perigo concreto e crimes de perigo abstracto, limitando-se a apreciar, criticamente, as incriminações de perigo comum constantes do Código Penal. Por seu turno, Figueiredo Dias não questiona a constitucionalidade dos crimes de perigo abstracto em geral, mas apenas a admissibilidade da criação destas incriminações no âmbito da protecção do ambiente («Sobre o papel do direito penal na protecção do ambiente», Revista de Direito e Economia, IV, 1978, 1, p. 17).
(…)
22 — Seria, no entanto, completamente deslocado transferir estas considerações feitas a propósito da defesa do ambiente — ou matérias similares — para o âmbito do tráfico de estupefacientes. As actividades em que o tráfico se analisa, no n.º 1 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 430/83, possuem uma ressonância ética só comparável, em intensidade, às «incriminações clássicas» às quais está associado, historicamente, o próprio conceito de crime, como o homicídio e o roubo. A condenação do tráfico de estupefacientes está indelevelmente inscrita na consciência ética das sociedades contemporâneas.
Assim, a norma contida no n.º 1 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 430/83, na interpretação que lhe deu o tribunal recorrido, não viola o princípio da culpa, consagrado, conjugadamente, nos artigos 1.º e 25.º, n.º 1, da Constituição.
E) A alegada violação do princípio da presunção de inocência do arguido
23 — O recorrente sustenta ainda que a norma em crise viola o disposto no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição: «Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa».
(…)
24 — Ora, no caso em apreço, o princípio da presunção de inocência é invocado, na sua dimensão processual, precisamente como proibição de inversão de ónus da prova em detrimento do arguido.
Alegadamente, o entendimento de que o tráfico de estupefacientes constitui um crime de perigo abstracto, promoveria uma inversão do ónus da prova contra reo.
Porém, esta alegação encerra um evidente equívoco: se a incriminação de perigo abstracto é admissível constitucionalmente, ante os princípios da necessidade e da culpa, então não faz sentido referir uma inversão do ónus da prova; o cometimento do crime deve ser, naturalmente, provado pela acusação, no plano das imputações objectiva e subjectiva; o que se não requer é a comprovação de que foi criado um perigo ou de que o meio de cometimento do crime foi perigoso, precisamente porque a incriminação não se funda no perigo concreto causado, mas na perigosidade geral da acção, isto é, na sua aptidão causal para causar perigos de certa espécie, abstraindo de outras circunstâncias também necessárias para que algum destes perigos se produza realmente; e, da mesma sorte, não se exige que o dolo abarque o perigo.
Consequentemente, a norma contida no n.º 1 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 430/83, na interpretação que lhe deu o tribunal a quo, não viola o princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição.”
Do exposto resulta que é jurisprudência firme e constante deste Tribunal que as normas incriminadoras que tipifiquem crimes de perigo abstracto não violam os princípios constitucionais especificamente invocados pelo recorrente.
8. Resta, então, verificar se esta jurisprudência é aplicável ao tipo de crime previsto no n.º 1 do artigo 292º do Código Penal.
No caso da norma ora em apreço, importa notar que aquela visa antecipar a protecção de um bem jurídico valioso – a segurança rodoviária – que encerra em si próprio diversos outros bens jurídicos individualizáveis, tais como o direito à vida e à integridade física de terceiros ou o direito à propriedade privada. Assente numa observação empírica, alicerçada em critérios médico-científicos, o legislador pôde concluir que a ingestão de álcool que atinja uma proporção de 1,2 gramas (ou mais) por litro de sangue é apta a incrementar o risco de lesão daqueles bens jurídicos (assim, ver Paula Ribeiro de Faria, in «Comentários Conimbricenses», Tomo II, 1999, Coimbra, p. 1093).
Deste modo, não se vislumbra de que modo pode verificar-se uma violação do princípio da intervenção mínima do Direito Penal – assente na ideia de proporcionalidade na restrição do direito à liberdade pessoal (artigo 18º, n.º 2, da CRP) –, na medida em que aquela restrição é, simultaneamente, “necessária” à protecção de outros bens jurídicos constitucionalmente protegidos, “adequada” à diminuição dos riscos de lesão de tais bens e “proporcionada em sentido estrito”, por assentar em critérios médico-científicos consensualizados que permitem aferir o grau de perturbação dos condutores sobre a influência de álcool.
De igual modo, à semelhança do que já foi dito por este Tribunal a propósito do Acórdão n.º 426/91, tal incriminação não belisca igualmente quer o princípio da culpa (artigos 1º, 2º e 25º, n.º 1, todos da CRP), quer o princípio da presunção de inocência (artigo 32º, n.º 2, da CRP). Por um lado, o crime de condução sob a influência de álcool já adquiriu uma ressonância ética indesmentível na comunidade jurídica portuguesa, progressivamente sedimentada na verificação do aumento de mortes e de ferimentos graves nas estradas nacionais, em resultado da condução sob aquela influência.
9. Por último, alude o recorrente à circunstância de ter sido feita prova de que o mesmo não colocou em causa qualquer bem jurídico.
Não é, todavia, pertinente esta asserção, uma vez que a decisão recorrida – que é um dado para este Tribunal – considerou que o crime era de perigo abstracto.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma extraída do n.º 1 do artigo 292º do Código Penal, configurado como crime de perigo abstracto;
E, em consequência,
b) Negar provimento ao presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2011
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão