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Proc. n.º 482/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. S – Sociedade Financeira de Locação, S.A. requereu, junto do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, providência cautelar de entrega judicial de equipamento de climatização e informático contra C – Gabinete de Gestão, Lda., ao abrigo do disposto no artigo 21º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho.
2. A providência cautelar requerida foi decretada por decisão de 8 de Julho de 1998 (fls. 57 a 60), tendo da decisão respectiva agravado a requerida para o Tribunal da Relação de Lisboa. Nas alegações (fls. 1 a 5) concluiu, para o que aqui releva, do seguinte modo:
'[...]
12 – O D-L 149/95, no seu artº 21º é organicamente inconstitucional.
13 – Tal D-L foi aprovado apenas pelo Governo, sem autorização legislativa da Assembleia da República.
14 – A criação de providências cautelares é da matéria reservada da Assembleia da República nos termos do art. 165º q) da C.R.P.
15 – pelo que tal disposição não podia ser aplicada pelo tribunal. O douto despacho agravado violou o artº 204º da C.R.P. Ainda e caso assim não se entenda
12 – A norma do artº 21º do D-L 149/95 viola materialmente a Constituição Portuguesa.
13 – prevê a desigualdade dos cidadãos perante a lei, restringe direitos e garantias dos cidadãos, designadamente privilegiando as sociedades de locação financeira em manifesto detrimento dos requeridos que se vêem privados dos seus direitos fundamentais de igualdade perante a justiça.
14 – Não possui a referida norma carácter geral e abstracto.
15 – Tal providência possui carácter e efeitos definitivos, não se tratando de uma verdadeira providência cautelar.
16 – A mesma viola as disposições constitucionais dos artºs 13º n.º 1 e n.º 2,
18º n.º 2 e n.º 3 da C.R.P., sendo portanto ferida de inconstitucionalidade material. Ao aplicar tal norma o despacho agravado violou o art. 204º da C.R.P.
[...].'
Nas contra-alegações (fls. 8 a 35), a agravada e requerente da providência sustentou a total improcedência do recurso, concluindo assim:
'[...]
12. O artigo 21º do Dec.-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, no que se refere à organização e competência dos Tribunais, não inova em relação ao direito já instituído no Código de Processo Civil, pelo que, não se verifica qualquer intromissão do Governo na esfera da reserva legislativa da Assembleia da República.
[...]
18. No caso ora em apreço, o Governo não definiu nem doseou qualquer matéria de organização ou competência dos Tribunais.
19. Limitou-se a interferir na área da locação financeira, definindo as posições de locadora e locatário no final do contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra e sem que tenha o locatário procedido à restituição do bem ao locador.
20. Definidas essas posições ao longo de todo o diploma legal ora em análise, prevendo-se a situação de se verificar a resolução do contrato e a não restituição do bem, o legislador recorreu, e bem, a uma certa forma de processo para a resolução do litígio e que, consequentemente, implica que tal resolução seja confiada à instância decisória que a lei «geral» definidora dessa forma de processo especificamente institui, em primeira linha, para ela.
21. O princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionaridade legislativa, não veda à lei a realização de distinções.
22. Proíbe-lhes, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdade de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional.
23. No presente caso, não se verifica qualquer desigualdade de tratamento materialmente infundada.
24. Não se infringindo qualquer norma ou princípio constitucional com a aplicação das referidas normas.
[...].'
3. Por acórdão de 4 de Maio de 2000 (fls. 101 a 107), o Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente o agravo, confirmando a decisão recorrida. No texto do acórdão, e quanto às questões de constitucionalidade suscitadas, pode ler-se o seguinte:
'[...]
2. Da inconstitucionalidade orgânica do artigo 21º do DL 149/95. A Agravante vem invocar a inconstitucionalidade orgânica do artigo 21º do DL
149/95, uma vez que este diploma só foi aprovado pelo Governo sem autorização da Assembleia da República, sendo certo que a criação de providências cautelares é da exclusiva competência deste órgão, nos termos do artigo 165º, alínea q) da CRP. Em primeiro lugar refere-se que o DL 149/95 não contém em si, quaisquer disposições referentes às matérias a que aludem os artigos 164º, 167º e 168º da CRP, não havendo, assim, qualquer violação governamental sobre matérias da exclusiva competência da Assembleia da República, nem a invocada, nem qualquer outra. E, porque a matéria em causa não é da reserva de competência da Assembleia da República, o Governo podia, como pôde, sobre ela legislar, nos termos do artigo
201º, n.º 1, alínea a) da CRP.
3. Da inconstitucionalidade material do artigo 21º do DL 149/95. Alega, ainda, a Agravante que o citado artigo 21º, é ainda materialmente inconstitucional, uma vez que prevê a desigualdade dos cidadãos perante a Lei, não tem carácter geral e abstracto e a providência possui carácter e efeitos definitivos, não se tratando de uma verdadeira providência cautelar, violando os artigos 13º, n.º 1 e 2 e 18º, n.º 2 e 3 da CRP. O princípio da igualdade a que alude o artigo 13º da Constituição, na vertente jurisdicional, comporta três dimensões fundamentais, como nos referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa, 1º volume,
2ª edição, 1984, pág. 152 «a) igualdade de acesso dos cidadãos à jurisdição
(art. 20º-2); b) igualdade dos cidadãos perante os tribunais; c) igualdade da aplicação do direito aos cidadãos através dos tribunais [...]». Não se vê, em que é que o artigo 21º do DL 149/95 põe em causa estas dimensões constitucionais, posto que nenhum dos seus segmentos contém qualquer limitação ao direito de acesso e de defesa, nem tão pouco, a Agravante alega que a sua posição enquanto sujeito processual, tenha sido diminuída ou restringida, de molde a concluir-se pela violação do disposto nos artigos 13º e 18º da CRP. Nenhum dos direitos fundamentais da Agravante se mostra violado, sendo certo que, tratando-se o contrato de locação financeira um contrato de adesão, é óbvio que os particulares não podem, de uma maneira geral, discutir as cláusulas nele apostas, tendo-se de sujeitar ao seu conteúdo, mas, não estão os mesmos obrigados a contratar, o que vale por dizer que, se contratam, o têm de fazer pautados pelos princípios gerais da boa fé ainda pelo princípio do seu cumprimento pontual, o que implica a aceitação de todas as cláusulas, quer no seu aspecto positivo, quer no seu aspecto negativo. Por último, sempre se acrescenta, que o facto de a providência cautelar a que alude o normativo inserto no artigo 21º do DL 149/95, implicar a entrega do equipamento, essa entrega, ao invés do que alega a Agravante, não tem carácter definitivo, porque o direito acautelado (um direito de crédito) não se esgota com essa entrega.
[...].'
4. Inconformada com o referido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, C – Gabinete de Gestão, Lda. dele interpôs recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 109), nos termos dos artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, invocando que a aplicação da norma constante do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, violara os artigos 165º, n.º 1, alínea p), 13º, n.º s 1 e 2, 18º, n.º s
1, 2 e 3, e 204º da Constituição. O recurso foi admitido por despacho de fls. 111. Nas respectivas alegações (fls. 113 a 120), a recorrente formulou, em síntese, as seguintes conclusões:
'[...]
8 – [...] a criação de providências cautelares, por restritivas e limitativas dos direitos dos cidadãos obriga à existência de autorização legislativa ao Governo por parte da Assembleia da República nos termos do art. 165 n.º 1 al. b) da Constituição.
9 – A providência cautelar em causa, de entrega judicial e cancelamento de registo, criada pelo art. 21º do D-L 149/95 de 24 de Junho não teve autorização legislativa da Assembleia da República.
10 – A referida norma do art. 21º do D-L 149/95 de 24 de Junho sofre de inconstitucionalidade orgânica por violação do art. 165º n.º 1 al. b) da Constituição da República.
11 – O Tribunal ao ter aplicado tal norma violou o art. 204º da Constituição.
12 – O art. 21º do D-L n.º 149/95, de 24 de Junho, confere às sociedades de locação financeira, ao abrigo de uma «providência cautelar» o direito de exigirem judicialmente a entrega do bem locado e a faculdade de dele dispor livremente, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra e o locatário não ter procedido à restituição do bem (art. 21º n.º 6).
13 – A «providência cautelar» produz assim, quanto ao seu objecto, efeitos definitivos e não meramente cautelares, tendo por base uma prova meramente indiciária.
14 – Não sendo possível a reposição da situação anterior caso a providência seja julgada injustificada ou caducar.
15 – Revelando-se até, para o objectivo do requerente da providência, totalmente desnecessária a interposição da acção principal de que esta depende.
16 – Em virtude desta «providencia cautelar», que de cautelar nada tem, confere
às sociedades de locação financeira uma posição de vantagem e discrimina-as positivamente face aos demais entes jurídicos.
17 – Revelando-se, até para o objectivo do requerente da providência, totalmente desnecessária a interposição da acção principal de que esta depende.
18 – Prevê uma situação de privilégio e discriminação entre requerentes e requeridos, face a natureza jurídica das providências cautelares, criando assim uma desigualdade perante a lei.
19 – O Requerente mesmo perdendo na acção principal, ganha sempre pois através da «providência» já atingiu o seu objectivo definitivo.
20 – A situação processual e as consequências são manifestamente desiguais face
à natureza jurídica das providencias cautelares.
21 – Para tal impõe-se aos locatários, parte débil do contrato, uma onerosidade forçada e acrescida, sem tutela do princípio da igualdade.
22 – Discrimina os sujeitos processuais face ao conceito de prejuízo para ambos.
23 – ora, o legislador só pode impor encargos especiais a um grupo, para beneficiar outro grupo quando esse for o único meio ao seu dispor.
24 – As restrições da norma do art. 21º n.º 6 não têm uma justificação razoável e fundamento material bastante.
25 – Pelo que, tal norma legal contende frontalmente com o Princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, constitucionalmente consagrado e com os mais elementares princípios de justiça.
26 – sendo, como tal, ferida de inconstitucionalidade material por violação dos arts. 13º n.º 1 e n.º 2, 18º n.º 2 e n.º 3 da Constituição Portuguesa.
[...].'
5. Nas contra-alegações (fls. 122 a 155), a recorrida S – Sociedade Financeira de Locação, S.A. concluiu, em síntese, do seguinte modo:
'1. Foi proferida sentença, devidamente notificada e transitada em julgado, no
âmbito da acção da qual a providência cautelar dependia.
2. Qualquer que fosse o juízo de (in)constitucionalidade a proferir nos presentes Autos, ele não teria qualquer relevo sobre a situação concreta de que emerge o presente recurso. daí que não haja interesse jurídico relevante na apreciação e decisão da questão objecto do presente recurso, pois, a final, acabaria por não ter projecção determinante no julgado.
3. Deve o presente recurso ser julgado extinto por inutilidade superveniente.
4. A Recorrente, no que à alegada inconstitucionalidade orgânica concerne, deixou de fazer alusão ao preceito fundamental invocado nas fases anteriores do processo para de uma forma «ex novo» defender a inconstitucionalidade com fundamento no artigo 165º alínea b) da C.R.P.
5. O âmbito do recurso interposto ao abrigo do disposto no artigo 70º n.º 1 alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional é delimitado pelas questões invocadas no requerimento de interposição, não podendo os Recorrentes alargar o seu objecto nas alegações posteriormente produzidas.
6. Na situação sub judice não foi suscitada durante o processo a inconstitucionalidade da(s) norma(s) do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 149/95, de
24 de Junho por violação do disposto no artigo 165º alínea b) da C.R.P., pelo que não se deverá conhecer do recurso no que à alegada inconstitucionalidade concerne.
[...]
9. Os direitos que podem ser de alguma maneira afectados pelo artigo 21º ora em apreço, são os referentes ao artigo 10º n.º 2 do mesmo diploma legal e que são direitos que podem ser qualificados de pendor creditício (alínea e)) e de direitos reais menores (alíneas a) e e)).
10. Usar e fruir o bem locado é um direito do locatário que incide sobre o direito do locador, é um direito real menor que como tal, não é matéria integrada na reserva de competência legislativa da Assembleia da República.
11. Quanto à alegada restrição de direitos, a providência cautelar não os restringe, pois estes serão sempre atendidos na decisão final, daí que, ao invés de uma restrição de direitos do requerido, exista uma antecipação dos direitos do Requerente, que se justifica face ao ramo económico em questão.
12. Carece o presente recurso de qualquer fundamento atendível no que à alegada inconstitucionalidade orgânica do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho (alterado pelo Decreto-Lei n.º 265/97, de 2 de Outubro) por violação do artigo 165º alínea b) da C.R.P. concerne.
13. Não se verifica qualquer violação do princípio da igualdade pois «a proibição de discriminação não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento».
14. As situações de facto do locador e do locatário são diferentes. O locador fazendo da locação financeira o seu ramo económico está mais exposto a situações de incumprimento e não entrega de bens.
15. Tendo o Locador o direito de propriedade sobre o bem, e o Locatário apenas um direito real menor de uso e fruição do bem e um direito essencialmente creditício de aquisição no fim do contrato, faz todo o sentido que o seu direito de propriedade não possa ser posto em causa e deva ser protegido.
[...]
19. Estamos na presença de posições jurídicas diferentes que não podem ser tratadas de forma igual. Neste sentido «o princípio da igualdade não só autoriza como pode exigir desigualdades de tratamento, sempre que, por motivo de situações diversas, um tratamento igual conduzisse a resultados desiguais».
20. Houve por parte do legislador uma intenção clara e expressa de tutelar os interesses em presença, numa óptica de justiça redistributiva. Assim é que, no n.º 4 do artigo 21º ora em análise se dispõe que «o tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no n.º 1, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada».
21. Não nos poderemos esquecer do regime legal particularmente exigente que impende sobre as sociedades de locação financeira, enquanto instituições de crédito que são, submetidas à tutela do Banco de Portugal.
22. O presente recurso carece de qualquer fundamento atendível, razão pela qual não poderá deixar de se concluir pela não inconstitucionalidade das normas do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho (alterado pelo Decreto-Lei n.º 265/97, de 2 de Outubro).'
Com as contra-alegações foi junta uma certidão da 15ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, 3ª Secção, com nota de trânsito em julgado da sentença proferida em 14 de Setembro de 1999 no âmbito da acção principal da qual a providência cautelar em apreço dependia (fls. 156 a 161), bem como dois pareceres de um Professor Catedrático (fls. 162 a 167 e 168 a 177), um relativo à questão da inconstitucionalidade orgânica das normas contidas no artigo 21º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, e o outro relativo à questão da inconstitucionalidade material dessas mesmas normas.
6. Tendo em conta as questões prévias de não conhecimento do recurso suscitadas pela recorrida, foi ordenada, por despacho de fls. 180, a notificação da recorrente para responder, querendo, no prazo legal. Na resposta (fls. 181 a 183), a recorrente veio dizer, em síntese, que:
'[...]
É apenas no âmbito do processo de providência cautelar, com base no art. 21º do DL n.º 149/95, de 24 de Junho, que o problema da constitucionalidade se coloca, enquanto processo específico que produz efeitos definitivos sem a necessidade prática de recorrer a uma acção principal. De facto, com a decisão proferida no processo de providência cautelar os direitos da ora Recorrente foram violados ao serem comprimidos e abalados tendo por base um mero juízo de probabilidade.
[...]. O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado pela recorribilidade de decisões provisórias exactamente porque estas, muito embora não tenham um carácter definitivo, poderão provocar efeitos materiais na esfera de existência do lesado
[...] Ora, neste caso, mais do que isso, o que está em causa é o carácter definitivo que assume uma suposta mera providência cautelar, repercutindo-se de uma maneira duradoura na esfera da parte!!!
[...]. E, não se diga em abono da tese da recorrida que a sentença, de 14 de Setembro de 1999, na acção principal, veio decidir pela resolução do contrato e consequente devolução dos objectos locados pelo que «qualquer que fosse o juízo de (in)constitucionalidade a proferir nos presentes autos, ele não teria qualquer relevo sobre a situação concreta de que emerge o presente recurso». Efectivamente, «ao Tribunal Constitucional não compete resolver, directa ou indirectamente, o caso concreto; compete-lhe unicamente pronunciar-se sobre o problema da constitucionalidade ou legalidade, abstraindo dos resultados que tal pronúncia possa vir a causar ao nível do caso controvertido no tribunal a quo
[...]».
[...] Face à declaração de inconstitucionalidade da norma constante do art. 21º do DL N.º 149/95, de 24 de Junho, o efeito desaplicação conduzirá à nulidade da providência cautelar. A restituição dos bens efectivamente não poderá ser efectuada. No entanto, por esta via poderá a Recorrente pugnar pela reparação do prejuízo causado por uma decisão supostamente provisória, mas que pelos seus efeitos duradouros e definitivos suprimiu os seus direitos, com base em prova meramente indiciária. Os direitos da Recorrente foram já irremediavelmente lesados com a providência cautelar ora recorrida, já que desta resulta a perda irredutível e irrecuperável dos bens locados face ao nº 6 do art. 21º do DL nº 149/95. Nestes termos, o resultado da acção principal sempre foi, como alegado pela ora recorrente, o cumprimento de uma mera formalidade, sem qualquer efeito útil, e de todo indiferente para a Recorrente pois, independentemente do resultado, os bens locados já não poderiam ser recuperados, bem como igualmente para a recorrida pois esta, com a providência cautelar, já atingiu a plenitude dos seus objectivos, e de forma definitiva [...]. A providência cautelar tem, obviamente, que ser apreciada independentemente do resultado da acção da qual é dependência. A presente providência cautelar não transitou em julgado, e é a acção que verdadeira e unicamente lesa os direitos da Recorrente e, portanto, terá de ser considerada autonomamente da acção principal.
[...].
[...] [O] Tribunal Constitucional, em matéria de poderes de cognição, só pode julgar inconstitucional a norma que a decisão recorrida aplicou e sobre a qual haja sido requerida apreciação. Ora, in casu, a norma em questão é a constante do art. 21º do DL n.º 149/95, de 24 de Junho. Sendo que a Recorrente sucessivamente, durante as várias fases do processo, suscitou a questão da inconstitucionalidade. No entanto, o Tribunal poderá declarar a inconstitucionalidade de uma norma «com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada» (art. 79º-C, da Lei do Tribunal Constitucional).
[...].'
II
7. O artigo 21º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 265/97, de 2 de Outubro, dispunha o seguinte:
'Artigo 21º Providência cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo
1 – Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente e no cancelamento do respectivo registo de locação financeira, caso se trate de bem sujeito a registo.
2 – Com o requerimento, o locador oferecerá prova sumária dos requisitos previstos no número anterior.
3 – O tribunal ouvirá o requerido sempre que a audiência não puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.
4 – O tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no n.º 2, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada.
5 – A caução pode consistir em depósito bancário à ordem do tribunal ou em qualquer outro meio legalmente admissível.
6 – Decretada a providência e independentemente da interposição de recurso pelo locatário, o locador pode dispor do bem, nos termos previstos no artigo 7º.
7 – No caso previsto no número anterior, o locatário tem direito a ser indemnizado dos prejuízos que sofrer se, por decisão transitada em julgado, a providência vier a ser julgada injustificada pelo tribunal ou caducar.
8 – São subsidiariamente aplicáveis a esta providência as disposições gerais sobre providências cautelares, previstas no Código de Processo Civil, em tudo o que não estiver especialmente regulado no presente diploma.
9 – O disposto nos números anteriores não é aplicável aos contratos de locação financeira que tenham por objecto bens imóveis.' O artigo 21º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 265/97, de 2 de Outubro. Assim: foi modificada a redacção do n.º
4; foi eliminado o anterior nº 7; o anterior n.º 8 passou a constituir o n.º 7; o anterior n.º 9 foi alterado e passou a constituir o n.º 8. A providência que deu origem ao presente recurso foi decretada à luz da redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 265/97, de 2 de Outubro: é o que decorre da leitura do texto do acórdão recorrido, já que nele se faz referência ao teor do artigo
21º, n.º 8, na redacção anterior a esse diploma (cfr. fls. 104). Assim sendo, ter-se-á em conta, no presente recurso, a redacção primitiva do Decreto-Lei n.º
265/97, de 2 de Outubro (apesar de a recorrida, aparentemente, se ter alicerçado na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, já que os pareceres de fls. 162 e seguintes foram emitidos com base nesta redacção).
8. Nas contra-alegações apresentadas junto deste Tribunal, veio a recorrida suscitar duas questões prévias. A primeira relaciona-se com a falta de interesse processual na apreciação do presente recurso. A este propósito, sustenta a recorrida que, havendo já decisão condenatória transitada na acção principal, e relacionando-se a questão de inconstitucionalidade com uma norma aplicada num procedimento cautelar que daquela depende, o juízo que o Tribunal Constitucional viesse a proferir sobre o objecto do recurso não teria qualquer projecção determinante no julgado. A segunda relaciona-se com a circunstância de não ter sido suscitada durante o processo a inconstitucionalidade orgânica das normas do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, por violação do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 165º da Constituição, e ser esta a alínea que a recorrente invoca no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional. Analisar-se-á, de seguida, a primeira questão prévia levantada pela recorrida, atendendo a que a sua eventual procedência poderá determinar a inutilidade do conhecimento, quer da segunda questão prévia, quer naturalmente do próprio objecto do recurso.
9. O Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado que só deve conhecer do objecto de um recurso, mesmo que este seja obrigatório, se a decisão que a final vier a proferir puder ter qualquer relevo ou efeito útil sobre a situação concreta de que emerge o recurso. Assim, no acórdão n.º 208/86, de 12 de Junho (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7º volume, Tomo II, p. 991 ss), entendeu o Tribunal que não devia conhecer do recurso de uma decisão que indeferira in limine o requerimento inicial da execução no tocante ao pedido de juros à taxa de 23%, interposto pelo exequente ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, porque, à data da apreciação do recurso de constitucionalidade, já se encontrava extinta a execução, por despacho transitado. A razão pela qual a extinção da execução determinou a extinção do recurso de constitucionalidade encontra-se claramente explicada no texto do mencionado acórdão:
'[...] aceite pelo exequente, como foi, o pagamento feito por um dos executados e extinta a execução, a decisão do recurso – ainda que porventura num sentido favorável ao exequente e recorrente – não é susceptível de surtir na hipótese concreta qualquer efeito útil. Seria uma pura decisão académica, sem qualquer influência na definição do direito do caso, isto é, na solução do «litígio» que opôs as partes – posto que este já se encontra definitivamente resolvido em certos termos. [...] O recurso para o Tribunal Constitucional, embora restrito à
«questão da constitucionalidade», só relativamente se autonomiza do processo em que é interposto – é dizer, da «questão principal» (hoc sensu), substantiva ou processual, que ao tribunal a quo cumpre decidir [...]. A decisão, em recurso, da questão de constitucionalidade é sempre «instrumental», relativamente à decisão dessa outra questão. Extinto aquele processo – no caso, extinta a execução –, sempre, pois, se haverá de julgar extinto o recurso.'
Pois bem. Apesar de, no presente caso, não ter sido obviamente interposto recurso de decisão proferida em processo de execução, estar-se-á perante uma situação análoga à considerada pelo citado aresto, devendo, consequentemente, ser julgado extinto o recurso, por inutilidade superveniente? A resposta é, adiante-se já, afirmativa.
10.1. Refira-se, antes de mais, que a circunstância de a decisão impugnada ter carácter provisório não impediria, por si, o conhecimento do objecto do presente recurso. Como textualmente se diz no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 442/2000, de 25 de Outubro (Diário da República, II Série, n.º 280, de 5 de Dezembro de 2000, p. 19 592 ss), '[...] pode ser questionada a constitucionalidade de uma norma que defina os requisitos substanciais de concessão da providência cuja aplicação não tenha cabimento na acção principal'. Ora, as normas objecto do presente recurso apresentam tal característica, pelo que o carácter provisório da decisão que as aplicou não obstaria à sua apreciação.
10.2. Porém, e como é sabido, o trânsito em julgado da decisão de mérito proferida na acção principal determina – por força da própria relação de dependência entre o processo cautelar e o processo principal e do papel instrumental daquele em relação a este – a caducidade da providência decretada no procedimento cautelar dependente daquela acção. Isto, apesar de o artigo
389º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, apenas prever a caducidade no caso de a acção principal ser julgada improcedente, por decisão transitada, nada dispondo acerca do destino da providência no caso de procedência. Observava, a este propósito, Alberto dos Reis (Código de Processo Civil anotado,
3ª ed., volume I, 1948, p. 626-627):
'[...] pela sua própria natureza e pelas condições em que é decretada, a providência cautelar tem uma vida necessariamente limitada: só dura enquanto não
é proferida a decisão final. Logo que se forma a decisão definitiva, a providência cautelar, porque é provisória, caduca automaticamente, perde, ex se ou ipso jure, a sua eficácia, a sua vitalidade. [...] Emitida esta [a decisão final] com carácter definitivo, a providência cautelar cai forçosamente, quer a providência definitiva negue, quer reconheça, o direito do requerente. Se a decisão final declara o direito, provisoriamente atribuído pela providência cautelar, o que era provisório converte-se em definitivo; o efeito jurídico antecipado pela providência cautelar passa a existir por força do julgamento da causa principal. Se a decisão final nega o direito, o efeito da providência cautelar não pode subsistir, porque se revela contrário à ordem jurídica.'
No presente caso, portanto, a caducidade da providência cautelar ocorreu com o trânsito em julgado da decisão proferida no processo principal. Dito de outro modo: a providência cautelar que ordenou, nos termos do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, a entrega, pela ora recorrente à ora recorrida, de certo equipamento que lhe havia sido locado, caducou com o (ou só durou até ao) trânsito em julgado da sentença de fls. 157 e seguintes, que condenou a ora recorrente a restituir à ora recorrida esse mesmo equipamento. Essa caducidade da entrega provisória que havia sido decretada significou também a sua conversão numa entrega definitiva (Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 1996, p. 88, nota 29, fala aqui de absorção da providência cautelar pela decisão de mérito favorável). Verificou-se, pois, um fenómeno paralelo àquele que ocorre com a providência cautelar nominada de restituição provisória de posse, quando a acção de restituição da posse é julgada procedente e, consequentemente, a restituição se transforma em definitiva. Ora, tendo caducado a providência decretada nos presentes autos, torna-se inútil a apreciação do presente recurso. Na verdade, a apreciação da conformidade constitucional das normas contidas no artigo 21º do Decreto-Lei n.º 149/95, de
24 de Junho, nunca possibilitaria, nem a manutenção, nem o levantamento da providência, justamente porque já existe decisão definitiva e, por causa dela, a providência caducou. Em suma, tal apreciação não teria, fosse qual fosse o seu sentido, qualquer influência na definição do direito do caso, na medida em que este já se encontra definitivamente resolvido. E nem se diga que a requerida (ora recorrente) podia ter interesse na apreciação da conformidade constitucional daquelas normas para obter uma indemnização pelos danos sofridos com o decretamento da providência cautelar, pois tal possibilidade está no caso definitivamente excluída, quer pelo disposto no n.º 7 do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho (versão em análise), quer pelo preceituado no artigo 390º do Código de Processo Civil.
10.3. Conclui-se, assim, que procede a primeira questão prévia levantada pela recorrida: tendo caducado a providência cautelar decretada, a recorrente não mantém interesse, nomeadamente para obter o levantamento da providência ou para sustentar uma eventual pretensão indemnizatória, na declaração de inconstitucionalidade das normas que possibilitaram o decretamento de tal providência e, consequentemente, a entrega dos bens locados à ora recorrida. Não pode, assim, conhecer-se do objecto do presente recurso, dado que tal recurso se encontra extinto por inutilidade superveniente.
III
11. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a. Julgar extinto o presente recurso, por inutilidade superveniente; b. Consequentemente, não conhecer do respectivo objecto. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta.
Lisboa, 27 de Março de 2001 Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa