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Proc. nº 412/98
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3º Secção do Tribunal Constitucional:
1. G... foi condenado pela 8ª Vara Criminal de Lisboa na pena de 4 anos de prisão pela prática de um crime de ofensas corporais graves, p. e p. pela alínea a) do art. 143º do Código Penal de 1982.
Não se conformando com a decisão, recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça. Em conferência, entendeu este Tribunal rejeitar o recurso, por manifestamente improcedente, em consonância com o exame preliminar do relator.
Deduziu o ora recorrente um pedido de aclaração, no qual, por entre o mais, invocou o seguinte:
'4.2- Por outro lado, o douto Acórdão em apreço está ferido de inconstitucionalidade, o que, desde já, se alega, tendo em vista eventual recurso para o Tribunal Constitucional.
Com efeito, a regra do artigo 420º do Código de Processo Penal, que consagra a possibilidade de rejeição do recurso, é ofensiva da norma do artigo
32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que admite a rejeição do primeiro recurso, quando aquele preceito constitucional consagra um direito a um duplo recurso.
5. EM CONCLUSÃO:
5.1- Deve ser esclarecido, por ambíguo e obscuro, o douto Acórdão em apreço.
5.2- Deve ser reconhecida a inconstitucionalidade da norma do artigo
420º do Código de Processo Penal, ao abrigo da qual foi proferida a decisão de rejeição do recurso, por ofensiva do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.'
2. O Supremo Tribunal de Justiça desatendeu o pedido de esclarecimento, por não haver 'qualquer ambiguidade ou obscuridade a aclarar'. Quanto ao problema de constitucionalidade suscitado, pronunciou-se nos seguintes termos:
'Com efeito, e com pré-anúncio de recurso para o Tribunal Constitucional, diz o requerente que é inconstitucional a regra do art. 420º do C.P.P. na medida em que, permitindo a rejeição do recurso, ofende a norma do art. 32º da C.R.P.. Também aqui não lhe assiste razão e a invocada inconstitucionalidade tem a aparência de mero expediente destinado a retardar a execução da decisão (e assim a dar mais uma achega objectiva à tão apregoada lentidão da justiça…). De acordo com o disposto no referido art. 32º nº 1, o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa. Como é entendimento uniforme, nestas se inclui o direito ao recurso contra sentenças penais condenatórias. Mas esse direito não pode ser exercido em termos abstractos, como único objectivo não fundamentado de uma pretensa melhor justiça. Não basta a simples declaração ou requerimento de que se pretende recorrer. Impõe-se, desde logo, justificar através da motivação, as razões ou os fundamentos por que se recorre, quais os vícios da decisão recorrida e indicar o sentido das pretensões que se visam com o recurso. Faltando a motivação, o recurso é rejeitado porque não se deu a conhecer ao tribunal ad quem os fundamentos ou razões da discordância da decisão impugnada. E é também rejeitado se a motivação não obedecer a determinados requisitos formais especificados nos nºs 1 e 3 do art. 412º do C.P.P. Trata-se, então da rejeição formal que como escrevem Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho (in C.P.P. Anotado, vol. II, pág. 562) é tributária do que se pode chamar lealdade processual. Mas o recurso pode ainda ser rejeitado por razões de natureza substantiva, isto
é quando é clara a inviabilidade dele porque, atendendo aos factos provados e não provados, à letra da lei e às posições jurisprudenciais dos tribunais superiores sobre as questões suscitadas, é manifesta a sem razão do recorrente. Se é desde logo clara a improcedência, não há razão para prosseguir o processo para a fase de audiência. Seria um acto inútil que a lei proíbe. Trata-se, como nota G... (Curso de Proc. Penal, III, pág. 340) de uma simplificação determinada por razões de economia processual. Esta causa de rejeição do recurso tem perfeita correspondência com o disposto nos artigos 76º nº 2 da lei nº 28/82 (com as alterações introduzidas pelas Leis
85/89 e 87/95 sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional) que estatui, no caso dos recursos previstos nas als. b) e f) do nº 1 do art. 70º, que devem ser indeferidos 'quando forem manifestamente infundados'. E tem também grandes semelhanças com o disposto no nº 1 do art. 78º-A da mesma Lei, que o Tribunal Constitucional utiliza frequentemente. E, que saibamos, ninguém se lembrou de invocar a inconstitucionalidade dessas normas. Além disso, como bem observa Cunha Rodrigues (CEJ, Jornadas de Direito Processo Penal, O Novo Código de Processo Penal, pág. 396), 'É importante precisar que o que se equaciona com a rejeição do recurso por manifesta improcedência não é a possibilidade dos tribunais superiores seleccionarem as causas que lhe são submetidas, mas sim um regime simplificado de decisão quando seja manifesto que o recurso, por razões processuais ou de mérito, não pode proceder'. Não se trata, in casu, de não conhecer do recurso, mas sim de o apreciar e de o julgar de uma forma mais simplificada, especificando sumariamente os fundamentos da decisão, a qual, é bom não esquecer, tem de ser tomada por unanimidade de votos – Cfr. Art- 419º nº 4 alínea a) do C.P.P. Ora, sendo este o regime da rejeição, é bom de ver que em nada se coarctam as garantias de defesa, designadamente o direito do arguido ao recurso de uma decisão penal condenatória. Conclui-se, pois, que a norma do art. 420º do C.P.P. não ofende a norma do art.
32º nº 1 da C.R.P.'
3. Desta decisão recorreu então o arguido para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, arguindo a inconstitucionalidade material do artigo 420º do Código de Processo Penal, 'por violação das normas do artigo 32º nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa'.
Notificado para o efeito, concluiu as respectivas alegações afirmando:
'1- A Constituição da República Portuguesa assegura ao cidadão, em matéria de processo penal, como forma de total garantia da sua defesa:
1. o direito a um duplo exame da matéria de prova;
2. o direito ao recurso;
3. o direito do arguido a ser assistido em todos os actos do processo pelo defensor por si escolhido;
2- Todos estes direitos são postergados pelo artigo 420º do Código de Processo Penal, que, em homenagem ao princípio da celeridade processual, consagra o direito de os Tribunais rejeitarem o recurso, criando uma forma sincopada de processo, em que não há lugar à apreciação da matéria de facto, na presença do arguido e do seu defensor, dando-se, assim, prevalência ao inquisitório sobre o acusatório, este, também, princípio constitucionalmente consagrado'.
4. Nas contra-alegações, o Ministério Público, para além de se referir aos casos paralelos previstos na Lei do Tribunal Constitucional e no Código de Processo Civil revisto, diz o seguinte quanto à disposição agora em análise:
'c) Por sua vez, o artigo 420º, nº 1, do Código de Processo Penal vem permitir que, no tribunal 'ad quem', sejam liminarmente rejeitados em conferência – isto é, pelo tribunal que seria competente para os julgar, se viesse a ser seguida a sua tramitação 'típica' ou normal – e por unanimidade, os recursos manifestamente improcedentes. A 'rejeição' do recurso – traduzida naturalmente na plena e liminar confirmação da decisão recorrida – envolve naturalmente uma apreciação do mérito, um conhecimento do objecto do recurso (já que não estaremos perante a mera verificação de 'questões prévias' que impedem tal apreciação de fundo): também aqui a decisão é proferida pelo tribunal competente para normalmente julgar o recurso (a conferência) e sendo certo que, perante a específica tramitação dos recursos em processo penal, os fundamentos da impugnação da decisão recorrida já constam necessariamente da motivação, apresentada pelos sujeitos processuais, nos termos dos artigos 412º e 413º. A simplificação da tramitação dos recursos 'manifestamente improcedentes' traduz-se, pois, essencialmente na dispensa da audiência a que se refere o artigo 421º e – não havendo lugar à renovação da prova – da produção de alegações, nos termos do artigo 423º '.
(...)
'2.2. Parece-nos óbvio que o sistema estabelecido no nº 1 do artigo
420º do Código de Processo Penal em vigor não padece da apontada inconstitucionalidade.
Na verdade, é evidente a improcedência das razões aduzidas com vista
à invocação de um pretensa violação das 'garantias de defesa': designadamente, é manifesto que não pode considerar-se ínsito no princípio constitucional das garantias de defesa a existência em todos os casos de uma audiência de julgamento de recurso, a realizar em termos de imediação e oralidade.
O arguido e o seu defensor já tiveram plena oportunidade processual de, na motivação do recurso que apresentaram, deduzirem o seu entendimento sobre a interpretação que reputavam de correcta das normas questionadas – pelo que a possibilidade de apresentar novas alegações – agora orais – sobre as questões controvertidas, nos termos do artigo 423º, nºs 3 e 4, seria, - para além de redundante – um acto verdadeiramente inútil, uma vez que o Tribunal a quem incumbe o julgamento do recurso já havia formado a sua convicção no sentido de que tais 'questões', suscitadas pelo recorrente careciam obviamente de fundamento.
E, sendo certo, por outro lado, que os princípios do contraditório e da igualdade de armas forma plenamente assegurados no processo, através da apresentação da motivação e da contra-motivação por ambos os sujeitos processuais envolvidos no recurso.
Resta notar que, no Acórdão nº 353/98, este Tribunal teve já oportunidade de decidir que nos recursos - como os interpostos perante o Supremo Tribunal de Justiça – que versam sobre matéria de direito nada na Consitutuição impõe a realização de uma audiência sujeita aos princípios da imediação e oralidade'.
5. É do seguinte teor o artigo 420º do Código de Processo Penal: Rejeição do recurso
'1. O recurso é rejeitado sempre que faltar a motivação ou for manifesta a improcedência daquele.
2. A deliberação de rejeição exige a unanimidade de votos.
3. Em caso de rejeição do recurso, o acórdão limita-se a identificar o tribunal recorrido, o processo e os seus sujeitos e a especificar sumariamente os fundamentos da decisão.
4. Se o recurso for rejeitado, o tribunal condena o recorrente, se não for o Ministério público, ao pagamento de uma importância entre três e dez UCs'.
No requerimento de interposição do recurso para este Tribunal define-se como objecto do recurso 'a regra do artigo 420º do Código de Processo Penal', questionando a sua constitucionalidade material. A verdade, porém, é que, interpretado o requerimento à luz do pedido de esclarecimento do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, por um lado, e das alegações apresentadas neste Tribunal, por outro, resulta que o recorrente apenas põe em causa a compatibilidade constitucional da disposição citada na parte em que permite a rejeição do recurso com base na sua manifesta improcedência. É, pois, sobre esta norma que o Tribunal se vai pronunciar.
Na perspectiva do recorrente, esta possibilidade de rejeição do recurso violaria os seguintes direitos de defesa do arguido: o direito a um duplo exame da matéria de prova, o direito ao recurso e o direito a ser assistido em todos os actos do processo pelo defensor por si escolhido.
Cabe antes de mais esclarecer que aquilo a que chama 'direito a um duplo exame da matéria de prova', a existir, não constituirá senão numa das vertentes do direito ao recurso, devendo por isso ser apreciado neste plano.
Assim, começar-se-á por analisar a invocada preterição do direito ao recurso, após o que se apreciará a eventual contrariedade ao direito do arguido a ser assistido por defensor em todos os actos do processo.
6. Não se põe naturalmente em causa que o direito fundamental ao recurso em matéria penal (nº 1 do artigo 32º da Constituição) importa, pelo menos, a faculdade de ver apreciada por um tribunal superior a decisão condenatória proferida em 1º instância (assim, por exemplo, o acórdão nº 322/93 deste Tribunal, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 25º vol., pág. 375 e segs.). Importa pois saber se o regime instituído pelo artigo 420º do Código de Processo Penal, enquanto permite a rejeição do recurso por manifesta improcedência, viola esse direito.
Segundo a argumentação desenvolvida pelo recorrente, estão em causa basicamente duas questões. Por um lado, a de que a apreciação da pretensão daquele que recorre de uma decisão condenatória implicaria necessariamente uma audiência, com a convocação do Ministério Público, do defensor, dos representantes do assistente e das partes civis (cfr. nº 2 do artigo 421º). Por outro lado, a de que ficaria inviabilizado aquilo a que o recorrente chama o
'duplo exame da matéria de prova', isto é a possibilidade de o tribunal de recurso poder apreciar a matéria de facto.
Quanto ao primeiro dos pontos referidos, cabe dizer que o ora recorrente não aduz um único argumento que deponha no sentido da afirmação defendida. E não descortina este Tribunal qualquer razão que imponha, necessariamente e em todos os casos, para uma correcta decisão do recurso, a realização de uma audiência, com chamamento das pessoas indicadas no nº 2 do artigo 421º. Na verdade, como se afirma na decisão recorrida, a rejeição por manifesta improcedência não equivale a uma recusa de apreciação do objecto do recurso, consistindo tão somente numa forma simplificada de apreciação do seu mérito. Não pode, aliás, esquecer-se que a decisão de rejeição do recurso – tomada por unanimidade – pressupõe que a conferência considere a improcedência do recurso como manifesta, não lhe sendo lícito prescindir da tramitação normal do recurso senão nesta condição.
Quanto à segunda questão, relativa ao alegado perigo de inviabilização do recurso em matéria de facto, também não tem razão o recorrente. Com efeito, se a improcedência do recurso, quer em matéria de direito, quer em matéria de facto (quando o recurso a integre no seu objecto e dela deva conhecer o tribunal superior), é considerada manifesta unanimemente pela conferência, a rejeição do recurso impõe-se para evitar a prática de actos inúteis. Ora, justamente, ao pronunciar-se pela manifesta improcedência do recurso que englobe a decisão de facto, a conferência pondera, naturalmente, se a sua correcta apreciação exige ou não que prossiga a tramitação normal do recurso, com a realização da audiência nos termos legais.
Assim se conclui que o regime resultante do artigo 420º em nada põe em causa o direito ao recurso em matéria de facto.
7. Pelo que toca à alegada violação do direito do arguido a ser assistido em todos os actos do processo pelo defensor que escolheu, previsto no nº 3 do artigo 32º da Constituição, afigura-se evidente a não inconstitucionalidade do artigo 420º do Código de Processo Penal, não apenas por razões formais, mas também em resultado de uma ponderação substancial do problema.
Como afirmam Gomes Canotilho e Vital Moreira ('Constituição da República Portuguesa Anotada', 3ª ed., 1993, pág. 204), 'a assistência do defensor é segundo a Constituição, um direito do arguido em todos os actos do processo (i. é, em todos os actos em que o arguido intervenha ou possa intervir)
(…)'. Deste modo, não havendo lugar à intervenção do arguido no modo simplificado de julgamento do recurso em que se consubstancia a sua rejeição por manifesta improcedência, pode dizer-se que falta a condição básica para que tenha sentido sequer falar em direito do arguido a ser assistido por defensor.
E não menos importante é a consideração de que o defensor do arguido intervém no recurso em dois momentos, o do requerimento de interposição do recurso e o da apresentação da respectiva motivação. Nesses momentos, o arguido, assistido pelo defensor, tem toda a oportunidade de trazer ao conhecimento do tribunal superior as razões em que assenta a impugnação da decisão do tribunal de primeira instância. Está, assim, substancialmente garantido o direito do arguido à assistência de defensor por si escolhido, sempre que o recurso não tenha que prosseguir com a realização de audiência. É esta, de resto, a razão pela qual também não se vislumbra aqui qualquer violação do princípio do contraditório.
8. Cabe por último afirmar que não se compreende em que medida ou por que razão entende o recorrente ter o artigo 420º a virtualidade de lesar a estrutura acusatória do processo penal, constitucionalmente garantida.
Termos em que se decide não julgar inconstitucional o artigo 420º do Código de Processo Penal, na parte em que permite a rejeição do recurso por manifesta improcedência, assim se confirmando integralmente a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 10 de Março de 1999- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida