Imprimir acórdão
Processo nº 705/00
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - WM, notificado da decisão sumária proferida nos autos de processo de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, por si interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18 de Outubro de
2000, vem dela reclamar para a conferência, nos termos do nº 3 do artigo 78º-A do mesmo diploma legal.
No seu requerimento de recurso, o ora reclamante pedia a apreciação da constitucionalidade das normas dos nºs. 4 do artigo 97º e 3 do artigo 194º do Código de Processo Penal quando interpretadas e aplicadas – como, em seu entender, o foram pelo tribunal a quo – no sentido de que a expressão
'indiciam os autos suficientemente' caracteriza o entendimento da exigência de enunciação e especificação dos motivos de facto da decisão que decreta a prisão preventiva.
Na tese do recorrente, as referidas interpretação e aplicação violam o disposto nos artigos 205º, nº 1, 32º, nºs. 1, 2 e 5, 202º, nºs. 1, 2 e 3, 203º, nº 3, 27º, nº 3, alínea b), e 28º, nºs. 1 e 3, todos da Constituição da República (CR).
Na presente reclamação, pede o interessado que seja atendida a reclamação para que se tome conhecimento do objecto do recurso.
2.1. - A decisão sumária ora sob reclamação, de 4 de Dezembro de
2000, é do seguinte teor:
'1. - WM, identificado nos autos, detido no aeroporto de Lisboa em 21 de Julho de 2000, foi sujeito, no dia imediato, ao interrogatório judicial a que alude o artigo 141º do Código de Processo Penal (CPP), no Tribunal Judicial da Comarca de Almada. O despacho judicial proferido, após invocar o preceituado nos artigos 191º,
192º, 193º, 204º, alíneas a) e b), e 202º, nº 1, alínea a), todos do CPP, determinou que o arguido aguardasse em prisão preventiva os ulteriores trâmites processuais. Este, inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 18 de Outubro, julgou o recurso improcedente. Na motivação que oportunamente apresentou pretendia o recorrente obter a nulidade daquele despacho, com a sua consequente restituição à liberdade – ou, quando muito, a substituição da medida por outra, não privativa, da liberdade – e, para o efeito e em síntese, invocando a falta de fundamentação da decisão, suscitou o problema da inconstitucionalidade do regime de nulidades em processo penal – mais concretamente, das normas dos artigos 118º a 123º do CPP – na medida em que gerem mera irregularidade (como tal a arguir no próprio acto, não invocável já na motivação do recurso). No articulado de resposta apresentado pelo Ministério Público, nos termos do artigo 413º do CPP, considerou este magistrado, na parte que ao ora arguido toca, que o despacho judicial se encontra devidamente fundamentado, devendo, como tal, ser confirmado na íntegra. Nomeadamente, observou-se que 'perante todos os elementos de prova já carreados para os autos, designadamente pelas denúncias de pessoas devidamente identificadas no processo, escutas telefónicas, documentação apreendida em revistas e buscas, vigilâncias, bem como das declarações dos próprios arguidos, existem fortes indícios da prática dos crimes de falsificação de documentos p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, alínea a), e nº 3, do Código Penal e de auxílio à imigração ilegal p. e p. pelos artigos 134º e 135º do Decreto-Lei nº 244/98, de
8 de Agosto'. Acresce, como ainda se notou, que o arguido é de nacionalidade brasileira e encontra-se em Portugal em situação ilegal, não tendo residência fixa nem qualquer ligação familiar ou outra no nosso País, sendo manifesto não só o perigo de fuga, mas também perigo de perturbação do inquérito, designadamente no que se relaciona com a aquisição e conservação da prova. Subiram os autos à Relação e aí, no seu visto, o magistrado do Ministério Público junto desse Tribunal notou nada ter a acrescentar aos fundamentos do despacho recorrido e aos argumentos contidos na resposta do Ministério Público, sendo de parecer que o recurso não merece provimento. Notificado, de acordo com o disposto no nº 2 do artigo 417º do CPP, o arguido veio, então, sustentar a inconstitucionalidade das normas dos artigos 97º, nº 4, e 194º, nº 3, do CPP, se interpretadas no sentido de que a expressão genérica os autos indiciam suficientemente satisfaz a exigência constitucional de especificação e enunciação dos motivos de facto. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 18 de Outubro último, 'declarou improcedente o recurso'.
É deste acórdão que o arguido recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Pretende a apreciação da constitucionalidade daquelas normas processuais penais
– nº 4 do artigo 97º e nº 3 do artigo 194º – interpretadas e aplicadas pelo acórdão recorrido no sentido de que «a expressão 'indiciam os autos suficientemente' caracteriza o atendimento da exigência de enunciação e especificação dos motivos de facto da decisão que decreta a prisão preventiva». Na tese do recorrente, as referidas interpretação e aplicação violam o disposto nos artigos 205º, nº 1, 32º, nºs. 1, 2 e 5, 202º, nºs. 1, 2 e 3, 203º, nº 3,
27º, nº 3, alínea b), e 28º, nºs. 1 e 3, da Constituição da República.
2. - Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu o recurso – nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82 – entende-se não poder conhecer-se do objecto do recurso, sendo caso de proferir decisão sumária, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A do mesmo diploma legal.
3. - Com efeito, a admissibilidade do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, exige a congregação de vários pressupostos, consistindo um deles na aplicação, pela decisão impugnada, como sua ratio decidendi, da norma cuja conformação constitucional se pretende apreciar, tomada seja no seu todo ou em determinado segmento, seja em dada interpretação. No concreto caso é desta última vertente que se trata. Poderia, é certo, e desde logo, entender-se que não está posta em causa uma dimensão interpretativa dos preceitos legais convocados, tal como foi precipitada na decisão, mas sim esta própria, em si mesma considerada, e, assim, discutir-se-ia a constitucionalidade da conclusão a que o aresto recorrido chegou quanto à existência de suficiente indiciação dos motivos de facto e de direito que conduziram ao decretamento da prisão preventiva – o que, manifestamente, não se insere no âmbito do controlo normativo próprio deste tipo de recurso. De qualquer modo, o acórdão não aplicou qualquer das normas impugnadas com o sentido que lhes é atribuído.
4. - A norma do nº 4 do artigo 97º do CPP consagra o princípio geral de fundamentação dos actos decisórios, enquanto a norma do nº 3 do artigo 194º do mesmo diploma acolhe a regra de fundamentação dos despachos que decretam medidas de coacção e de garantia patrimonial. Este dever de fundamentação, de que ambas cuidam, entronca no nº 1 do artigo
205º do texto constitucional e filia-se na concepção do direito dos cidadãos a um processo justo e equitativo que melhor assegure a ponderação dos juízos que afectem as partes e, do mesmo passo, permite-lhes um controlo mais adequado da legalidade desses juízos, nomeadamente tendo em vista a adaptação, com melhor ciência, das estratégias de impugnação que se mostrem mais correctas – como, recentemente, em caso de grande afinidade com o presente, se observou em acórdão deste Tribunal, nº 147/2000, ainda inédito. O mandado constitucional de fundamentação das decisões dos tribunais, genericamente consagrado no indicado preceito do artigo 205º, nº 1, não deixa, no entanto, de ser aberto à actuação constitutiva do legislador ordinário, a quem se devolve o encargo de definir o âmbito e a extensão do dever de fundamentar, com uma margem de liberdade que, obviamente, não toque no dever de fundamentar como garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático (cfr., v.g., os acórdãos nºs. 56/97 e 223/98, publicados no Diário da República, II Série, de 18 de Março de 1997 e 25 de Julho de 1998, respectivamente).
É assim que, por via do nº 4 do artigo 97º, na sua actual redacção, se impõe, na fundamentação das decisões, que se especifiquem os motivos de facto e de direito da decisão, enquanto o nº 3 do artigo 194º implica que o despacho judicial que decrete medidas de coacção e de garantia patrimonial contenha a 'enunciação dos motivos de facto de decisão'. A esta luz, a prisão preventiva aparece como uma providência cautelar onde releva especialmente a apreciação prudencial do juiz quanto à necessidade da sua utilização, como se escreveu no acórdão nº 1196/96, publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Fevereiro de 1997, indicando-se 'com muita precisão os pressupostos que deverão condicionar a respectiva decisão'. Esse dever de fundamentar do juiz não é, porém, incompatível, necessariamente, com uma técnica remissiva que lhe permita, por razões de economia processual, escudar-se nas diversas peças do processo ou, inclusivamente, na promoção do Ministério Público – como este Tribunal tem entendido (cfr. acórdão nº 189/99, publicado no Diário citado, de 17 de Fevereiro de 2000). Como veremos, é nesta leitura que deve ser compreendida a decisão recorrida.
5. - A interpretação atribuída ao despacho que decretou a prisão preventiva e que a Relação acolheu baseia-se num eixo sintagmático descontextualizado, e, como tal, susceptível de induzir em erro. Na verdade, aquelas decisões judiciais não se contentaram com uma indiciação suficiente, como o interessado pretende que tenha sucedido. Com efeito, o mencionado despacho procedeu à qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, o que fez correctamente, segundo o acórdão que sobre ela se pronunciou. E, por outro lado, ponderou os fundamentos justificativos da medida aplicada, destacando a situação pessoal e familiar do arguido, o receio de fuga e o perigo que, para a aquisição de prova, resultaria da observância de medida diferente.
É o que resulta da leitura integral do despacho:
'Indiciam os autos suficientemente que o arguido WM cometeu os crimes previstos e punidos pelo artigo 135º nºs. 1 e 2 do DL. 244/98 de 8 de Agosto, em concurso com o crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º nºs. 1 al. a) e
3 do C. Penal. O crime previsto pelo art. 135º é punido com prisão de 1 a 5 anos e o crime de falsificação de documentos é punido com prisão de 6 meses a 5 anos. Tal como referiu o ilustre Procurador-Adjunto o arguido não tem no nosso país qualquer ligação familiar ou profissional sendo certo que, como ele próprio referiu, quando foi detido ia-se embora de vez. Há assim evidente perigo de fuga. Para além disso e tendo em conta os restantes elementos dos autos existe ainda o receio de que o arguido, em liberdade, constitua perigo para a aquisição da prova. Por tudo isto, concluímos que a única medida adequada a evitar os perigos acima referidos é a prisão preventiva. Assim, vistos os artºs. 191º, 192º, 193º, 204º, al. a) e b) e 202º nº 1 al. a), todos do C.P. Penal determino que o arguido aguarde os ulteriores trâmites processuais em prisão preventiva [...].'
Por sua vez, o Tribunal da Relação, após alinhar os factos a considerar e de sublinhar o equilíbrio a observar, em casos como o presente, entre a pormenorizada descrição fáctica e a necessária investigação alargada, designadamente em relação aos outros arguidos, bastou-se com o reproduzido teor da decisão judicial mas em termos que não se reconduzem à interpretação atribuída. Destaque-se, nomeadamente, a seguinte passagem do aresto:
'[...] o primeiro interrogatório judicial de arguido preso destina-se, fundamentalmente, a ‘...verificar se existem os requisitos legais justificativos da detenção, da prisão preventiva ou da substituição desta por outra medida e ainda a informar o arguido dos direitos que lhe assistem e dos factos imputados
(cfr. Maia Gonçalves, in 'CPP Anotado', Almedina, 9ª Edição, em anotação ao artº
141º do CPP). Manifestamente, como resulta das suas circunstanciadas respostas perante o JIC, o arguido foi devidamente informado dos factos imputados. Que lhe foram comunicados os direitos que lhe assistiam, resulta também perfeitamente claro do auto de fls. 32/34. E houve a clara e conseguida preocupação de verificar os requisitos legais justificativos da prisão preventiva. Por isso se nos afigura algo exagerada a abstracta pretensão de ver corporizado ao despacho aplicador da medida uma circunstanciada especificação factual, quando até, no concreto, o arguido nas suas declarações e no fundamental concordou com as imputações fácticas que lhe vinham feitas e reconheceu haver praticado os respectivos crimes.' Assim, o enquadramento da decisão, no contexto fáctico e jurídico em que se insere, afasta a interpretação radical que lhe foi atribuída – e, como tal, só pode concluir-se pela não aplicação das normas sindicandas com o sentido que se lhes imputa, obstaculizando ao conhecimento do objecto do recurso.
6. - Em face do exposto, decide-se, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, não tomar conhecimento do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 unidades de conta.'
2.2. - Na sua reclamação, defende o interessado, em síntese, que a decisão sumária terá repousado sobre passagem do acórdão recorrido que representa mero obter dictum, sendo outra a razão que determinou esse aresto, qual seja o entendimento segundo o qual, para cumprir minimamente o artigo 194º
'bastará que o despacho aplicador da medida de coacção enuncie o tipo de crime imputado, como aqui se fez'.
Nessa perspectiva, o arguido terá, assim, ficado impedido de questionar a qualificação jurídica dos factos que nortearam a decisão inicial, implicando a expressão genérica utilizada o ónus indevido, para o reclamante, de 'procurar nos autos' exactamente aquilo que deveria ter sido expressamente referido e não o foi na decisão aplicativa da medida de coacção.
2.3. - Na sua resposta, o magistrado do Ministério Público considera que, na verdade, as instâncias procederam a uma descrição fáctica de forma suficientemente adequada à natureza dos factos imputados ao arguido, à respectiva qualificação jurídica e a uma análise circunstanciada dos restantes pressupostos de que depende a imposição legal da medida de prisão preventiva, sendo manifesto que a decisão proferida não se bastou com a simples exigência de indicação do tipo legal de crime imputado ao arguido.
As normas sindicandas não foram, assim, aplicadas com a decisão interpretativa que lhes é atribuída pelo arguido e, por outro lado, as considerações lavradas a respeito do nível de fundamentação utilizado assumem-se, face à anterior ponderação, como mero obter dictum.
Cumpre decidir.
3. - Reitera-se o que na decisão sumária reclamada se ponderou e escreveu, para concluir do mesmo modo.
É certo que no aresto recorrido se disse, a certo passo:
'A ‘enunciação dos motivos de facto da decisão’ a que se refere artº 194º do CPP não poderá ser a descrição circunstanciada dos factos criminosos. Na verdade, a ser assim, colocar-se-ia irremediavelmente em causa o segredo de justiça que domina o processo penal na fase de inquérito – cfr. artº 86º do CPP
– e que obriga, como se sabe, todos os ‘participantes processuais’. Nestes termos, deve entender-se que, para cumprir minimamente o artº 194º do CPP e garantir que se corporiza um processo leal e plenamente respeitador dos direitos do arguido, bem como os direitos gerais e próprios de uma sociedade moderna, civilizada e democrática, bastará que o despacho aplicador da medida de coacção enuncie o tipo de crime imputado, como aqui se fez. Poderia, é certo, haver-se dito algo mais, sem colocar em causa o dito segredo de justiça. Mas a verdade é que em caso como este, onde existem indícios de uma associação dirigida à prática de crimes, um despacho circunstanciado a nível fáctico poderia comprometer – dada a sua natureza pública – a necessária investigação alargada dos factos, designadamente em relação aos outros arguidos.'
Não obstante, não se pretenda conceder a este comentário mais valor do que ele realmente tem – configurando este trecho, sim, um verdadeiro obter dictum, servindo de introdução à parte substantiva e fundamentante da decisão, ou seja, àquela que se valorou na decisão sumária e que teve presente a suficiência da análise efectuada a respeito dos pressupostos da decretação da medida de prisão preventiva, à luz do auto em que se insere e na consideração dos processos emitidos na diligência do interrogatório do arguido.
Quando muito, uma eventual 'deficiência formal' do acto decisório, que a técnica remissiva não supriria, integraria simples irregularidade, sanada, pois que não impugnada no próprio acto, por força do disposto no nº 1 do artigo 123º do CPP.
4. - Em face do exposto, decide-se:
a) indeferir a presente reclamação;
b) consequentemente, confirmar a decisão sumária do não conhecimento do objecto do recurso;
c) condenar o reclamante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta.
Lisboa, 22 de Dezembro de 2000 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida