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Proc. nº 762/99
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. M instaurou, junto do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, recurso contencioso de anulação da decisão da Direcção da Caixa de Previdência dos Advogados que lhe atribuiu oficiosamente o 3º escalão de remuneração convencional, para efeito de descontos.
No respectivo requerimento, o impugnante invocou a inconstitucionalidade do artigo 72º, nº 2, alínea d), do Regulamento da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, por violação do princípio da igualdade, na medida em que determina a fixação do 3º escalão, quando, de acordo com o regime geral das contribuições para a previdência, o contribuinte estaria isento.
O Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, por decisão de 26 de Dezembro de 1998, negou provimento ao recurso.
2. M interpôs recurso da decisão de 26 de Dezembro de 1998 para o Supremo Tribunal Administrativo, invocando, de novo, a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 72º do aludido regulamento.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 6 de Outubro de
1999, negou provimento ao recurso, considerando que a norma do artigo 72º, nº 3, alínea d), não viola qualquer preceito constitucional.
3. M interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 6 de Outubro de 1999, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 72º, nº 3, alínea d), do Regulamento da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores.
Junto do Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo: Termos em que o Regulamento CPAS é inconstitucional e ilegal, igualmente por violação das referidas disposições, e mormente quanto ao seu sistema contributivo, previsto no artigo 72º, em especial quanto aos seus nº 2 e nº 3, alínea d).
Por seu turno, a recorrida contra-alegou, tirando as seguintes conclusões:
1. não há no Regulamento do CPAS, e em particular no respectivo art. 72º, qualquer ofensa ou violação de princípios, direitos ou liberdades constitucionais, seja ao nível da igualdade, seja quanto à escolha de profissão e à igualdade de oportunidades nessa mesma escolha, seja em matéria de direito à segurança social;
2. e não existe ilegalidade no âmbito (invocado pelo recorrente) do enquadramento legal da segurança social uma vez que o regime privativo de segurança social dos advogados e solicitadores coexiste em vigor com os demais regimes previdenciais, nomeadamente o regime geral ou (outros) regimes especiais estatuídos para os trabalhadores independentes;
3. tendo-se, ademais, demonstrado a plena legitimidade jurídico-constitucional do regime institucional e normativo do CPAS, aqui recorrida, em que se inclui a disposição (art. 72º) cujo desvalor, constitucional e legal, foi nestes autos infundadamente arguido junto de Vossas Excelências.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
5. O preceito impugnado tem a seguinte redacção: Artigo 72º Contribuições dos beneficiários ordinários
(...)
2 - Quando o beneficiário não indique o escalão da remuneração convencional escolhido como base de incidência é fixado:
(...) d) O 3º escalão, nos restantes casos, salvo se já tiver vigorado escalão superior no ano anterior, caso em que continuará a ser este.
(...)
O artigo 6º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 328/93, de 25 de Setembro (que regula o regime geral das contribuições para a previdência dos trabalhadores independentes), na redacção que lhe foi conferida pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 240/96, de 14 de Dezembro, exclui das categorias de trabalhadores abrangidos pela obrigação de descontar aqueles cujos rendimentos não excedam seis vezes a remuneração mínima mensal mais elevada garantida à generalidade dos trabalhadores. O artigo 33º, nº 2, do mesmo diploma estabelece, igualmente, um regime mais favorável para os trabalhadores independentes que aufiram rendimento líquido inferior a 12 vezes o valor da remuneração mínima. E o artigo 34º, nº 2, prevê, também, um regime mais favorável na escolha do escalão da remuneração convencional.
O Supremo Tribunal Administrativo considerou, porém, que no caso dos advogados tem aplicação, sem excepção, a norma do artigo 72º, nº 3, alínea d), segundo a qual é aplicado o 3º escalão oficiosamente quando o beneficiário tiver mais de três anos de inscrição na Ordem dos Advogados e não tiver indicado o escalão da remuneração convencional escolhido como base de incidência (sendo certo que o ora recorrente requereu junto da Direcção da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores a isenção de qualquer contribuição, com fundamento no mencionado artigo 6º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 328/93 - cf. fls. 8 e ss.).
O recorrente sustenta que a norma impugnada viola o disposto nos artigos 13º, 47º, nº 1, 58º, nº 2, alínea b), e 63º da Constituição.
6. Antes, porém, de iniciar a apreciação do objecto do recurso, importa abordar uma outra questão.
O recorrente invoca, nas alegações apresentadas junto do Tribunal Constitucional, a violação, pela norma impugnada, da Lei de Bases da Segurança Social. Contudo, sendo o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o seu objecto só pode ser constituído por questões de inconstitucionalidade normativa e não por questões de ilegalidade.
Nessa medida, o Tribunal Constitucional não se pronunciará sobre a alegada violação da Lei de Bases da Segurança Social.
7. Violará a norma questionada os referidos preceitos constitucionais? O princípio da igualdade, como parâmetro de apreciação da legitimidade constitucional do direito infraconstitucional impõe que situações materialmente semelhantes sejam objecto de tratamento semelhante e que situações substancialmente diferentes tenham, por sua vez, tratamento diferenciado. Tal não significa, porém, que não exista uma certa margem de liberdade na conformação legislativa das várias soluções concretamente consagradas, e até que não se reconheça a possibilidade de o legislador consagrar, em face de uma dada categoria de situações, uma solução que se afaste da solução prevista para outras constelações de casos semelhantes. Isso só poderá acontecer, contudo, quando for identificável um outro valor, também ele com ressonância constitucional, que imponha, ou pelo menos justifique e torne razoável , a diferenciação (cf., entre outros, Acórdão nº 1167/96, de 20 de Novembro – D.R. n.º 32, II série, de 7 de Fevereiro de 1997).
Resulta do pedido do recorrente que ele não contesta a obrigatoriedade da inscrição como contribuinte na Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados e Solicitadores, mas que pretende apenas ser dispensado de pagar as respectivas quotizações, aceitando, simultaneamente, a obrigatoriedade da inscrição.
O que o recorrente, na realidade, pretende é que, estando inscrito na Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados e Solicitadores, seja isento de para ela contribuir, embora continue a beneficiar dos serviços garantidos por aquela Caixa, por força dos limitados proventos que aufere.
Nessa medida, o recorrente define a questão de constitucionalidade a partir do artigo 72º, nºs 2 e 3, alínea d), do Regulamento da Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados e Solicitadores que estipula o escalão de contribuição, nunca invocando a norma do Regulamento da Caixa de Previdência que torna obrigatória a inscrição (artigo 5º). Argumentando desse modo, o recorrente confunde o regime do Decreto-Lei nº 240/96 (artigos 6º e 39º e ss.) com a previsão de uma isenção de contribuição, quando na realidade nele apenas se consagra uma isenção de inscrição, e vem apelar à igualdade entre duas situações nunca equiparáveis - a situação de isenção de inscrição do regime geral e a de isenção de contribuição que pretende alcançar.
Com efeito, o diploma que regula o regime geral nunca prevê a situação que o recorrente pretende ver regulada - a da isenção de contribuição - não se verificando qualquer ponto de apoio para uma desigualdade de regimes relativamente à situação em causa.
Independentemente de outras considerações relacionadas com a especificidade da Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados e Solicitadores, que pudessem eventualmente justificar uma qualquer diferenciação de regimes, não há, assim, violação da igualdade pelo artigo 72º, nº 2, alínea d), quando confrontado com o regime do Decreto-Lei nº 240/96, no que se refere a uma impossibilidade de isenção de contribuição.
O pedido do recorrente foi sempre formulado nas alegações com a dimensão assinalada, nunca tendo sido colocada, em si, durante o processo, a questão da inconstitucionalidade da obrigatoriedade da inscrição em conexão com as normas que consagram tal obrigatoriedade. O referido artigo 72º, nº 2, alínea d), do Regulamento da Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados e Solicitadores, apenas diz respeito, como se disse, aos escalões da contribuição. A questão de obrigatoriedade de inscrição no plano constitucional não poderia, assim, ser directamente referida ao preceito invocado pelo recorrente, que não exprime essa obrigatoriedade. Por outro lado, o recorrente aceita expressamente não discutir a referida questão (cf. Petição Inicial, artigo 19, e requerimento de fls. 8, artigo 2).
Em conclusão, resulta do que atrás se averiguou que não há qualquer violação da igualdade (artigo 13º da Constituição) pela norma em causa quando confrontada com o regime geral consagrado pelo Decreto-Lei nº 328/93, de 25 de Setembro, na redacção do Decreto-Lei nº 240/96, de 14 de Dezembro.
8. Também a alegada violação dos artigos 47º, 58º, nº 2, alínea b), da Constituição não pode ser suscitada a partir do artigo 72º, nº 2, do Regulamento que não se refere sequer à obrigatoriedade da inscrição como condição do exercício da profissão, sendo, por isso, infundada a colocação de violação daquelas normas constitucionais pelo preceito em causa.
9. Por fim, a norma sub judicio não tem a virtualidade de violar o artigo 63º nºs 1 e 2, da Constituição na medida em que não decorre dela qualquer impossibilidade de obtenção de benefícios decorrentes de um sistema de segurança social ou qualquer concretização do direito à segurança social.
Um eventual juízo de inconstitucionalidade apenas poderia vir a incidir sobre o referido artigo 72º, nº 2, alínea d), conforme o princípio do pedido [artigo 79º, alínea c), da Lei do Tribunal Constitucional], o qual, em si mesmo, não se refere nem à obrigatoriedade de inscrição na Caixa de Previdência nem à repartição de alternativas quanto ao exercício do direito à segurança social, não se confrontando, por isso, com aquelas normas constitucionais.
10. Ao decidir deste modo o Tribunal não nega que a violação daqueles preceitos constitucionais poderia ter sido suscitada de modo adequado, independentemente da solução que se viesse a dar no plano do juízo de constitucionalidade, mas apenas considera que o pedido foi formulado misturando razões e argumentos. Em qualquer caso, porém, a questão que parece evidenciar-se, interpretando o pedido do recorrente é a de que seria inconstitucional, por violação das normas constitucionais que consagram o direito à segurança social, a inexistência de uma isenção de contribuição para certos beneficiários inscritos na Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados e Solicitadores, existindo simultaneamente um direito a estar inscrito, ser beneficiário, e não contribuir por força da escassez dos rendimentos auferidos na profissão. Ora, não resulta da Constituição que um sistema específico de segurança social, relacionado com o exercício de uma certa profissão tenha de admitir essa situação. Se é uma decorrência da dignidade da pessoa humana que ninguém possa ser privado em absoluto do direito à segurança social só por não estar em condições de contribuir não é já aceitável que a colaboração institucional com o Estado de uma ordem profissional quanto à segurança social imponha que seja dispensado de contribuição quem não realize nessa profissão os rendimentos suficientes. A lógica solidarística que se justifica para os impossibilitados de contribuir para o sistema geral, determina os apoios específicos do chamado regime não contributivo (artigos 28º e ss. da Lei de Bases da Segurança Social) não determina, sem mais, uma pura isenção de contribuição para um sistema de previdência de cariz profissional cujos recursos são exclusivamente as contribuições dos elementos inscritos.
O não poder ser dispensado de contribuição não impede o recorrente de beneficiar de sistemas alternativos de segurança social.
III Decisão
11. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide: a) Não tomar conhecimento da questão de legalidade normativa suscitada; b) Não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 72º, nº 3, alínea d), do Regulamento da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, negando, consequentemente, provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. Lisboa, 14 de Março de 2001 Maria Fernanda Palma Bravo Serra Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida