Imprimir acórdão
Proc. n.º 673/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por decisão sumária de fls. 223 e seguintes, foi decidido não conhecer do objecto do recurso interposto por MS para o Tribunal Constitucional, pelos seguintes fundamentos:
'[...]
8. O recorrente interpôs o presente recurso ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Como resulta da leitura deste preceito, o recurso com base nele interposto é um recurso de uma decisão judicial que tenha aplicado norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Daqui se conclui que é pressuposto processual do recurso interposto ao abrigo do artigo 70º, n.º
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, a aplicação, pelo tribunal recorrido, da norma questionada pelo recorrente. No presente recurso, a norma cuja constitucionalidade o recorrente questiona é a norma constante do artigo 1409º, n.º 2, do Código de Processo Civil, ou seja, a norma que permite ao tribunal, nos processos de jurisdição voluntária,
«investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes», e que dispõe ainda que, nesses processos,
«só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias». Porém, o tribunal recorrido não aplicou a norma que o recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, isto é, a norma constante do artigo
1409º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Como resulta claramente da leitura do acórdão recorrido (supra, 6.), a questão nele apreciada foi a de saber se podia ser admitido o recurso interposto pelo recorrente para o Supremo Tribunal de Justiça, atendendo a que a decisão impugnada pelo recorrente havia sido proferida em processo de jurisdição voluntária. A resposta a tal questão foi dada por aplicação, não do artigo
1409º, n.º 2, do Código de Processo Civil, mas do artigo 1411º, n.º 2, do mesmo Código, que dispõe que «das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça». Dito de outro modo: a norma que o tribunal recorrido aplicou foi, não a norma cuja constitucionalidade o recorrente questiona (a do artigo 1409º, n.º 2, do Código de Processo Civil), mas a norma do artigo 1411º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Foi esta norma que serviu de base à decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que não admitiu o recurso interposto pelo recorrente. Diga-se, aliás, que o tribunal recorrido expressamente considerou irrelevante a interpretação a dar à norma constante do artigo 1409º, n.º 2, para efeitos da apreciação da admissibilidade do recurso perante si interposto. Basicamente, o tribunal recorrido disse o seguinte: ainda que o recorrente tivesse razão quanto
à interpretação por si propugnada para o artigo 1409º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o recurso não podia ser admitido, porque tal implicaria a consideração, pelo Supremo Tribunal de Justiça, de critérios de oportunidade e conveniência, a tal obstando o disposto no artigo 1411º, n.º 2, do mesmo Código. Assim sendo, falta um dos pressupostos processuais do presente recurso: o da aplicação, pela decisão recorrida, da norma que o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie. Como tal, não pode conhecer-se do respectivo objecto.'
2. Notificado desta decisão sumária, MS dela veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 235 a 236), nos termos e pelos fundamentos seguintes:
'1 – Suscita-se na decisão reclamada a questão de não haver pelo tribunal recorrido aplicada a norma cuja constitucionalidade o recorrente questiona, o que determina a falta de um pressuposto processual de recurso a que alude o art.
70º, nº 1, al. b) da LOPC.
2 – Que a inconstitucionalidade da norma invocada pelo recorrente foi suscitada não restam dúvidas, sendo a própria decisão reclamada quem o afirma abertamente.
3 – A tónica decisória é colocada na divergência optativa constante do Acórdão recorrido, que optou por fugir do âmbito invocado pelo recorrente, chamando à colação uma norma alternativa – algo que lhe, desde já se adiante, é legitimo fazer.
4 – Contudo, a questão é diversa – a inconstitucionalidade da norma foi invocada e a declaração de tal inconstitucionalidade sempre determinaria o conhecimento do recurso em toda a amplitude invocatoria determinada pelas alegações apresentadas pelo ora reclamante.
5 – O não conhecimento da questão e a sua não aplicação pelo Tribunal recorrido, que, para mais viola o disposto no art. 204º da Constituição da República Portuguesa, nunca poderá determinar um prejuízo para a posição processual do reclamante, tal como a mesma foi equacionada ao longo dos autos, sob pena de estar decisivamente encontrada a forma de obstaculizar o conhecimento da questão da inconstitucionalidade suscitada nos autos.
6 – Bastaria, em consequência, a divergência quanto a um ponto concreto, esvaziando de conteúdo toda a explanação alegatória das partes, para que ocorresse uma inibição de ser equacionada perante o Tribunal Constitucional.
7 – Relevando-se para um plano puramente residual a intervenção das partes no processo.
8 – Não sendo esse o alcance do art. 71º, nº 1, al. b) da LOTC e estando reunidos os requisitos dele constantes, deve o recurso interposto ser admitido, seguindo-se os demais os demais termos até final.'
Notificada desta reclamação, a recorrida MM veio dizer que se louvava na decisão sumária e que, consequentemente, deveria a reclamação ser julgada improcedente
(fls. 238).
3. Resulta claramente do texto da presente reclamação que o reclamante não questiona a falta de preenchimento de um dos pressupostos processuais do recurso por si interposto para o Tribunal Constitucional: o da aplicação, pela decisão recorrida, da norma cuja inconstitucionalidade pretende que o Tribunal Constitucional aprecie. Simplesmente, considera o reclamante que a falta de preenchimento de tal pressuposto é irrelevante, atendendo à circunstância de que a inconstitucionalidade dessa norma foi suscitada durante o processo. Tendo sido suscitada tal inconstitucionalidade durante o processo, assistir-lhe-ia o direito de ver proferida, pelo Tribunal Constitucional, uma decisão sobre o objecto do recurso, até porque se assim não fosse bastaria ao tribunal recorrido aplicar uma outra norma para impedir o conhecimento da questão da inconstitucionalidade suscitada nos autos. Esta a argumentação essencial do reclamante, que tece ainda algumas considerações acessórias sobre a violação, pelo tribunal recorrido, do disposto no artigo 204º da Constituição (apesar de, algo contraditoriamente, afirmar também que ao acórdão recorrido seria legítimo chamar 'à colação uma norma alternativa'). Dado que o reclamante não aduz fundamentação a propósito, e se trata, de qualquer modo, de matéria inócua para a decisão da presente reclamação, sobre ela apenas se dirá ser ininteligível o motivo pelo qual o tribunal recorrido violou o artigo 204º da Constituição, ao não admitir um recurso ao abrigo do artigo 1411º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
4. Tendo agora em atenção a argumentação essencial do reclamante, cumpre desde já notar que ela se revela totalmente destituída de fundamento. Como é óbvio, a falta de preenchimento de um dos pressupostos processuais do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional não pode ser suprida pela verificação de qualquer outro dos pressupostos desse mesmo recurso. Dito de outro modo: o facto de o recorrente ter suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de uma norma não torna só por si admissível o recurso previsto naquele preceito. Para além de ser exigível a verificação desse pressuposto, todos os outros pressupostos desse recurso têm de estar preenchidos. Trata-se de regra geral em matéria de pressupostos processuais: o preenchimento de um não supre a falta de preenchimento dos restantes. Esta regra de fácil apreensão é contestada pelo reclamante com o fundamento de que, se assim fosse, bastaria ao tribunal recorrido aplicar uma outra norma para subtrair ao conhecimento do Tribunal Constitucional uma questão de constitucionalidade suscitada durante o processo. O raciocínio do reclamante, se bem se reparar, assenta em três premissas que causam natural perplexidade: a de que o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional teria como finalidade controlar a não aplicação, pelo tribunal recorrido, de norma cuja inconstitucionalidade tivesse sido suscitada durante o processo; a de que esse mesmo recurso seria admissível ainda que a decisão que nele viesse a ser proferida não fosse susceptível de ter qualquer repercussão na decisão recorrida; finalmente, a de que bastaria às partes suscitar a inconstitucionalidade de uma norma durante um processo judicial, mesmo que ela não viesse a ser aplicada, ou fosse insusceptível de ser aplicada, para lhes ser franqueada a porta do Tribunal Constitucional. A primeira premissa nega ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade qualquer finalidade racional; a segunda torna-o completamente inútil para a decisão da causa em que é interposto e retira-lhe mesmo a fisionomia de recurso de uma decisão judicial; a terceira conduz, em termos práticos, à atribuição de legitimidade aos particulares para interporem recursos de fiscalização abstracta de constitucionalidade (em violação frontal do disposto no n.º 2 do artigo 281º da Constituição), dado que lhes bastaria suscitar num processo a inconstitucionalidade de uma qualquer norma para acederem ao Tribunal Constitucional. Não podendo, desde logo por razões de coerência do ordenamento, aceitar-se tais premissas, impõe-se a conclusão de que nenhum motivo existe para rejeitar a regra, pacificamente aceite, de que basta o não preenchimento de um pressuposto processual do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional para tornar esse recurso inadmissível. Por outras palavras, não estando verificado, como sucede no caso sub judice, o requisito da aplicação, pela decisão recorrida, da norma cuja constitucionalidade se questiona, é inadmissível o recurso interposto, não sendo tal inadmissibilidade superada pelo preenchimento dos demais pressupostos processuais. E, sendo tal recurso inadmissível, não pode, consequentemente, conhecer-se do respectivo objecto.
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação, confirmando a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 24 de Janeiro de 2001 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida