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Processo nº 1122/98
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. H..., C..., N..., CC..., CJ... e W... foram condenados, por acórdão do Tribunal de Competência Genérica de Macau, como autores de um crime de associação ou sociedade secreta, previsto e punido – quanto ao primeiro recorrente – pelos artigos 1º, alínea i), e 2º, nºs 1 e 3, da Lei nº 6/97/M, de
30 de Julho (Lei da Criminalidade Organizada), e – quanto aos restantes – pelos artigos 1º, alínea i), e 2º, nº 2, da referida Lei, e, em concurso efectivo, como autores de um crime de aceitação de apostas ilícitas, previsto e punido pelo artigo 3º da Lei nº 9/96/M, de 22 de Julho (Ilícitos penais relacionados com corridas de animais). Inconformados, recorreram para o Tribunal Superior de Justiça de Macau, que indeferiu o pedido de renovação da prova e rejeitou o recurso.
Do acórdão do Tribunal Superior de Justiça de Macau vêm agora os arguidos recorrer para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do nº
1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, invocando a inconstitucionalidade das normas conjugadas dos números 1 e 2 do artigo 1º e do artigo 2º da Lei 6/97/M, por violação dos artigos '18º, nº 2, e 29º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente os princípios da legalidade e da proporcionalidade', suscitada, quer na contestação escrita apresentada na 1º Instância, quer nas alegações de recurso para o Tribunal Superior de Justiça.
2. É a seguinte, em síntese, a argumentação dos recorrentes, nas alegações apresentadas neste Tribunal.
Antes de mais, o tipo legal de associação ou sociedade secreta 'não compreende uma determinada factualidade que permita a sua eficaz identificação, sendo ao mesmo tempo um preceito onde não cabe nada ou onde cabe tudo, consoante o ponto de observação em que nos coloquemos'. E isto porque o nº 1 do artigo 1º começa por definir a associação ou sociedade secreta como organização, mas vem no nº 2 proceder à 'eliminação dos elementos essenciais integradores do tipo de ilícito', retirando assim 'todo o sentido ao tipo legal' e conferindo-lhe destarte 'uma amplitude inadmissível'. Daí a alegada violação do princípio da legalidade, na sua vertente de tipicidade.
'Para lá das diferenças de configuração e de regime das associações nos vários sectores do direito, parece óbvio que só pode falar-se em associação ou em organização de tipo associativo quando se verifique esse denominador conceptual comum, em que entram um conjunto de pessoas, um acordo ou feixe de acordos de vontades entre eles, a criação de laços duradouros entre elas e a formação de uma estrutura relativamente autónoma que se lhes sobrepõe'. E, citando um parecer de JORGE MIRANDA junto aos autos, a fls. 386, acrescentam, a propósito da desnecessidade legal de que 'os membros se conheçam entre si e se reunam periodicamente' ou que 'tenham comando, direcção ou hierarquia organizada que lhes dê unidade e impulso' (alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 1º):
'afastam-se ou permite-se afastar todos os factores associativos para tudo poder vir a assentar, afinal, só num resultado (equivalente, como se viu, a mera comparticipação criminosa)'. No mesmo sentido, invocam a doutrina de FIGUEIREDO DIAS ('As 'associações criminosas' no Código Penal de 1982', Coimbra, 1988, pág. 32), segundo o qual
'não basta à existência de uma 'associação', por menos estruturada que ela possa ser, o mero acordo ou a decisão conjunta de uma pluralidade de pessoas com vista
à prática de crimes – sob pena de irremediável confusão entre o tipo de associações criminosas e a figura da co-autoria'. Assim, mais uma vez citando JORGE MIRANDA, entende-se que 'mais do que um tipo aberto, está aqui um não tipo, em que se diluem todas as garantias'.
Para os recorrentes, as normas legais em análise violam ainda o princípio da proporcionalidade (art. 18º da Constituição), porque geram 'uma desproporção entre os factos recortados no nº 2 do artigo 1º e a punição prevista no artigo 2º', não sendo conformes com uma ' justa ponderação de fins e interesses', e não habilitando a 'uma justa medida de sanções'.
Por último, partindo da afirmação de GERMANO MARQUES DA SILVA, em parecer junto aos autos, a fls. 364, segundo a qual, no domínio do Direito Penal
'a associação constitui uma organização duradoura de várias pessoas para realizarem em conjunto um conjunto de actividades criminosas, em nome próprio e com autonomia relativamente aos sócios', sustentam 'que devem as normas em questão da Lei nº 6/97/M ser consideradas absolutamente inconstitucionais ou, ao menos, julgadas inconstitucionais na interpretação que lhes deu a decisão recorrida, na medida em que esta retirou da mera prática do crime de aceitação de apostas ilícitas o efeito automático do enquadramento da acção dos arguidos no tipo legal de associação ou sociedade secreta, quando uma interpretação conforme à Constituição exige e impõe como elemento delimitador deste tipo legal
(como o de qualquer tipo legal de associação criminosa do ordenamento jurídico de Macau) a necessidade da existência de uma organização com o sentido que lhe confere o Prof. Doutor Germano Marques da Silva'.
Posteriormente às alegações, juntaram aos autos um outro parecer, a fls. 501, da autoria de JORGE MIRANDA e MIGUEL PEDROSA MACHADO.
3. Nas contra-alegações apresentadas neste Tribunal, o Ministério Público, após transcrever o corpo do nº 1 do artigo 1º da Lei 6/97/M, considerou
'Por sua vez, o nº 2 dispõe que não é necessário que essa organização tenha sede ou lugar determinado para reuniões; os membros se conheçam entre si e se reunam periodicamente; tenha comando, direcção ou hierarquia organizada que lhe dê unidade e impulso; tenha convenção escrita reguladora da sua constituição ou actividade, ou de distribuição dos seus lucros ou encargos.
Os elementos negativos previstos neste nº 2 servem apenas – como reconhecem os recorrentes – para definir com mais rigor a noção de organização, face a possíveis hesitações do intérprete quanto ao grau e tipo de organização exigidos por lei.
Não se vislumbra, assim, contradição entre esse nº 2 e o nº 1, do artigo 1º do diploma. Consequentemente, não foi por aqui postergado o princípio da tipicidade.
É certo que é na rigorosa definição dos elementos do tipo que se concretiza o princípio em questão. Mas é sabido que a formulação dos diversos tipos de crime não obedece a um critério uniforme. Certas infracções reclamam uma descrição minuciosa dos factos. Outras devem ser descritas em termos sintéticos.
A estrutura das sociedades secretas não é eventualmente conhecida em termos rigorosos, quer pelo legislador, quer pelos próprios membros. O que delas se sabe, com toda a certeza, é que existem e que a sua actividade se concretiza normalmente na prática dos crimes elencados no nº 1 do artigo 1º.
Essencial, neste âmbito, é que os destinatários das normas possam saber o que é lícito e o que o não é. Ora, isso resulta com clareza da lei, não obstante alguma indeterminabilidade (justificada) de conceitos'. E, pelas razões indicadas na decisão recorrida, entende também não ocorrer qualquer violação do princípio da proporcionalidade.
4. Importa, antes do mais, proceder à delimitação do objecto do presente recurso. As disposições da Lei nº 6/97/M, de 30 de Julho (Lei da Criminalidade Organizada) que contêm as normas impugnadas são do seguinte teor: Artigo 1º
(Definição de associação ou sociedade secreta)
1. Para efeitos do disposto na presente lei, considera-se associação ou sociedade secreta toda a organização constituída para obter vantagens ou benefícios ilícitos cuja existência se manifeste por acordo ou convenção ou outros meios, nomeadamente pela prática, cumulativa ou não, dos seguintes crimes:
... i)Ilícitos relacionados com corridas de animais;
...
2. Para a existência da associação ou sociedade secreta referida no número anterior não é necessário que: a. Tenha sede ou lugar determinado para reuniões; b. Os membros se conheçam entre si e se reunam periodicamente; c. Tenha comando, direcção ou hierarquia organizada que lhe dê unidade e impulso; ou d. Tenha convenção escrita reguladora da sua constituição ou actividade, ou da distribuição dos seus lucros ou encargos. Artigo 2º
(Crime de associação ou sociedade secreta)
1. Quem promover ou fundar uma associação ou sociedade secreta é punido com pena de prisão de 5 a 12 anos.
2. Quem fizer parte de uma associação ou sociedade secreta ou a apoiar, nomeadamente:
...
é punido com pena de prisão de 5 a 12 anos.
3. Quem exercer funções de direcção ou chefia em qualquer grau em associação ou sociedade secreta, nomeadamente utilizando senhas, códigos, ou numerais característicos dessas funções, é punido com pena de prisão de 8 a 15 anos.
4...
5...
Note-se que a Lei nº 9/96/M, de 22 de Julho (Ilícitos penais relacionados com corridas de animais), prevê e pune com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, entre outros, o comportamento de 'quem sem estar devidamente autorizado, aceitar apostas sobre os resultados de corridas de animais' (nº 1 do artigo 3º) e o de 'quem, sem estar devidamente autorizado, aceitar apostas sobre os resultados de corridas de animais realizadas fora do Território' (nº 2 do artigo 3º).
Tendo presente o teor das disposições legais transcritas, há que identificar as proposições normativas efectivamente aplicadas na decisão recorrida.
Importa lembrar que, de acordo com a matéria de facto dada como provada na decisão da 1ª instância, e que o acórdão recorrido transcreve, o arguido H... decidiu dedicar-se à aceitação de apostas sobre corridas de cavalos que decorrem em Hong-Kong. Para o efeito, afectou um conjunto de bens móveis
(televisões, computadores, linhas telefónicas, gravadores, calculadoras, mobiliário, entre outros), que colocou num apartamento que tomou de arrendamento, e contratou os arguidos C..., N..., CC..., CJ... e W... para com ele trabalharem na aceitação das apostas. As tarefas de que cada um se encarregava estavam definidas, bem como a remuneração que recebiam.
Perante a factualidade que se resume, na parte ora relevante, o Tribunal de Competência Genérica de Macau condenou – por acórdão confirmado pelo Tribunal Superior de Justiça de Macau – o primeiro arguido como autor de um crime de associação ou sociedade secreta, destinada à prática de crimes de aceitação de apostas ilícitas (previsto no número 1 do artigo 1º da Lei nº
6/97/M, por referência para a alínea i) do mesmo número e para o artigo 3º da Lei nº 9/96/M), por a ter fundado (nº 1 do artigo 2º da mesma Lei) e nela exercido funções de direcção ou chefia (nº 3 do artigo 2º da mesma Lei), na pena de 8 anos e 6 meses de prisão (em cúmulo jurídico com a pena de 7 meses de prisão, correspondente ao crime de aceitação de apostas ilícitas).
Os restantes arguidos foram também condenados – tendo a respectiva condenação sido confirmada pelo Tribunal Superior de Justiça de Macau – como autores de um crime de associação ou sociedade secreta, destinada à prática de crimes de aceitação de apostas ilícitas, por dela terem feito parte (nº 2 do artigo 2º da Lei nº 6/97/M), na pena de 5 anos e 6 meses de prisão (em cúmulo com a pena de 7 meses de prisão, correspondente ao crime de aceitação de apostas ilícitas).
De acordo com a jurisprudência constante deste Tribunal, são objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82 as normas cuja inconstitucionalidada tenha sido suscitada durante o processo, desde que tenham sido efectivamente aplicadas pela decisão recorrida. Quando das disposições legais em causa se extraem, ou podem extrair, diferentes proposições normativas, ou diferentes interpretações, devem ser tomadas como objecto da verificação de constitucionalidade as normas legais aplicadas, de acordo com o sentido normativo decisivamente aceite e aplicado pelo tribunal recorrido. Daqui decorre que não podem sindicar-se dimensões normativas que, embora tendo sido objecto de tomada de posição pelo tribunal a quo, não hajam sido efectivamente relevantes para a decisão.
Não constitui, assim, objecto deste recurso a constitucionalidade dos artigos 1º (que descreve os comportamentos qualificáveis como integrando o crime de associação ou sociedade secreta) e 2º (que procede à fixação das penas aplicáveis, de acordo com a modalidade de acção em causa) da Lei 6/97/M, globalmente considerados. Apreciar-se-á, tão somente, a compatibilidade constitucional do número 1 do artigo 1º e da sua alínea i) e dos números 1, 2 e
3 do artigo 2º, na parte em que qualificam como associação ou sociedade secreta
– à qual cabe pena de prisão de 8 a 15 anos, se o agente nela exerce funções de chefia, ou de 5 a 12 anos, se o agente dela faz parte – a organização constituída para obter benefícios, mediante a prática de crimes de aceitação de apostas ilícitas.
5. Confrontado com a afirmação dos arguidos de que a matéria de facto dada como provada não preenchia o tipo legal do crime de associação ou sociedade secreta, o Tribunal Superior de Justiça de Macau, depois de se referir
à doutrina portuguesa sobre associações criminosas, e de tecer algumas considerações genéricas sobre o crime de associação ou sociedade secreta da Lei nº 6/97/M, entendeu 'ser incensurável a subsunção encontrada por estar suficiente e claramente comprovada a existência de ‘associação secreta’ dos artigos 1º e 2º da Lei nº 6/97/M, que não uma mera co-autoria, e demonstrado também o crime de colocação de apostas'.
E, pronunciando-se sobre as questões de constitucionalidade suscitadas (violação dos princípios da legalidade e da tipicidade), o Tribunal Superior de Justiça de Macau começou por transcrever o seu Acórdão de 27 de Julho de 1998 (Rec. nº 882), onde afirmara: 'A quarta questão avançada pretende ver violados os pricípios da legalidade e da tipicidade por banda dos artºs 2º da Lei nº 1/87/M e 1º da Lei nº 6/97/M, na medida em teriam deixado imprecisas as condutas susceptíveis de integrar o crime de associação criminosa.
Mais uma vez não vemos que seja de dar crédito a tais violações.
(…)
Este princípio de legalidade tem obviamente como corolário o princípio da tipicidade, de harmonia com o qual, cabendo à lei e só a ela dizer o que é crime, será através da técnica dos modelos ou tipos que se vai fazer a consagração das condutas criminalmente proibidas.
(…)
Ora se desenham modelos muito circunstanciados, em que todos os elementos do tipo (objectivos ou descritivos; subjectivos; normativos; etc.) ficam perfeitamente definidos, ora se opta por tipos demasiado abertos (que podem ir até à utilização das chamadas leis penais em branco), ora se prefere a técnica da casuística exemplificativa ou exemplos/padrão, ou ainda outras intermédias, comungando porventura de características comuns às técnicas mais utilizadas.
Foi o que aconteceu com o legislador das leis 1/78/M e 6/97/M ao modelar o tipo correspondente à associação criminosa, que caracterizou como a organização constituída para cometer crimes ou obter vantagens ou benefícios ilícitos cuja existência se manifeste por acordo ou convenção ou outros meios, nomeadamente pela prática, cumulativa ou não de determinados crimes que enumera.
Há aqui, pois, uma mistura de tipos diferentes, que acaba por ir até
à modalidade da casuística exemplificativa, mas onde sempre impera o respeito pelo princípio da legalidade (só à lei cabe definir o que é crime) e também pelo princípio da tipicidade (a lei penal não modelou o tipo de forma tão indeterminada que neutralize a garantia de segurança que advém dessa técnica).
Donde não se vislumbrar na técnica adoptada qualquer desrespeito dos invocados princípios'. Continuando, disse o Tribunal agora recorrido:
'(…) a norma incriminadora da Lei nº 6/97 não é tão aberta que a torne em branco, mas antes permite que o 'homo medius' se aperceba perfeitamente das fronteiras do crime de associação secreta, isto é, do 'Tatbestand' legal. A nova incriminação tem, é sim, uma maior amplitude e abrangência relativamente
à do Código Penal sendo diferentes as exigências de permanência e estabilidade. Daí que este crime autónomo – associação ou sociedade secreta – mais se aproxime do fenómeno da co-autoria, exigindo-se-lhe menos do que o artigo 288º do Código Penal quanto à estrutura organizativa (cfr. situação similar decidida nos Acórdãos do S.T.J. de 30 de Outubro de 1992 – Rec. nº 43 534 – e de 17 de Dezembro de 1992 – BMJ 422-152). Não há, por conseguinte, ofensa à certeza ou determinabilidade, caracterizadoras do princípio da tipicidade, ou da 'lege certa'. Ademais, ensina o Prof. Castanheira Neves, que 'a determinação ou indeterminação material do delito não se identifica com a determinação ou indeterminação da sua descrição formal – e naquela primeira, não nesta segunda, se deve ver, como já dissemos, o objecto essencial e decisivo do princípio da determinação jurídico-criminal' (apud 'O Princípio da legalidade criminal', in Estudos em homenagem ao prof. Doutor Eduardo Correia', 348'.
Quanto ao princípio da proporcionalidade, o Tribunal Superior de Justiça de Macau considerou não ser violado pela Lei nº 6/97/M, afirmando:
'Há adequação das penas às condutas previstas, sempre considerando a gravidade dos crimes e as patentes – mesmo a nível de recomendação internacional – necessidades de prevenção'.
6. Averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objecto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima. Nas palavras de JOSÉ DE SOUSA E BRITO, 'previsões legais vagas, ou de outro modo indeterminadas são um modo de desvirtuar a função de garantia da reserva de lei e do princípio da legalidade por inteiro' (A lei penal na Constituição, Estudos sobre a Constituição, 2º vol., Lisboa, 1978, pág. 244). 'Não é norma constitucionalmente válida aquela cujo teor se apaga numa cláusula geral que remeta o seu preenchimento para o arbítrio do julgador' (CAVALEIRO DE FERREIRA, Lições de Direito Penal, I, 4ª ed., 1992, pág. 55). As exigências de determinação são ainda condição de 'um direito criminal objectivo que adequadamente cumpra a repartição de competências entre a legislação e a jurisdição – imposta pelo princípio da separação dos poderes –, que actue como fundamento normativo das decisões jurídicas concretas – imposta, por sua vez, pelo princípio da vinculação jurídica das mesmas decisões – e ofereça a prática possibilidade de controle ainda dessas decisões – como impõe o princípio da objectividade jurídica ou da exclusão do arbítrio' (A. CASTANHEIRA NEVES, O princípio da legalidade criminal, in Digesta, vol. 1º, Coimbra, 1995, pág. 380).
'Uma tal função de controlo pressupõe, sobretudo, que a aplicação da lei resulte de um processo lógico ‘identificável’, dirigido à descoberta do sentido da lei
(isto é, à delimitação dos valores positivos e negativos que explicam a incriminação de um determinado comportamento' (MARIA FERNANDA PALMA, Direito Penal - parte geral, policop., AAFDL, Lisboa, 1994, em curso de publicação, pág.
62).
É evidente que uma total pré-determinação é impossível. Quer 'devido
à própria natureza da linguagem' (JOSÉ DE SOUSA E BRITO, ob. e loc. cit.), quer porque 'essa indeterminação é a expressão irredutível já da dimensão pragmática da linguagem jurídica, já da intenção normativa das prescrições jurídicas, já da
índole problemático-concreta do decisório juízo jurisdicional' (A. CASTANHEIRA NEVES, ob. cit., pág. 377).
Mas se uma 'absoluta determinação das prescrições das leis criminais não é possível (…), não se terá de concluir daí que o princípio da determinação criminal, enquanto corolário do princípio nullum crimen, careça de sentido' (A. CASTANHEIRA NEVES, ob. cit., pág. 380).
O que se pede à norma penal é, em síntese, que obedeça a um grau de determinação suficiente para não pôr em causa os fundamentos do princípio da legalidade, a que se fez referência.
7. Como deve então apreciar-se, a esta luz, a norma que constitui objecto do actual recurso de constitucionalidade?
Diga-se desde já que o número 1 do artigo 1º, e sua alínea i) e os números 1, 2 e 3 do artigo 2º da Lei nº 6/97/M, na parte em que qualificam como associação ou sociedade secreta – à qual cabe pena de prisão de 8 a 15 anos ou de 5 a 12 anos, consoante o agente exerça ou não funções de chefia ou de direcção – a organização constituída para obter benefícios, mediante a prática de crimes de aceitação de apostas ilícitas, norma efectivamente aplicada pelo Tribunal Superior de Justiça de Macau, não viola o princípio da tipicidade, já que os pressupostos da punição se encontram definidos na lei com suficiente precisão.
O eixo central no qual assenta a argumentação dos recorrentes é, como antes se indicou, a afirmação de que o artigo 1º da Lei nº 6/97/M começa por definir a associação ou sociedade secreta como associação, mas vem no nº 2 proceder à 'eliminação dos elementos essenciais integradores do tipo de ilícito', o que retiraria 'todo o sentido ao tipo legal' e lhe conferiria 'uma amplitude inadmissível'. Sucede que a imputação efectuada não colhe relativamente à norma efectivamente aplicada pelo Tribunal a quo. Na verdade, independentemente do modo como deva ser valorada, em si mesma, a argumentação dos recorrentes, ela parte de um pressuposto que se afigura incorrecto. Com efeito, resulta da matéria de facto dada como provada que os associados se conheciam e se reuniam periodicamente, num dado lugar, obedecendo a uma hierarquia organizada. Nestes termos, o Tribunal recorrido não aplicou, como ratio decidendi, a parte da norma que, na perspectiva dos recorrentes, se encontra na origem da violação da tipicidade: a determinação, pelo nº 2 do artigo 1º, da desnecessidade de que os membros se conheçam entre si e se reunam periodicamente ou que tenham comando, direcção ou hierarquia organizada que lhes dê unidade e impulso. Não se afigura legítimo, por conseguinte, afirmar que a norma legal, tal como aplicada na decisão recorrida, prescindiu da exigência de uma organização, dotada de alguma estabilidade, que constitui a base de qualquer crime associativo (sobre a exigência de uma organização, nos crimes de associação criminosa, cfr. BELEZA DOS SANTOS, O crime de associação de malfeitores
(interpretação do artigo 263º do Código Penal), Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 70º (1937), págs. 97-99 e 113-115; FIGUEIREDO DIAS/COSTA ANDRADE, Associações criminosas – Art. 287º do Código Penal, parecer, Colectânea de Jurisprudência, ano X (1985), IV, págs. 12-16; FIGUEIREDO DIAS, As
'associações criminosas' no Código Penal de 1982 (arts. 287º e 288º), Coimbra,
1988, págs. 31-38, CAVALEIRO DE FERREIRA, Lições de Direito Penal – Parte Geral, I, Lisboa, 1992, págs. 503-504; MARIO VALIANTE, L'associazione criminosa, Milão,
1997, págs. 13-15). Consequentemente, não procede a invocação de violação do princípio da tipicidade.
8. Podem ainda suscitar-se outras questões, de algum modo relacionadas com o princípio da tipicidade, mas cuja sede reside mais propriamente nos princípios da presunção de inocência e ne bis in idem, respectivamente. A primeira é a que se apreende a partir da afirmação de que a norma cuja constitucionalidade se discute retira 'da mera prática do crime de aceitação de apostas ilícitas o efeito automático do enquadramento da acção dos arguidos no tipo legal de associação ou sociedade secreta'. Tal efeito automático teria naturalmente de julgar-se contrário à Constituição, por violação do princípio da presunção de inocência. Mas, independentemente da apreciação que devam merecer as afirmações feitas no acórdão recorrido sobre a matéria – e que, em qualquer caso, estão longe de defender um efeito automático da prática dos crimes enumerados nas alíneas do nº 1 do artigo 1º relativamente ao preenchimento do tipo de associação ou sociedade secreta –, elas não constituem senão parte de uma descrição genérica dos artigos 1º e 2º da Lei nº 6/97/M, sem real ou efectiva projecção na decisão proferida. E são paralelas as considerações que se podem fazer quanto ao segundo problema. Na argumentação dos recorrentes, aflora-se a questão de saber se, ao retirar do conceito tradicional de associação criminosa o elemento organizativo, a norma impugnada não virá punir como associação secreta comportamentos que não se distinguem da mera comparticipação criminosa. Ora, importa ter presente que, se tal imputação fosse verdadeira, estaria aqui claramente em causa uma violação do princípio ne bis in idem, na sua projecção substantiva. Todavia, como já se concluiu anteriormente, a decisão não prescindiu do elemento organizativo previsto no nº 1 do artigo 1º, antes teve em conta a existência de uma estrutura organizada e permanente destinada à prática de crimes de aceitação de apostas ilícitas para considerar preenchido o tipo de associação o sociedade secreta. Recorde-se que, quanto a este ponto, o acórdão recorrido concluiu do seguinte modo: 'Perante o que fica dito, e analisando o elenco dos factos provados (…), verifica-se ser incensurável a subsunção encontrada por estar suficiente e claramente comprovada a existência de ‘associação secreta’ dos artigos 1º e 2º da Lei nº 6/97/M, que não uma mera co-autoria, e demonstrado também o crime de colocação de apostas'. Ficam, pois, liminarmente afastadas as dúvidas que poderiam surgir sobre uma eventual violação dos princípios da presunção de inocência e do ne bis in idem.
9. Importa, por último, apreciar a questão da invocada contrariedade ao princípio da proporcionalidade.
De acordo com a orientação geral aceite na jurisprudência deste Tribunal, cabe ao legislador uma ampla margem de discricionariedade legislativa na delimitação das condutas que devem ser criminalizadas ou descriminalizadas, bem como na cominação das respectivas penas. Tal margem de liberdade não prejudica, naturalmente, a consideração de limites impostos pelos princípios constitucionais, de entre os quais se salientam os que resultam do princípio da culpa, inerente à dignidade da pessoa, do princípio da necessidade ou da máxima restrição das penas, decorrente do regime das restrições aos direitos, liberdades e garantias, em que as penas criminais se traduzem (cfr. o artigo 18º da Constituição, apontado por FIGUEREDO DIAS como 'o preceito político-criminalmente mais relevante de todo o texto constitucional', em Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime, Lisboa, 1993, pág. 73), ou ainda do princípio da igualdade. Onde quer que se procure situar materialmente a aplicação do princípio da proporcionalidade à definição dos crimes e das penas (cf., quanto a esta questão, MARIA FERNANDA PALMA, ob. cit., pág. 69-71), é certo que as normas penais não são imunes a um juízo constitucional de proporcionalidade (fazem apelo a juízos de proporcionalidade em matéria penal, por exemplo, os acórdãos nº 370/94, 527/95, 958/96, 329/97 e 201/98 deste Tribunal). A ideia de proporcionalidade leva, entre outras consequências, a garantir, como se afirmou no Acórdão nº 527/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol.,
1995, pág. 25), 'uma adequada proporção entre as penas e os factos a que se aplicam'. Mas pressupõe-se, em todo o caso, a necessidade de intervenção penal. No mesmo Acórdão, pode ler-se que, pese embora tal ampla margem de liberdade do legislador sobre a necessidade de recurso aos meios penais, 'a criminalização de condutas deve restringir-se aos comportamentos que violem bens jurídicos essenciais à vida em comunidade, devendo a liberdade de conformação do legislador ser limitada sempre que a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva ou o legislador actue de forma voluntarista ou arbitrária, ou ainda as sanções se mostrem desproporcionadas ou desadequadas, isto é, não assegurem a 'justa medida dos meios (penais) e dos fins (das penas)', não se garantindo uma adequada proporção entre as sanções e os factos que elas se destinam a punir' (loc. cit., pág. 24).
10. A Lei nº 6/97/M (Lei da Criminalidade Organizada), sublinha o acórdão recorrido, 'destina-se a combater as associações criminosas típicas desta região
(‘Hac Sá Hui’ ou ‘Triad societies’) que, controlando a área negra do jogo, da agiotagem, da migração ilegal e da prostituição, afectam a estabilidade sócio-política do Território, com particulares e importantes reflexo na liberdade, segurança e tranquilidade públicas'. Tais organizações 'são estruturas muito sofisticadas que possuem grande eficácia, pois não só mobilizam meios tecnológicos de grande envergadura, como também dispõe de uma estrutura humana extensa, constituída na base de relações de grande fidelidade e coesão e têm, em geral, uma actividade violenta.(...) Estas organizações criminosas constituem, assim, uma ameaça especialmente qualificada da ordem jurídica, da estabilidade e da segurança da comunidade, colocando os cidadãos numa situação de medo constante dos crimes' (CARLA ADRIANA CARVALHO, Perspectivas do Direito, nº 4, 1997, ed. on line, II c).
É assim num contexto de luta contra um tipo de criminalidade organizada próprio da região, e que provoca não apenas a lesão de bens jurídicos essenciais à comunidade, a começar pela vida e pela integridade física, levando também à criação de um clima de medo e de intimidação, que as disposições da Lei 6/97M são editadas. E é tal contexto que leva porventura a que o legislador tenha sentido a necessidade de prever regras punitivas especialmente severas. Não se torna necessário nesta sede efectuar uma análise global do referido diploma legal, ou sequer do tipo penal de 'associação ou sociedade secreta', previsto nos seus artigos 1º e 2º. Que tais disposições podem colocar diversos problemas dogmáticos (como, por exemplo, o da identidade dos bens jurídicos tutelados, da natureza do crime e sua relação com o problema da antecipação da tutela penal, do âmbito ou extensão da incriminação, pelo que toca aos fins prosseguidos pelas associações secretas, ou da sua relação com o crime de associação criminosa previsto no 288º do Código Penal de Macau) afigura-se evidente. Para a resolução do problema de constitucionalidade suscitado, porém, é apenas a norma aplicada (e que não é senão uma das dimensões normativas que se podem extrair dos artigos 1º e 2º) que importa confrontar com o princípio da proporcionalidade. Recorde-se que a norma em causa é a que qualifica como associação ou sociedade secreta – à qual cabe pena de prisão de 8 a 15 anos ou de 5 a 12 anos, consoante o agente exerça ou não funções de chefia ou de direcção – a organização constituída para obter benefícios, mediante a prática de crimes de aceitação de apostas ilícitas.
11. Desde logo, nada na norma incriminadora pressupõe, para a sua aplicação, que a associação ou sociedade secreta corresponda uma das 'Triad Societies' (ou
'seitas') cuja punição, como antes se registou, terá estado na base da cominação de sanções criminais de elevada gravidade, e nada nessa norma exige sequer a presença de algumas das características próprias de tais organizações. Para além disso, importa registar que, enquanto o crime de aceitação de apostas ilícitas, previsto no artigo 3º da Lei nº 9/96/M (Ilícitos penais relacionados com corridas de animais), é punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, o crime de associação ou sociedade secreta para a prática de crimes de apostas ilícitas é punível com pena de prisão de 8 a 15 anos, se o agente exercer funções de chefia ou direcção, e com pena de 5 a 12 anos de prisão, se o agente fundar ou fizer parte da associação ou sociedade. Na verdade, o limite mínimo da pena prevista para o crime associativo é muito mais elevado do que o limite máximo fixado para a prática do crime de aceitação de apostas. Finalmente, há que ter presente que a pena aplicável (ou 'moldura penal') ao crime de associação ou sociedade secreta para a prática de crimes de aceitação de apostas ilícitas é a mesma que se encontra fixada para organizações destinadas à prática de homicídios e ofensas à integridade física, sequestro, rapto e tráfico internacional de pessoas, exploração de prostituição, lenocínio e lenocínio de menores, tráfico de armamento, entre outros crimes de acentuada gravidade (cf. as diferentes alíneas do nº 1 do artigo 1º), ou destinadas à prática de vários de entre os crimes elencados no artigo 1º. Esta equiparação só se explicará tendo em conta as especificidades do Território no que toca à necessidade de combate à criminalidade organizada e ao alarme social provocado pelas actividades incriminadas. Não pode, portanto, o Tribunal concluir com segurança pela violação do princípio da proporcionalidade.
Nestes termos, decide-se julgar improcedente o recurso. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. por cada recorrente. Lisboa, 10 de Março de 1999 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida