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Processo nº 646/00
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Ministério Público veio, 'ao abrigo do disposto no artº 70º nº 1 – a) da Lei nº 28/82 de 15.11', interpor 'recurso obrigatório (artº. 72º - nº 3 da Lei supra citada com a redacção que lhe foi conferida pela Lei 85/89 de 07.09) para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL', da sentença do Mmº Juiz do Tribunal do Trabalho de Ponta Delgada, de 27 de Junho de 2000, 'na parte em que julga inconstitucional, por violação do artº 112 – nº 8 da Constituição, a Portaria de Extensão publicada no J.O., IV Série, nº 21 de 26 de Novembro de 1998' (e, como consequência, revogou 'a decisão que aplicou à recorrente [Santa Casa da Misericórdia de M...] uma coima'). O Mmº Juiz a quo, depois de fazer notar que o diploma em causa – uma portaria de extensão do contrato colectivo de trabalho para as Instituições Particulares de Solidariedade Social – foi publicada 'ao abrigo do nº 1 do artigo 29º do Decreto-Lei 519-C/79, de 29 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei 209/92, de 2 de Outubro, e alínea a) do artigo 1º do Decreto-Lei 243/78, de 19 de Agosto', assentou o juízo decisório de inconstitucionalidade na seguinte fundamentação:
'Na PE aqui posta em causa, invocam-se determinadas normas jurídicas. Serão elas as suficientes para se Ter por cumprido aquele preceito constitucional [o art.
112º, nº 8, da C.R.P.]? Entendemos que não. As normas indicadas são normas habilitantes, isto é, que permitem a intervenção da Administração, por meio de regulamento; mas não são normas que definem a competência subjectiva (do órgão administrativo) para a sua emissão. O que o art. 1º, nº 1, do DL 243/78, de 19 de Agosto (com a redacção introduzida pelo DL 385/89, de 19/X) fez foi transferir para a R.A.A certas competências no sector do trabalho. Mas mais do que falar em competências, aqui deve-se falar em atribuições em matéria laboral; a competência é, depois, repartida pelos diversos órgãos (o Governo, as Secretarias Regionais). Mas a definição do órgão competente para a emissão das Portarias não é feita nestes diplomas – e não deixaremos de notar que o art. 2º, nºs 2, 3 e 4 fala genericamente em ‘secretarias regionais’. São avançados dois argumentos no sentido da desnecessidade de indicação da lei que confere competência. Eles são desde logo improcedentes porque visam demonstrar o indemonstrável: o princípio da legalidade é imperativo e não está sujeito a apreciação de conveniência ou necessidade da sua invocação. Ele existe para ser cumprido. Mas os argumentos são os seguintes:
1º - Se no continente a competência para editar as PE cabe ao Ministro do Emprego e Segurança Social, na R.A.A esta competência só poderia caber ao Secretário Regional da Educação e Assuntos Sociais.
‘Só’ porquê? A competência deriva da lei e não de um raciocínio lógico-dedutivo.
2º - Para que se não conteste o exposto (no argumento anterior) é ver o disposto na lei orgânica da citada Secretaria Regional. Há aqui um erro grave. Quem tem, por imperativo da legalidade da sua actuação, que ver o disposto na Lei Orgânica da Secretaria é o Senhor Secretário'.
2. Nas suas alegações, conclui assim o Ministério Público recorrente:
'1º - Tem de considerar-se bastante, na perspectiva do cumprimento do dever de citação da lei habilitante, imposto pelo artigo 112º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa, a indicação – como base legal de certo regulamento laboral
(portaria regional de extensão de certa convenção colectiva) – da lei geral que comete tal competência, a nível nacional, ao Ministro do Emprego de Segurança Social e da lei que delega na Região Autónoma dos Açores tal regulamentação, no
âmbito de sectores profissionais e económicos a ela circunscritos.
2º - Na verdade, tais indicações permitem ao destinatários do regulamento uma fácil e imediata apreensão do quadro normativo legal em que este surge e se situa, realizando, consequentemente, a uma perspectiva funcional, o objectivo subjacente ao dever constitucional de indicação da lei habilitante.
3º - Por outro lado, apurar se a Secretaria Regional que efectivamente editou tal portaria de extensão detém – face à Lei Orgânica do Governo Regional – competência para o fazer é questão que se situa exclusivamente no âmbito da estrita legalidade de tal portaria, matéria estranha às competências deste Tribunal Constitucional.
4º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida, não que respeita à suficiência de indicação da lei habilitante e consequente inverificação da inconstitucionalidade formal ali decretada'.
3. Também alega a recorrida Santa Casa da Misericórdia , concluindo assim:
'A) Quer as portarias de regulamentação de trabalho quer as portarias de extensão têm a natureza de regulamentos administrativos. B) Nos termos do n ° 8 do artigo 112º da CRP « Os regulamentos devem indicar expressamente as leis (...) que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão. » C) A Portaria de Extensão do CCT entre a União das Instituições de Solidariedade Social e outra e o Sindicato dos Profissionais dos Transportes, Turismo e Outro Serviço de Angra do Heroísmo e Outros, publicada no Jornal Oficial, IV Série - Número 21,de 26/11/98 que fundamentou a coima aplicada à recorrente, não indica expressamente a lei que define a competência subjectiva, Secretário Regional da Educação e Assuntos Sociais para a emitir. Assim; D) Verifica-se a inconstitucionalidade formal da referida Portaria de Extensão por violação do n.° 8 ( 2.ª parte) do artigo 112° da Constituição da República Portuguesa. Por conseguinte; E) Nenhum reparo merece a decisão recorrida que deve ser confirmada por esse douto Tribunal, negando-se provimento ao recurso'.
4. Tudo visto, cumpre decidir. Na Portaria de Extensão em causa, doravante Portaria, publicada no Jornal Oficial, IV Série, nº 21, de 26 de Novembro de 1998, pode ler-se no intróito:
'Manda o Governo da Região Autónoma, pelo Secretário Regional da Educação e Assuntos Sociais, ao abrigo do nº 1 do artigo 29º do Decreto-Lei nº 519-C/79, de
29 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei nº 209/92, de 2 de Outubro e alínea a) do artigo 1º do Decreto-Lei nº 243/78, de 19 de Agosto, o seguinte (...)'. Que a Portaria, reportando-se a um contrato colectivo de trabalho, é um acto normativo de natureza regulamentar, é ponto inquestionável, aceite, aliás, pelas partes e afirmado na sentença recorrida, pelo que não merece estar aqui a demonstrá-lo (cfr., v.g., o acórdão do Tribunal Constitucional nº 368/97, in Acórdãos, 37º vol., pág. 139). Como tal, a Portaria tem de obedecer à exigência formal do nº 8 do artigo 112º da Constituição (correspondendo ipsis verbis ao nº 7 do artigo 115º, antes da revisão de 1997) e aí 'a função da exigência de identificação expressa consiste não apenas em disciplinar o uso do poder regulamentar (obrigando o Governo e a Administração a controlarem, em cada caso a habilitação legal de cada regulamento) mas também em garantir a segurança e a transparência jurídicas, sobretudo relevante à luz da principiologia do Estado de direito democrático'
(Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada 3ª ed., pág. 516). Esta regra da estrutura das fontes de direito, no caso, as de natureza regulamentar, onde se expressa um poder administrativo, que corresponde ao exercício de uma função de segundo grau, tem de conter-se, no entanto, nos limites de um formalismo comedido e bem entendido. Será esse o caso da sentença recorrida? Ou aí presta-se antes uma homenagem excessiva ao formalismo, quando se conclui que as normas mencionadas na Portaria, sendo normas habilitantes, 'não são normas que definem a competência subjectiva (do órgão administrativo) para a sua emissão?' A resposta é dada pelo Ministério Público recorrente quando diz nas suas alegações que 'tal menção tem de considerar-se bastante para se considerar cumprido o dever de citação da lei habilitante – apesar de se não invocar expressamente qual a norma de que resulta a concreta competência da Secretaria Regional da Educação e dos Assuntos Sociais para editar a referida portaria de extensão'. E acrescenta-se a seguir naquelas alegações:
'É que – da conjugação dos preceitos invocados como lei habilitante – decorre que a edição da portaria de extensão em causa é da competência do órgão que, na Região Autónoma dos Açores exerça competências paralelas às que – a nível nacional – pertencem ao Ministro do Emprego e Segurança Social – o que, a nosso ver, assegura, em termos constitucionalmente bastantes, a realização do objectivo prosseguido pelo artigo 112º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa: facultar aos destinatários do regulamento a apreensão quadro normativo essencial e estruturante, à luz do qual ele surge no ordenamento jurídico. Não será, deste modo, condição da constitucionalidade formal da norma regulamentar uma indicação exaustiva, completa e minuciosa de todos os preceitos legais que podem conduzir à concreta competência do órgão administrativo que editou certo regulamento, bastando que as indicações fornecidas ao particular a quem as normas regulamentares se irão aplicar lhe permitam, sem qualquer dificuldade séria, reconstituir e identificar o quadro legal em cujo âmbito surgiu, na ordem jurídica, certo regulamento administrativo autónomo'. Tanto basta para concluir, e encurtando razões, que os destinatários da Portaria facilmente podem alcançar, para a Região Autónoma dos Açores, no quadro de matérias do trabalho e dos sectores da actividade profissional ou económica, onde reside a competência dos órgãos administrativos da Região para o exercício do poder regulamentar, ainda que em concreto não se enuncie o Secretário Regional da Educação e Assuntos Sociais. Pode, pois, com facilidade e segurança,
à luz da indicada 'alínea a) do artigo 1º do Decreto - Lei nº 243/78, de 19 de Agosto', detectar - se a competência subjectiva para a emissão da Portaria ( cfr. o acórdão do Tribunal Constitucional nº 501/2000, publicado no Diário da República, II Série, nº 3, de 4 de Janeiro, citando-se outros arestos, tudo sobre 'a razão de ser da exigência constitucional da menção de lei habilitante'). Com o que não procede o vício de inconstitucionalidade formal apontado na sentença recorrida, que presta uma homenagem excessiva ao formalismo decorrente do nº 8 do artigo 112º da Constituição.
5. Termos em que , DECIDINDO, concede-se provimento ao recurso e revoga-se a sentença recorrida, para ser reformada de acordo com o presente juízo de constitucionalidade. Lisboa, 14 de Março de 2001- Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida