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Proc. nº 53/99
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. V. D., D. D., M. C. e M. D., na qualidade de expropriados no processo de expropriação por utilidade pública da parcela do prédio urbano sito na freguesia e concelho do Barreiro, descrito na Conservatória do Registo Predial do Barreiro sob o nº ...., a fls. .. do Livro B-10, no qual figura como expropriante a CP - Caminhos de Ferro Portugueses, E.P., interpuseram recurso, junto do Tribunal Judicial da Comarca do Barreiro, do acórdão arbitral, de 21 de Dezembro de 1995, que calculou o montante da indemnização devida com base no valor de 5.500$00/m2, perfazendo um total de 3.559.500$00.
O Tribunal Judicial da Comarca do Barreiro, por sentença de 30 de Dezembro de 1997, julgou o recurso parcialmente procedente, fixando em
4.151.400$00 o valor da indemnização a pagar pela entidade expropriante aos expropriados, com referência à data da declaração de utilidade pública (16 de Junho de 1995), devendo o mesmo ser actualizado no momento da decisão final
(transitada), de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor, excluindo a habitação (nos termos do artigo 23º do Código das Expropriações de
1991).
Os expropriados interpuseram recurso de apelação da sentença de 30 de Dezembro de 1997 para o Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando, no que interessa para o presente recurso, a inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 13º e 62º, nº 2, da Constituição, da norma contida no artigo 23º do Código das Expropriações, na parte em que prescreve uma actualização de acordo com a taxa de inflação.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 12 de Novembro de
1998, concedeu provimento parcial à apelação, fixando a indemnização devida no valor de 5.085.465$00. No restante, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida. Para tanto, considerou que os recorrentes pretendem, não uma actualização da indemnização, mas antes o pagamento de juros de mora. Porém, em virtude de se tratar de uma obrigação ainda ilíquida, considerou não haver mora
(nos termos do artigo 805º, nº 3, do Código Civil) e, consequentemente, não ter lugar o pagamento de juros. Por outro lado, entendeu também que a actualização da indemnização deve ser feita de modo a colocar o património do expropriado na situação em que se encontrava se não tivesse havido expropriação, o que apenas implica o pagamento de um montante correspondente ao valor do bem à data da decisão.
2. Os expropriados interpuseram recurso de constitucionalidade do acórdão de 12 de Novembro de 1998, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 23º do Código das Expropriações, na parte em que prescreve a actualização da indemnização de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor.
Os recorrentes apresentaram alegações, que concluíram do seguinte modo:
1º Ao recorrer à evolução do índice de preços no consumidor para actualizar o montante da indemnização por expropriação por utilidade pública, o art. 23º do Código das Expropriações viola os princípios constitucionais da igualdade e da justa indemnização, consagrados nos arts. 13º e 62º/2 da Constituição da República Portuguesa, pois trata injustificadamente de modo desigual os expropriados face a outros credores que vêem reconhecidos judicialmente os seus créditos;
2º A norma do art. 23º do Código das Expropriações, ao recorrer à evolução do índice de preços no consumidor para actualizar o montante da indemnização por expropriação por utilidade pública, viola o princípio da igualdade - art. 13º da CRP - pois beneficia injustificadamente as entidades expropriantes relativamente aos restantes devedores que são judicialmente condenados no pagamento de uma determinada quantia;
3º A garantia constitucional de que as indemnizações devidas por expropriação por utilidade pública têm de ser justas - art. 62º/2 da CRP - , e que, para o serem, têm de ser contemporâneas - art. 22º/2 do Código das Expropriações - , implica, para respeito dos arts. 62º/2 e 13º da CRP, que o montante indemnizatório atribuído judicialmente tenha de ser actualizado segundo o mesmo critério que se aplica a todos os cidadãos que vêm judicialmente reconhecido o direito a uma determinada indemnização, pelo que ao afastar-se deste entendimento o art. 23º/2 do Código das Expropriações, viola frontalmente as normas constitucionais referidas.
NESTES TERMOS Deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser declarada a inconstitucionalidade do art. 23º/2 do Código das Expropriações, na parte em que estabelece que a actualização do montante indemnizatório por expropriação por utilidade pública deve ser feita de acordo com a evolução do
índice de preços no consumidor, por violação dos arts. 13º e 62º/2 da Constituição da República Portuguesa.
Os recorrentes apresentaram ainda um parecer subscrito pelo Professor Doutor António Menezes Cordeiro, no sentido da inconstitucionalidade da norma impugnada. Nesse parecer, concluiu-se o seguinte:
10. A JUSTA INDEMNIZAÇÃO E O MOMENTO DO PAGAMENTO I. O artigo 62º/2 da Constituição só admite a expropriação por utilidade pública com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização. Trata-se, na jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional, dum direito de natureza análoga
à dos direitos fundamentais: está, pois, sujeito ao regime dos direitos, liberdades e garantias, resultante dos artigos 17º e 18º da Constituição. Vimos, acima, os diversos parâmetros que enformam a determinação da justa indemnização. Cumpre, agora, ir um pouco mais longe: à medida que se vão precisando os contornos dessa figura, outros aspectos sensíveis vão surgindo. II. O momento do cálculo da justa indemnização é relevante para a procurada justeza. Na verdade, os bens têm um valor que varia, em função do tempo. O expropriado será justamente indemnizado se recebe o valor correspondente ao bem no momento em que dele é privado: mas desde que o pagamento lhe seja efectuado nesse mesmo momento. Quando o pagamento seja protelado - o que sucede, com frequência, na hipótese de haver litígio, de composição sempre morosa - o expropriado vai sofrer dois tipos de danos:
- vai ver a 'sua' indemnização perder valor, em razão da depreciação da moeda;
- fica privado das potencialidades produtivas do seu bem e não dispõe, ainda, do sucedâneo em dinheiro. III. Este último aspecto recorda os Folgenschäden acima analisados. O dano pode ser um processo dinâmico, que não parará de se desenvolver enquanto não for confinado. Ora apenas o efectivo pagamento da indemnização o poderá fazer. Amputado do seu bem, o expropriado ficará dependente da 'justa indemnização' para obter o rendimento que aquele lhe propiciava. Mas esse rendimento depende do pagamento da indemnização. Enquanto este não ocorrer, o dano continuará a multiplicar-se, ao ritmo, precisamente, da falta de rendimento. IV. A conclusão é inevitável: a actualização em função dos índices de preços, prevista no artigo 23º/1 do Código das Expropriações permite, apenas, preservar o valor do capital, isto é: o valor (estático) correspondente ao bem expropriado. Ela não contempla a privação do rendimento que atinge o expropriado. Esse rendimento, que assiste à generalidade dos concidadãos inseridos nessa mesma posição, deverá ser computado, também, na justa indemnização. Sem isso ela não será justa.
11. AS EXIGÊNCIAS DA IGUALDADE I. Quando deduza uma pretensão contra o devedor - maxime por via judicial - o credor provoca o vencimento da obrigação. Por vezes, tal vencimento é, mesmo, exterior. Vencida a obrigação, há mora. O devedor torna-se responsável pelos prejuízos que cause ao credor - artigo 804º/1 - correspondendo a indemnização, nas obrigações pecuniárias, a juros legais - artigo 806º/2, ambos do Código Civil. O facto de a obrigação ser ilíquida não impede a mora, quando se trate de obrigação por acto lícito ou pelo risco - artigo 805º/3, do Código Civil. II. O devedor comum, desde o momento em que ocorra a citação judicial - artigo
805º/1, do Código Civil - vê, contra ele, correrem juros legais. Compreende-se a razão: visa-se compensá-lo pela privação da quantia em dívida, compelindo o credor ao pagamento. Paralelamente, o devedor terá interesse em cumprir. Na falta dos juros legais, o devedor poderia conservar consigo a quantia em dívida e fazer, com ela, as aplicações financeiras que entendesse. Pagaria, apenas, no termo dum processo de anos, facturando, à custa do credor, os créditos que obtivesse. III. O sistema jurídico no seu todo faz, pois, pelo menos a partir da introdução, em juízo, do processo, correr juros legais contra o devedor de importâncias pecuniárias. Assim se corrige a morosidade da justiça, distribuindo, pelas partes, os inerentes danos. O credor duma justa indemnização por expropriação, quando não lhe fosse reconhecida essa mesma posição, intrinsecamente justa, estaria a ser discriminado em relação à generalidade dos credores. Não há razões materiais para essa discriminação que, assim, colide com o artigo
13º da Constituição.
12. A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 23º DO CÓDIGO DAS EXPROPRIAÇÕES I. O artigo 23º do Código das Expropriações, a ser entendido como limitando a influência do tempo sobre a justa indemnização à actualização de acordo com os
índices de preços apresenta-se como inconstitucional. Por uma dupla razão:
- não computa o rendimento de que o expropriado é privado, enquanto não houver pagamento efectivo: a indemnização não seria integral e, logo, justa, violando-se o artigo 62º/2, da Constituição;
- discrimina o credor da indemnização em relação à generalidade dos credores: estes, desde a citação (pelo menos) têm o direito a juros legais; paralelamente, beneficia o devedor da indemnização expropriativa em relação à generalidade dos devedores. II. O artigo 23º do Código das Expropriações não pode ser interpretado como afastando o regime geral dos artigos 805º/1 e 806º/1 e 2 do Código Civil. Assim, quando não se entenda que ele é cumulável nos termos gerais, com esses preceitos
- solução que parece preferível - haveria que negar-lhe aplicação por inconstitucionalidade. Cair-se-ia, então, no regime geral daqueles preceitos.
Por seu turno, a entidade expropriante, ora recorrida, contra-alegaou, sustentando a conformidade à Constituição da norma questionada. Concluiu o seguinte: Por isso, e sem mais delongas, a recorrida CAMINHOS DE FERRO PORTUGUESES, E.P., entende que a disposição contida no nº l do art. 23º do Código das Expropriações, aprovado pelo Dec.-Lei 438/91, de 9-11 não só não viola qualquer dos princípios contidos nos artigos 13º - o da igualdade - e 62º nº 2 - o da justa indemnização - da Constituição da República Portuguesa, antes pelo contrário adoptou o sistema mais correcto e mais justo de actualização do montante da indemnização da expropriação, por, dessa forma, se impedir a aplicação de critérios para fins políticos ou outros.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
4. O artigo 23º do Código das Expropriações tem a seguinte redacção:
1. O montante da indemnização calcula-se com referência à data da declaração de utilidade pública, sendo actualizado à data da decisão final do processo de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor, com exclusão da habitação.
2. O índice referido no número anterior será o publicado pelo Instituto Nacional de Estatística relativamente ao local da situação dos bens ou da sua maior extensão.
Os recorrentes sustentam que a norma contida no nº 1 viola o princípio da igualdade, uma vez que impõe como factor de actualização da indemnização o índice de preços no consumidor (2,5%) ao passo que nas demais situações em que existe um direito indemnizatório o juro devido determina-se em função da taxa legal (10%). Por outro lado, afirmam também que tal norma viola o disposto no artigo 62º, nº 2, da Constituição, uma vez que a indemnização, se não for facultada aos expropriados na data da declaração de utilidade pública
(momento próximo daquele em que ocorreu a posse administrativa), terá de ser actualizada segundo a taxa de juro legal, sob pena de não poder ser considerada justa e contemporânea.
No parecer jurídico junto aos autos, sustenta-se que a indemnização por expropriação, para que possa ser considerada justa, tem de abranger naturalmente o valor real do bem, assim como os danos resultantes da privação do montante indemnizatório, que deverão ser computados de acordo com a taxa de juro legal. Caso assim não aconteça, o expropriado é discriminado em relação à generalidade dos credores.
Por seu turno, a recorrida sustenta que não existe uniformidade de taxas de juros, o que não implica a violação do princípio da igualdade, e que a taxa de inflação é um factor estável, que reflecte a cada momento a realidade.
5. O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 263/98, de 5 de Março, apreciou uma questão de constitucionalidade normativa substancialmente idêntica
à que agora é submetida a julgamento. Com efeito, nesse aresto apreciou-se a conformidade à Constituição da norma contida no artigo 100º, nº 1, do Código das Expropriações de 1976, nos termos da qual a indemnização fixada por sentença exarada num processo de expropriação litigiosa só vence juros após o termo do prazo de dez dias, subsequente à notificação a que se refere esse preceito, e não desde a data da sentença proferida em 1ª instância.
O Tribunal, na respectiva fundamentação, depois de resumir o entendimento dos então recorrentes (segundo o qual a obrigação por parte da entidade expropriante de pagamento de juros de mora após a prolação da sentença da primeira instância que fixou o montante da indemnização constitui um elemento indispensável para que lhes seja atribuída uma justa indemnização), afirmou que a perspectiva sustentada confunde quatro questões distintas conexionadas com a indemnização por expropriação: a da extensão da indemnização, do seu valor ou do seu quantum; a do modo como deve ser satisfeita a indemnização ou, se se preferir, a da forma ou formas do seu pagamento; a do momento a que se deve reportar o cálculo do montante da indemnização e, conexionada com ela, a da actualização do quantitativo indemnizatório à data da decisão final do processo; e, finalmente, a da constituição em mora da entidade expropriante se, notificada para depositar na Caixa Geral de Depósitos o valor da indemnização por decisão judicial transitada em julgado, não o fizer no prazo de dez dias, de harmonia com o disposto no artigo 100º, nº 1, do Código das Expropriações de 1976. De seguida, considerou o Tribunal que as três primeiras questões têm a ver com o regime da indemnização por expropriação, relacionando-se com o cálculo do seu montante e repercutindo-se directa ou indirectamente no valor da indemnização. Quanto à última questão, o Tribunal situou-a fora ou para além da problemática da justa indemnização por expropriação, uma vez que pressupõe uma anterior fixação do montante da indemnização. Consequentemente, o Tribunal Constitucional concluiu que o problema de constitucionalidade suscitado, porque relacionado com as consequências do incumprimento da obrigação de indemnizar, e não com o processo de fixação do respectivo montante, situa-se fora do núcleo do conceito constitucional de justa indemnização por expropriação, condensado no artigo 62º, nº 2, da Constituição. Não obstante a conclusão alcançada, o Tribunal procedeu a uma explicitação do conceito de justa indemnização. Assim, invocando o Acórdão nº 452/95, referiu que por ‘justa indemnização’, para efeitos de expropriação, deve entender-se , de acordo com a doutrina, uma indemnização total ou integral do sacrifício patrimonial infligido ao expropriado ou uma compensação plena da perda patrimonial suportada, que respeite o princípio da igualdade, na sua manifestação de igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, não apenas dos expropriados entre si, mas também destes com os não expropriados. Uma indemnização justa (na perspectiva do expropriado) será aquela que, repondo a observância do princípio da igualdade violado com a expropriação, compense plenamente o sacrifício especial suportado pelo expropriado, de tal modo que a perda patrimonial que lhe foi imposta seja equitativamente repartida entre todos os cidadãos. No entanto, e citando agora o Acórdão nº 131/88, sublinhou que a Constituição, embora estabelecendo que a indemnização há-de ser justa, não define um concreto critério indemnizatório, sendo contudo evidente que os critérios definidos por lei têm de respeitar os princípios materiais da Constituição (igualdade, proporcionalidade), não podendo conduzir a indemnizações irrisórias ou manifestamente desproporcionadas à perda do bem requisitado ou expropriado.
O Tribunal Constitucional, citando ainda o Acórdão 52/90, salientou que se deve entender que a justa indemnização há-de corresponder ao valor adeq
uado que permita ressarcir o expropriado da perda que a transferência do bem que lhe pertencia para outra esfera dominial lhe acarreta, devendo ter-se em atenção a necessidade de respeitar o princípio da equivalência de valores: nem a indemnização pode ser tão reduzida que o seu montante a torne irrisória ou meramente simbólica, nem, por outro lado, nela deve atender-se a quaisquer valores especulativos ou ficcionados, por forma a distorcer (positiva ou negativamente) a necessária proporção que deve existir entre as consequências da expropriação e a sua reparação.
Referindo-se posteriormente à actualização do quantum indemnizatório, o Tribunal Constitucional, no citado Acórdão nº 263/98, acentuou que deve ser concedida ao expropriado uma indemnização o mais actualizada possível, admitindo que o tribunal considere oficiosamente as taxas de inflação verificadas durante a pendência da causa, qualificadas como ‘facto notório’, com vista à correcção monetária do pedido indemnizatório (o Tribunal fez uma referência expressa à solução consagrada, em termos não inovatórios, no artigo
23º do Código das Expropriações de 1991).
Por outro lado, o Tribunal Constitucional, no aresto em referência, confrontou também a norma então em apreciação com o princípio da igualdade. Para esse efeito, e depois de verificar que à mora da entidade expropriante são aplicáveis os artigos 804º, 805º e 806º do Código Civil, sendo nessa medida necessário, para que haja mora, e tal como sucede na mora do devedor em direito civil, que a indemnização por expropriação seja certa, exigível e líquida, considerou o Tribunal que os artigos 62º, nº 2, e 13º, nº 1, da Constituição não impõem que ocorra a constituição em mora da entidade expropriante com a simples prolação da decisão da primeira instância.
Em consequência, o Tribunal Constitucional concluiu que a norma apreciada não viola os artigos 62º, nº 2, e 13º, nº 1, da Constituição, nem qualquer outra norma ou princípio constitucional.
6. No presente recurso de constitucionalidade, o Tribunal Constitucional seguirá, no essencial, o entendimento expresso no Acórdão nº
263/98.
Os recorrentes sustentam que a norma impugnada, ao impedir o ressarcimento dos danos subsequentes, viola o disposto no artigo 62º, nº 2, da Constituição (exigência de justa indemnização). Tais danos resultariam, no caso, da circunstância de haver um período no qual os expropriados já não possuem o bem (alegadamente, desde o momento da declaração de utilidade pública), não dispondo porém, e concomitantemente, do montante correspondente à indemnização.
Ora, importa frisar que a utilidade pública e o carácter de urgência da expropriação dos terrenos em questão foram declarados por despacho de 16 de Junho de 1995 do Secretário de Estado dos Transportes (D.R. nº 147, II série, 2º suplemento, de 28 de Junho de 1995), tendo a posse administrativa ocorrido em 19 de Agosto de 1995 (cf. auto de posse administrativa de fls. 34 e ss e 73 e ss).
Por outro lado, cumpre também salientar que a investidura administrativa na posse dos bens a expropriar só se efectiva depois de depósito bancário, realizado nos termos do artigo 19º, nº 1, alínea a), do Código das Expropriações de 1991, e que, no caso de recurso, o juiz atribuirá aos interessados o montante sobre o qual se verifique acordo, nos termos do artigo
51º, nº 3, do mesmo Código das Expropriações.
No caso dos autos, o depósito foi realizado (cf. guia de depósito de fls 7 e 85), o respectivo montante foi requerido pelos interessados (cf. fls 108 e 174) e, por último, a entrega do valor foi autorizada (cf. despacho de fls
175). Se existiu algum desfasamento entre o momento da posse administrativa e a entrega da indemnização, tal ficou a dever-se, não ao critério normativo constante do preceito impugnado, mas antes a uma concreta actuação do tribunal, que não tem, nessa medida, a virtualidade de influenciar o juízo de constitucionalidade incidente sobre a norma em apreciação.
No quadro normativo referido (o qual é complementado, no que respeita aos critérios de determinação da indemnização, pelo disposto nos artigos 24º e ss do Código das Expropriações de 1991), a regra contida no nº 2 do artigo 62º da Constituição apenas impõe que a indemnização, calculada com referência à data da declaração de utilidade pública, seja actualizada (no momento da decisão final) de modo a colocar o património do expropriado na situação em que se encontraria caso não tivesse ocorrido a expropriação. Assim, o critério de actualização apenas terá que permitir, como decorrência da norma constitucional, a anulação da depreciação do valor do bem expropriado inerente ao decurso do tempo. A evolução do índice de preços no consumidor possibilita a efectiva actualização da indemnização decorrente da expropriação, uma vez que reflecte de modo tendencialmente exacto as alterações do valor dos bens no mercado. Consubstancia, desse modo, um critério razoável, adequado, proporcional e justo de actualização da indemnização expropriativa (note-se que, pelo menos em abstracto, são configuráveis variações das taxas no sentido de uma maior ou menor aproximação da taxa de inflação à taxa de juro legal, pelo que, no limite, a actualização de acordo com aquela taxa pode até facultar um valor superior ao que resultaria da actualização de acordo com a taxa legal de juros).
Nessa medida, a norma em apreciação, ao determinar a actualização da indemnização por expropriação de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor, não viola o disposto no artigo 62º, nº 2, da Constituição. Na verdade, tal norma concretiza antes uma ideia de justiça efectiva na compensação do particular pelo acto expropriativo.
7. Os recorrentes sustentam, por outro lado, que a norma contida no artigo 23º do Código das Expropriações é ainda inconstitucional, por violação agora do artigo 13º, nº 1, em articulação com o artigo 62º, nº 2, ambos da Constituição. Fundamentam tal entendimento na circunstância de um qualquer credor que veja reconhecido o seu crédito ter direito ao pagamento de juros de mora fixados de acordo com a taxa legal, o que não acontece com os expropriados, que vêem a indemnização actualizada somente de acordo com a evolução do índice dos preços no consumidor.
A argumentação dos recorrentes assenta numa confusão entre a actualização da indemnização e as consequências do cumprimento tardio da obrigação. Não obstante, e decisivamente, importa reter o seguinte.
O artigo 804º, nºs 1 e 2, do Código Civil, estabelece que o devedor se considera constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido, o que constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor. A mora traduz-se assim num atraso ilícito no incumprimento, ou seja, num retardamento já objecto de valoração negativa (cf. António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, Vol. II, 1980, p. 446).
Nos termos do artigo 806º, nºs 1 e 2, do Código Civil, a indemnização corresponde aos juros legais, que serão devidos, naturalmente, apenas a contar do dia da constituição em mora. O momento da constituição em mora é fixado de acordo com o artigo 805º do mesmo diploma, que, no nº 3, estabelece que, se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor. O mesmo preceito estabelece ainda que se se tratar de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte da referida disposição legal. A liquidez da prestação consubstancia assim, em regra, um pressuposto da mora, uma vez que, e desde logo, não seria exequível a prestação ilíquida (cf. António Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 445).
O Tribunal Constitucional, no citado Acórdão nº 263/98, afirmou, referindo-se ao artigo 805º, nº 3, do Código Civil, que aquele preceito da lei civil sempre foi unanimemente entendido na doutrina e jurisprudência como significando que só existe mora depois de fixado, em definitivo, pelo tribunal o quantitativo da indemnização, pelo que enquanto durar a acção, não há liquidação da dívida, já que – embora o pedido formulado fosse eventualmente líquido – não o é a indemnização.
Em face dos elementos constantes dos presentes autos, e tomando em linha de conta o que se deixa dito, verifica-se que no decurso da acção
(desencadeada pelos expropriados, sublinhe-se) a prestação ainda não está determinada, ou seja, não é líquida. Com efeito, o que se discute no processo é precisamente o montante indemnizatório devido por força do acto expropriativo, o que impede, naturalmente, a fixação definitiva do valor em causa.
Por outro lado, trata-se de uma indemnização devida em virtude de uma expropriação por utilidade pública (figura, desde logo, com assento constitucional – artigo 62º, nº 2, da Constituição), não tendo aplicação, desse modo, o segmento normativo do artigo 805º, nº 3, do Código Civil, que consagra a existência de mora nos casos de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco.
Nessa medida, a situação dos expropriados, no que respeita ao reconhecimento de um direito ao pagamento de juros legais, equipara-se à de um qualquer credor. Na verdade, enquanto a prestação objecto de uma obrigação emergente de responsabilidade por acto lícito não for líquida, não existirá mora, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor (o que no presente caso, manifestamente, não acontece). É o que preceitua o artigo 805º, nº 3, do Código Civil.
Não existe, pois, qualquer discriminação dos expropriados em relação
às situações nas quais um credor vê reconhecido o seu crédito: de acordo com o regime geral a que se fez referência, enquanto o crédito não for líquido, não se contam juros moratórios, tal como acontece com a indemnização devida aos expropriados. Verifica-se antes, e ao contrário do que pretendem os recorrentes, uma efectiva equiparação entre as duas categorias de situações.
Isso mesmo concluiu já o Tribunal Constitucional, no citado Acórdão nº 263/98, onde se afirmou que a interpretação então dada ao artigo 100º do Código das Expropriações de 1976 (nos termos da qual só haverá lugar à contagem de juros moratórios depois da prolação da decisão final e não desde o momento da sentença da primeira instância) não traduz a fixação de um qualquer regime excepcional em desfavor do expropriado, uma vez que, tal como qualquer outro credor, ele só vê o seu devedor constituir-se em mora quando se tornar certo e líquido, por decisão judicial definitiva, o montante indemnizatório em litígio. Deve, assim, concluir-se que o artigo 23º do Código das Expropriações de 1991 não viola o disposto nos artigo 13º, nº 1, e 62º, nº 2, da Constituição.
8. Improcedem, deste modo, os argumentos apresentados pelos recorrentes.
III Decisão
9. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 23º, nº 1, do Código das Expropriações, enquanto determina a actualização da indemnização devida pela expropriação de acordo com a evolução do índice dos preços no consumidor, negando provimento ao recurso e confirmando, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes ,fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 11 de Janeiro de 2000 Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida