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Processo n.º 161/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta, provenientes do Tribunal de Relação de Évora, foi interposto por A., ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), recurso de acórdão proferido por aquela Relação a 15 de Setembro de 2009.
Pretende o recorrente que o Tribunal aprecie a constitucionalidade das normas constantes do nº 1 do artigo 66.º e do nº 9 do artigo 113.º do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que o prazo de aperfeiçoamento das conclusões apresentadas na motivação do recurso se conta a partir da data da notificação ao defensor [do despacho que manda aperfeiçoar as referidas conclusões], e não a partir da data da notificação ao arguido do defensor entretanto nomeado.
No entender do recorrente, tal “norma” ou “dimensão normativa”, aplicada pela decisão recorrida, é lesiva dos princípios decorrentes do nº 1 do artigo 20.º e do nº 1 do artigo 32.º da Constituição (respectivamente, acesso ao Direito e aos tribunais e direito ao recurso em processo criminal).
2. A 2 de Abril de 2003 foi A. condenado, pelo 2º Juízo do Criminal do Tribunal Judicial de Évora, pela prática de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º, nº 1, do Código Penal, na pena de quinze meses de prisão, com execução suspensa subordinada ao cumprimento de deveres.
Inconformado com tal decisão, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Évora.
Nesta instância, e verificando-se que o recurso apresentado era omisso quanto a conclusões, foi proferido despacho, convidando o arguido a suprir a deficiência.
Contudo, e em resposta a esse mesmo convite, veio A. a apresentar “conclusões” que, de acordo com o tribunal a quo, “constituíam a reprodução pura e simples da fundamentação vertida na minuta do recurso”. Por esse motivo, foi, por despacho, o recorrente novamente convidado a apresentar, no prazo de dez dias, novas conclusões, “redigidas sob a forma de proposições claras, precisas, concisas, onde condensasse os fundamentos expostos ao longo da motivação, sob pena de rejeição do recurso”.
Entretanto, por escusa, deferida pelo Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, do defensor oficioso do arguido, foi nomeado novo defensor. Por esse motivo, determinou o tribunal a quo que a referida nomeação fosse notificada tanto ao arguido quanto ao novo defensor, sendo este último notificado ainda do segundo despacho de aperfeiçoamento (que ordenava a apresentação, no prazo de dez dias, das novas conclusões do recurso, sob pena de rejeição do mesmo.)
Apresentadas as novas conclusões pelo [novo] defensor oficioso do arguido, decidiu o Tribunal da Relação, por acórdão datado de 31 de Janeiro de 2006, que, por ter sido ultrapassado o prazo de dez dias, eram as mesmas extemporâneas. Assim, e apenas subsistindo aquelas outras, já constantes dos autos, que, por serem “excessivamente extensas, prolixas, confusas e desconexas”, equivaliam à falta de conclusões, foi rejeitado o recurso interposto, nos termos dos artigos 414.º, nº 2 e 420.º, nº 1, do Código de Processo Penal.
3. Após incidentes processuais vários, que não cabe aqui relatar, recorreu novamente o arguido para o Tribunal da Relação de Évora, desta feita de despacho proferido no 2º juízo do Tribunal Judicial de Évora, despacho esse que indeferira requerimento em que, i.a., se considerava não ter o acórdão de 31 de Janeiro de 2006 transitado em julgado, por nulidade.
Em síntese, sustentou o arguido, nas alegações deste recurso:
(i) Que, nos termos do artigo 66.º, nº 1, do Código de Processo Penal, não podia, ele próprio, deixar de ter sido notificado da nomeação do novo defensor;
(ii) Que, tendo ocorrido tal notificação (a notificação ao arguido) cinco dias depois da notificação ao defensor, o prazo de dez dias, fixado para a apresentação das novas conclusões, deveria ser, nos termos do nº 9 do artigo 113.º do mesmo Código, contado a partir da notificação efectuada em último lugar;
(iii) Que interpretação diversa das normas constantes do nº 1 do artigo 66.º e do nº 9 do artigo 113.º do Código de Processo Penal lesaria os princípios decorrentes do nº 1 do artigo 20.º e do nº 1 do artigo 32.º da Constituição.
Por acórdão datado de 15 de Setembro de 2009 o Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao recurso.
Como já se viu, é desta decisão que é interposto o presente recurso de constitucionalidade.
4. Admitido o recurso no Tribunal, nele apresentaram alegações recorrente e recorrido.
Após ter feito um enquadramento fáctico da questão, sustentou o primeiro, em favor da tese da inconstitucionalidade, os seguintes argumentos essenciais: (i) que, nos termos do artigo 66º, nº 1 do CPP, se impõe que a nomeação do novo defensor seja também notificada ao arguido; (ii) assim é por exigências de uma devida organização da defesa deste último; (iii) pelo que, e ao contrário do que pretende a decisão recorrida, em situações como a dos autos, não deve considerar-se que, nos termos do artigo 113.º, nº 9 do mesmo Código, a lei processual “se contenta”com a notificação ao defensor; (iv) pelo que, havendo duas notificações obrigatórias, deve (nos termos do regime geral previsto no preceito indicado em último lugar) o prazo fixado para a prática do acto processual subsequente contar-se a partir da data da notificação efectuada em último lugar; (v) que interpretação contrária, como a que foi efectuada pela decisão recorrida, lesa os princípios decorrentes dos artigos 20.º, nº 1 e 32.º, n.º 1 da CRP.
Por seu turno, e enquanto recorrido, pugnou o Ministério Público pelo juízo de não inconstitucionalidade da “dimensão normativa” em causa, por se entender que, tratando-se, in casu, de notificar quanto à prática de um “acto processual eminentemente técnico e independente de qualquer ponderação pessoal do arguido”, não violava tal “dimensão normativa” nem as garantias de defesa dos arguido, incluindo o direito ao recurso, nem qualquer outro princípio constitucional pertinente.
II – Fundamentação
5. Sustenta o recorrente, como acabou de ver-se, que o tribunal a quo interpretou a “norma” constante das disposições conjugadas dos artigos 66.º, n.º 1 e 113.º, nº 9 do Código de Processo Penal em sentido contrário ao disposto nos artigos 20.º e 32.º, n.º 1, da Constituição.
É conhecida a jurisprudência do Tribunal quanto ao sentido a atribuir a estes preceitos constitucionais.
Como sempre se tem dito, neles se consagra, antes do mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos, que permita a cada uma das partes deduzir as suas razões (quer de facto, quer de direito), oferecer a suas provas e discretear sobre o valor e o resultado de umas e outras (artigo 20.º, n.º 1); e ainda o direito a ver reapreciadas, em instância superior, decisões proferidas pelos tribunais em processo criminal (artigo 32.º, n.º 1). À parte isso, e descontadas as especiais garantias de defesa que, por imposição constitucional, enformam o ordenamento processual penal, detém o legislador ordinário ampla margem de conformação na determinação das normas de processo. Com efeito, e como do mesmo modo se tem sempre sustentado, do princípio contido no nº 1 do artigo 20.º da CRP não decorre apenas uma posição jurídica subjectiva de índole análoga às dos demais direitos de defesa consagrados no Título II da Parte I da Constituição; do referido princípio decorre, ainda, uma posição subjectiva de índole prestacional, com o correlativo dever do Estado de pôr à disposição das pessoas instituições e procedimentos destinados a assegurar a efectividade da tutela jurisdicional. Ora, para levar a cabo esse mandamento constitucional de organização procedimental e institucional, não pode deixar de ter o legislador ordinário ampla margem de liberdade de conformação, desde logo na determinação, no quadro da CRP, das normas de processo.
Sustenta o recorrente que, no caso, terá sido ultrapassada essa margem de liberdade conformadora, por se ter interpretado a “dimensão normativa” em causa (repita-se: a resultante das disposições conjugadas do nº 1 do artigo 66.º e do nº 9 do artigo 113.º do CPP) de forma a contar-se o prazo para aperfeiçoamento do requerimento do recurso, em processo criminal, não a partir a partir da data da notificação ao arguido do defensor entretanto nomeado, mas tão somente a partir da data da notificação deste último. A ideia principal é a de que, com essa interpretação, ficará o arguido gravemente prejudicado na organização da sua defesa, pois que, desconhecendo a identidade da pessoa do seu defensor, não terá como a este se dirigir, assim se inviabilizando a necessária comunicação entre ambos, e, por conseguinte, a garantia do due processo of law inscrita quer no artigo 20.º quer no artigo 32.º da CRP.
Sucede, porém, que estando aqui em causa tão somente a resposta ao convite de aperfeiçoamento das conclusões do recurso – convite esse notificado ao defensor oficioso, entretanto nomeado –, em causa estará, também, o chamamento do mesmo defensor à prática de um acto processual de cariz eminentemente técnico, incapaz por isso de interferir, substancialmente, na organização da defesa do arguido. Não se vê, por isso, em que é que a impossibilidade de comunicação entre ambos (defensor e arguido), que a “dimensão normativa” aplicada pelo tribunal a quo terá eventualmente potenciado, possa lesar as garantias constitucionais inscritas nos preceitos atrás referidos. Para todos os efeitos, e tal como foi aplicada pela decisão de que se interpôs recurso, a “norma” do caso situa-se fora do âmbito de protecção que os artigos 20.º e 32.º da CRP dispensam, pelo que o regime que dela decorre se insere ainda na ampla margem de liberdade de que goza o legislador ordinário quando conforma as regras de processo.
III – Decisão
Nestes termos, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma que resulta da leitura conjugada do artigo 66.º, n.º 1 com o artigo 113.º, n.º 9, ambos do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de que o prazo para aperfeiçoamento do requerimento de recurso se conta a partir da notificação ao defensor (e não a partir da data da notificação ao arguido do defensor entretanto nomeado);
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso;
c) Condenar o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) UCs.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2011.- Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.