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Processo nº 416/2000 Conselheiro Messias Bento
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. AT, notificado da decisão sumária que não tomou conhecimento do recurso por si interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão da Relação do Porto, de 26 de Abril de 2000, em que pedia que fossem 'declaradas inconstitucionais as normas constantes dos artigos
412º, nº 1 e nº 4 e ainda 420º do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido em que o foram no presente caso em apreço', vem dela reclamar para a conferência.
Pede que se profira acórdão a julgar procedente a reclamação, por forma a que ele aproveite da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do acórdão nº 337/2000, nomeadamente revogando-se os 'acórdãos da Relação afectados' por esse aresto.
O PROCURADOR-GERAL ADJUNTO respondeu dizendo:
1º A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2º Assim, desde logo, acaba o ora reclamante por não questionar, em termos substanciais, as razões que ditaram a prolação da douta decisão sumária proferida nos autos: o incumprimento pelo recorrente dos ónus de suscitar atempadamente a questão de constitucionalidade durante o processo e de especificar, no âmbito do recurso de constitucionalidade interposto, as interpretações ou dimensões normativas que efectivamente pretende fazer sindicar pelo Tribunal Constitucional.
3º É, por outro lado, inadmissível que – no âmbito desta reclamação para a conferência – pretenda o reclamante convolar do recurso de constitucionalidade que efectivamente interpôs para o recurso – ao que parece – fundado na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, com vista a 'aproveitar' os efeitos do acórdão nº 337/2000.
4º Para além de a questão de constitucionalidade suscitada nos presentes autos não ter contornos idênticos à que foi dirimida no dito aresto deste Tribunal, é manifesto que tal convolação é – neste momento processual – obviamente inadmissível.
O recorrido JL não respondeu.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. Como o requerimento de interposição de recurso não cumpria o disposto no artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, foi o recorrente convidado pelo relator a dar cabal cumprimento a esse preceito, indicando, designadamente: o acórdão de que recorre; a interpretação dos artigos 412º, nºs 1 e 4, e 420º do Código de Processo Penal, adoptada pelo acórdão recorrido, que, em seu entender,
é inconstitucional; a norma ou princípio constitucional violado por essa norma extraída por via de interpretação; a alínea do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional ao abrigo da qual recorre; e, sendo caso disso, a peça processual em que suscitou a inconstitucionalidade da norma que pretende ver apreciada.
O recorrente disse, então, ser o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional; recorrer dos acórdãos da Relação do Porto, de 26 de Abril de 2000 e de 2 de Fevereiro de 2000; ter suscitado, no requerimento de arguição de nulidade do acórdão de 2 de Fevereiro de 2000, a inconstitucionalidade das normas que pretende ver apreciadas, as quais – disse – violam os artigos 32º, nº 1, 13º e 20º, nº 1, da Constituição. Nessa resposta, o recorrente não enunciou, porém, a interpretação dos mencionados artigos 412º, nºs 1 e 4, e 420º do Código de Processo Penal, feita pela Relação, que, em seu entender, é inconstitucional. Com referência aos artigos 412º e 420º, limitou-se a dizer o seguinte: 'a interpretação dos artigos supra referidos dada por estes acórdãos é inconstitucional'; 'esta interpretação dada por este acórdão é inconstitucional'; 'estas normas do Código de Processo Penal referidas, extraídas por esta via de interpretação, [...] violam, nomeadamente, os artigos 32º, nº 1, 13º e 20º, nº 1, [...] da Constituição da República Portuguesa'. E isto, quando o artigo 412º tem 4 números, tendo os nºs
2 e 3 várias alíneas cada um; e o artigo 420º tem igualmente 4 números
4. Perante essa resposta, o relator proferiu decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Nela, escreveu: Não tendo o recorrente identificado a norma que pretende ver apreciada sub specie constitutionis – é dizer: a interpretação dos artigos 412º, nºs 1 e 4, e
420º do Código de Processo Penal, feita pela Relação, que, em seu entender, é inconstitucional – não cumpriu ele, apesar de convidado a fazê-lo, o disposto no artigo 75º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional: é que, quando se questiona uma certa interpretação de determinada norma legal, impõe-se que o recorrente 'indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver que reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental' [cf. o acórdão nº 178/95 publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 30º, página 1118)]. Ficou-se, assim, sem saber ao certo qual a norma que constitui objecto do recurso – o que, naturalmente, impede o seu conhecimento. Objectar-se-á que o recorte da norma se pode extrair daquilo que a Relação decidiu e o recorrente lhe censura.
É que – dir-se-á – o que ele censura à Relação é esta ter decidido rejeitar o recurso por si interposto da sentença condenatória e negar provimento ao que interpôs do despacho do juiz da 1ª instância que não determinou a transcrição da prova gravada, sem, previamente, o ter convidado a aperfeiçoar a motivação. E, por isso, a norma que deseja ver julgada inconstitucional é - dir-se-á - a que conduziu a esse julgamento sem tal convite prévio. Ainda que isto fosse exactamente assim – e não o é -, sempre o recorrente tinha deixado de cumprir o ónus que sobre si impende de identificar a norma que constitui objecto do recurso - o que, repete-se, implica o não conhecimento do mesmo, pois o citado artigo 75º-A não impõe ao recorrente um mero dever de cooperação com o Tribunal. Impõe-lhe, antes, um ónus, cujo incumprimento impede o Tribunal de passar ao conhecimento do objecto do recurso. Mas, a situação não pode reconduzir-se, nem é sequer, similar ou análoga, em toda a sua extensão, àquelas em que o Tribunal julgou inconstitucional – por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição – a norma constante dos artigos
412º, nº 1, e 420º, nº 1, do Código de Processo Penal (na redacção anterior à Lei nº 59/98, de 25 de Agosto), 'quando interpretados no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação implicar a imediata rejeição do recurso, sem que previamente seja feito convite ao recorrente para suprir tal deficiência' – norma que, no acórdão nº 337/2000 (publicado no Diário da República, I série-A, de 21 de Julho de 2000), o Tribunal acabar por declarar inconstitucional, com força obrigatória geral. Na verdade, o que se passou foi o seguinte: ao interpor recurso da sentença condenatória, o recorrente não especificou, por referência aos suportes técnicos da gravação, as provas que, em seu entender, impunham decisão diversa da recorrida. Ou seja: não cumpriu o ónus que o artigo 412º, nº 4, do Código de Processo Penal [com referência à alínea b) do seu nº 3] lhe impunha. O juiz, à falta dessa indicação, não determinou a transcrição das provas gravadas. Deste despacho interpôs o recorrente recurso, mas não pugnou por que a Relação o revogasse e ordenasse que ele fosse convidado a suprir a deficiência (a esse convite só aludiu na resposta ao parecer do Ministério Público a que, adiante se fará referência). Pugnou, isso sim, para que a Relação revogasse pura e simplesmente esse despacho e ordenasse a transcrição da prova gravada, uma vez que – disse – ele cumpriu o disposto no mencionado nº 4 do artigo 412º. A Relação, no acórdão de 2 de Fevereiro de 2000, negou provimento ao recurso interposto de tal despacho e rejeitou o recurso da sentença, este último, com o fundamento de que o mesmo só podia 'merecer a reprovação liminar', uma vez que o recorrente, nas conclusões da motivação, se limitou 'a numerar, repetindo-o, o articulado de motivação', o que constituía 'um caso patente de infracção ao disposto, ‘maxime’, no artigo 412º do Código de Processo Penal'. O recorrente arguiu, então, a nulidade deste acórdão e, no respectivo requerimento – mas só aí -, veio dizer que 'é inconstitucional a interpretação dos artigos 410º, 412º e 420º, se dela resultar, como neste caso resultou, que as garantias de defesa existentes nos processos cíveis e laborais não se verificam no processo penal, como no caso do convite previsto no artigo 690º, nº 4, do Código de Processo Civil, não ser aplicável em processo penal'. A Relação desatendeu a reclamação de nulidade, pelo acórdão de 26 de Abril de 2000. Vale isto por dizer que o acórdão de 2 de Fevereiro de 2000 rejeitou, efectivamente, o recurso interposto da sentença condenatória sem, previamente, ter convidado o recorrente a suprir a deficiência que, conforme aí se decidiu, inquinava as conclusões da motivação. Simplesmente, o recorrente, antes de proferido esse aresto, não suscitou a inconstitucionalidade dos artigos 412º, nºs 1 e 4, e 420º do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido em que aí vieram a sê-lo. E pôde fazê-lo, pois o Ministério Público emitiu parecer, sustentando, justamente que esse recurso devia ser rejeitado, 'por a motivação respectiva não ter obedecido ao disposto no artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, conforme dispõe o artigo 420º, nº 1, do Código de Processo Penal, por referência ao artigo 414º, nº 2, do mesmo Código'. E o recorrente foi notificado desse parecer, e respondeu dizendo que 'não há falta de motivação de recurso'. Ora, estando em causa um recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para que pudesse conhecer-se do mesmo, necessário era que, antes de proferida a decisão recorrida – o acórdão de 2 de Fevereiro de
2000 – o recorrente tivesse suscitado a inconstitucionalidade das normas que pretende submeter ao julgamento deste Tribunal. Só assim não seria, se fosse caso de o dispensar do ónus da suscitação da questão de inconstitucionalidade, durante o processo. Não é, porém, caso disso, uma vez que, como se viu, o recorrente teve oportunidade processual de suscitar tal questão antes da prolação daquele aresto.
É certo que o recorrente levantou a questão da inconstitucionalidade no requerimento de arguição de nulidade já referido. Esse já não era, porém, momento processualmente adequado para o fazer, pois, proferida a sentença, esgotou-se o poder de cognição do Tribunal, que – ressalvados os casos de reforma daquela [cf. o artigo 669º, nº 1, alínea b), e
2, do Código de Processo Civil] – apenas pode rectificar erros materiais, esclarecer dúvidas que ela suscite ou suprir nulidades de que enferme (cf. artigos 669º, nºs 1 e 2, 667º, 668º e 669º, nº 1, do mesmo Código). Esta conclusão – a conclusão de que a suscitação da questão de inconstitucionalidade, quando seja feita no requerimento de arguição de nulidades, é-o em momento processual inadequado, não podendo já, por isso, abrir a via do recurso de constitucionalidade – não é infirmada pelo facto de, no caso, a Relação, no citado acórdão de 26 de Abril de 2000, de que também vem interposto recurso, ter resolvido apreciar sub specie constitutionis, 'a interpretação, vertida no acórdão precedente, dos artigos 410º, 412º e 420º do Código de Processo Penal', concluindo que ela 'não padece de qualquer inconstitucionalidade'.
É que, esgotado que estava o seu poder de cognição sobre a matéria, e tendo, nesse aresto, que decidir apenas a questão da nulidade que fora arguida, essa pronúncia mais não é do que um obter dictum, se não mesmo uma afirmação ad ostentationem, insusceptível, por isso, de abrir a via do recurso de constitucionalidade. Tanto mais insusceptível de abrir esta via recursória, quanto é certo que os normativos em causa só interessavam para decidir os recursos que tinham sido interpostos, e estes foram julgados do modo que se indicou, no acórdão de 2 de Fevereiro de 2000. Em conclusão: não pode, pois, conhecer-se do recurso. E isto, não apenas porque o recorrente não identificou a norma (recte, a interpretação) que constitui o seu objecto, como ainda porque o recorrente não suscitou essa inconstitucionalidade em momento processualmente adequado (é dizer: durante o processo), como, finalmente, porque não é caso de o dispensar do cumprimento desse ónus da suscitação atempada da questão de constitucionalidade.
4. O reclamante insiste em que, no 'caso em apreço', está em causa uma norma igual à constante dos artigos 412º, nº 1, e 420º, nº 1, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido que o acórdão nº 337/2000 declarou inconstitucional com força obrigatória geral. E acrescenta que esse aresto
'abrange também necessariamente o nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal'. Decorre, no entanto, do que a esse propósito se escreveu na decisão sumária, que não lhe assiste razão.
O reclamante alega ainda que, 'em Fevereiro e em Abril de 2000, tal acórdão
[refere-se ao acórdão nº 337/2000] ainda não tinha sido proferido', mas não esclarece o porquê desta sua afirmação. Se, com ela o recorrente pretende convolar o recurso, que interpôs ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para um recurso fundado na alínea g) do nº 1 do mesmo artigo 70º, com vista a aproveitar os efeitos do acórdão nº 337/2000, o seu esforço está, obviamente, votado ao fracasso: de facto, de um lado, como já se sublinhou, a questão de constitucionalidade, que ele pretende ver apreciada por este Tribunal, não tem contornos idênticos à que foi julgada nesse aresto; de outro, essa convolação é, neste momento, processualmente inadmissível; e, finalmente, nunca o facto de o acórdão nº 337/2000 ser posterior às datas por si indicadas podia constituir obstáculo a que, verificada a identidade de normas, o recurso tivesse sido interposto ao abrigo da citada alínea g), em vez de, como aconteceu, o ser ao abrigo da alínea b) referida: é que, esse aresto foi tirado na sequência dos acórdãos nºs 43/99, 417/99 e 43/2000 (publicados, os dois primeiros, no Diário da República, II série, de 26 de Março de 1999 e de 13 de Março de 2000, respectivamente, e o último por publicar).
Conclui-se, assim, como se concluiu na decisão sumária: não pode conhecer-se do recurso interposto. E isto, não apenas porque o recorrente não identificou a norma (recte, a interpretação) que constitui o seu objecto, como ainda porque não suscitou essa inconstitucionalidade em momento processualmente adequado (é dizer: durante o processo), como, finalmente, porque não é caso de o dispensar do cumprimento desse ónus da suscitação atempada da questão de constitucionalidade.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). indeferir a reclamação apresentada contra a decisão sumária de não conhecimento do recurso, que se confirma;
(b). condenar o reclamante nas custas, com quinze unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 20 de Dezembro de 2001 Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida