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Processo n.º 28/99
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. M. T. e M. T. instauraram no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, contra R. E., M. S. & R., Ld.ª e Companhia de Seguros M., E.P., pedindo a condenação solidária destes no pagamento de 2 437 400$00, acrescido de juros legais e actualizado de acordo com as taxas de inflação, pedindo ainda que fosse relegada para execução de sentença a fixação dos danos ainda não apurados. Tal pedido tinha em vista a indemnização dos danos alegadamente sofridos por M. T., filha dos Autores, falecida na sequência de um atropelamento, ocorrido em 18 de Outubro de 1983, em que interveio o veículo automóvel conduzido por R. E..
2. Da sentença proferida em 30 de Novembro de 1993 – que, fixando na proporção de 30% e 70%, respectivamente, a culpa pela produção do acidente à condutora da viatura e à vítima, julgou a acção parcialmente procedente – recorreram os Autores para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando desde logo que 'o Decreto-Lei n.º 837/76 e o parágrafo único do art.º 1º do Decreto-Lei n.º
39.672, de 20 de Maio de 1954 são inconstitucionais, a partir da entrada em vigor da Lei Constitucional n.º 1/82'. O Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão que proferiu em 11 de Dezembro de
1997, julgou a apelação improcedente, mantendo na íntegra a sentença recorrida. No que respeita à questão de constitucionalidade invocada, escreveu-se:
'[...]
É claro que os apelantes não apontaram quaisquer factos/elementos concretos que fundamentem essa alegada ‘inconstitucionalidade’. Com efeito, dizer-se que tais preceitos legais são inconstitucionais só pelo facto da entrada em vigor, entretanto e muito posteriormente, da Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro, naturalmente que esse argumento não tem qualquer consistência, pelo que, neste caso, não tem, sequer, cabimento a Relação fazer aqui qualquer explanação sobre essa matéria, por falta de argumentos/fundamentos válidos.'
3. Desse Acórdão recorreu M. T. para o Supremo Tribunal de Justiça, dizendo, no que à inconstitucionalidade suscitada respeita, e acrescentando algo mais às considerações já anteriormente expendidas, que:
'[...]
57. Por outro lado, a vítima foi julgada, por ter infringido o art.º 40º, n.º 4 do C.E..
58. Porém, a nova redacção desse art.º 40º, nomeadamente o n.º 4, cujo conteúdo não existia, foi dada pelo Dec.Lei n.º 837/76.
59. Esse diploma foi elaborado pelo Governo e é de natureza substantiva.
60. Pois, esse decreto-lei é inovador e ultrapassa a mera regulamentação.
61. Assim, o Dec.Lei n.º 837/76 e parágrafo único do art.º 8º do Decreto-Lei n.º
39672, de 20/5/54, são inconstitucionais, a partir da entrada em vigor da Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro, o que se alega para todos os legais efeitos.
62. Com o devido respeito pela opinião em contrário, o Douto Acórdão Recorrido, ao fundamentar-se que a 1ª R. podia circular pela fila da esquerda, quando tinha a da direita livre, fez-se uma interpretação errada, do art.º 5º, n.º 3 do C.E., o que colide com os princípios da igualdade, da discriminação, previsto no art.º
13º da C.R.P..
63. Assim, essa interpretação é inconstitucional, o que para os devidos efeitos se alega, conforme Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 391/89, de 17/5/89, in BMJ n.º 387, pág. 625.' Por Acórdão de 1 de Outubro de 1998, o Supremo Tribunal de Justiça julgou a revista improcedente, afirmando para o que agora releva que
'[...] Não interessa, por outro lado, indagar da inconformidade constitucional superveniente da norma do Dec. 837/76, de 29/11, que alterou o art.º 40º, CE, e do parágrafo único do art.º 1º, do DL 39672, de 20/5, uma vez que a regra básica de onde se retirou a culpa da vítima (a de não dever o peão atravessar a via pública sem se assegurar de antemão de que o pode fazer sem perigo de acidente) já constava da primitiva redacção do art.º 40º, CE.' Arguiu a ora recorrente a nulidade deste Acórdão, por 'julgar que foram alegadas conclusões que não foram apreciadas', afirmando ainda, na motivação do respectivo requerimento, que
'[...]
17. No Acórdão em apreço defendeu-se que a infracção ao art.º 5, n.º 3 do C.E. nada tem a ver com a segurança dos peões, o que constitui uma discriminação para estes, o que colide com o princípio da igualdade, previsto no art.º 13º da C.R.P., o que para os devidos efeitos se alega.
18. pois, o cumprimento das regras de trânsito visa a protecção e a segurança, para uma boa fluidez do trânsito em geral e não apenas para os veículos com a exclusão dos peões.
19. A eventual não apreciação das nulidades invocadas constitui uma inconstitucionalidade, o que para todos os efeitos se alega, o que colide com o princípio do acesso ao direito, previsto no art.º 20º da C.R.P..
20. Assim, essa interpretação é inconstitucional, o que para os devidos efeitos se alega, conforme Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 391/89, de 17/5/89, in BMJ n.º 387, pág. 625.'
4. Inconformada com a decisão de indeferimento do assim requerido, nos termos da qual 'os factos relevantes para a fundamentação do acórdão foram todos lá vertidos', 'nenhuma questão deixou de ser tratada', e 'finalmente, a questão da inconstitucionalidade é matéria de julgamento, por isso, deslocada na presente fase do processo', trouxe M. T. recurso de constitucionalidade a este Tribunal, com fundamento em que:
'Com o devido respeito pela opinião em contrário, fez-se uma interpretação errada dos art.ºs 666º, n.º 2 e 668º, al.d) do C.P.C., ao não se apreciarem todas as nulidades, o que colide com o princípio da igualdade, discriminação e do acesso ao direito, previstos, entre outros, respectivamente nos art.ºs 13º e
20º da C.R.P., 7º e 8º da D.U.D.H., o que para os devidos efeitos se alega. O poder conferido ao Juiz de suprir as nulidades da Sentença, por ele proferida, só abrange as Sentenças insusceptíveis de recurso ordinário, pois, de contrário, essa arguição tem de ser feita mediante recurso (AC. do STJ, de 30/7/63, in BMJ, n.º 129, pág. 433). Dão-se como reproduzidas as inconstitucionalidades alegadas nos autos, para todos os efeitos legais.' Por não ter indicado os elementos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, foi dada aplicação ao disposto nos n.ºs 5 e 6 desse mesmo artigo. A recorrente respondeu ao convite de aperfeiçoamento através do requerimento a fls. 415 dos autos, pelo qual acrescentou que pretendia 'ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos art.ºs 5º, n.º 3 do C.E e do Dec. Lei 837/76 e o parágrafo único do art.º 1º do Decreto-Lei n.º 39672, de
20/5/54, com a interpretação que lhe foi aplicada na Douta Decisão Recorrida', defendendo depois que:
'3. A norma do art.º 5º, n.º 3 do C.E violou os princípios constitucionais consagrados nos art.ºs 13º e 20º da C.R.P.
4. A norma do art.º do Dec. Lei 837/76 e o parágrafo único do art.º 1º do Decreto--Lei n.º 39672, de 20/5/54, violou o princípio da competência política e legislativa, previsto no art.º 164º, al. d) da C.R.P.
5. Quanto à norma do art.º 5º, n.º 3 do C.E., os recorrentes não tiveram oportunidade processual, para levantar a questão da inconstitucionalidade, antes de ser proferido o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
6. Pois, a interpretação dada nesse Acórdão à disposição do art.º 5º, n.º 3 do C.E. era imprevisível.
7. Por isso, ao recorrente não é exigível que antevisse a possibilidade de aplicação da norma ao caso concreto, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da decisão.
8. Pois no Douto Acórdão referiu-se que a regra da primeira parte do art.º 5º, n.º 3 do C.E. visa a segura fluidez do trânsito, a pensar no cruzamento dos veículos que circulam em sentido oposto e na ultrapassagem entre os que vão no mesmo sentido. Nada tem a ver com a segurança dos peões, razão porque para a produção do resultado danoso, a infracção releva da importância causal idêntica
à de uma regularíssima ultrapassagem.
9. Assim, essa posição constitui uma discriminação para os peões.
10. Pois, o cumprimento das regras de trânsito visa a protecção e a segurança, para uma boa fluidez do trânsito em geral e não apenas para os veículos com a exclusão dos peões.
11. Assim, neste caso, excepcional, deve ser reconhecido o direito ao recurso da recorrente, conforme tem sido decidido nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 318/89, D.R. 2ª Série de 16/6/89, 329/95 e 521/95.' Nas alegações apresentadas neste Tribunal, concluiu a recorrente:
'1ª A 1ª R. era obrigada a seguir pela fila de trânsito da direita, uma vez que a mesma estava livre.
2ªO não cumprimento dessa obrigatoriedade constitui uma contravenção ao art.º 5º n.º 3 do C.E. de 1954, que tem por fim a protecção do trânsito de veículos e peões, e não só de veículos.
3ªEssa contravenção foi causal do sinistro, porque se a 1ª R. circulasse pela fila da direita, passava e não atropelava a vítima.
4ª Quando a vítima iniciou a travessia, a 1ª R. estava a 300 metros do local do embate, pelo que a 1ª R. foi também a única culpada do sinistro, por seguir com excesso de velocidade.
5ª A vítima não teve qualquer culpa no sinistro, nem poderia adivinhar que o veículo lhe surgisse, inesperadamente, em contravenção às regras de trânsito.
6ªA 1ª R. tinha uma presunção legal de culpa a ilidir, o que não ilidiu, pelo que é também responsável a título de culpa presumida.
7ª A vítima não infringiu as regras do art.º 40º do C.E., por ter feito a travessia normal e por as regras desse artigo serem inconstitucionais, conforme se alegou.
8ª Nas 1ª, 3ª, 4ª, 6ª, 7ª, 8ª, 10ª, 12ª e 14ª conclusões das alegações de recurso foram alegados factos que interessavam para proferir o Acórdão.
9ª Porém, essas conclusões não foram apreciadas, o que também constitui uma nulidade, o que para todos os efeitos se alega.
10ª Foram infringidas as normas dos art.ºs 666º n.º 2, 668º al. d) do C.P.C. e
5º n.º 3 do C.E. de 1954, e do Dec. Lei 837/76 e o parágrafo único do art.º 1º do Dec. Lei 39672 de 20/5/54, o que colide com os princípios constitucionais previstos nos art.ºs 13º, 20º e 164º al. d) da C.R.P.. Nestes termos e nos demais de direito deve julgar-se inconstitucional a interpretação aplicada às normas dos art.ºs 666º n.º 2, 668º al. d) do C.P.C. e
5º n.º 3 do C.E. de 1954, e do Dec. Lei 837/76 e o parágrafo único do art.º 1º do Dec. Lei 39672 de 20/5/54, nos Doutos Acórdãos Recorridos e por consequência os mesmos serem revogados.' Notificadas para responderem, querendo, às alegações apresentadas pela recorrente, as recorridas não apresentaram quaisquer alegações no prazo legal. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos A) Delimitação do objecto do recurso
5. No Acórdão deste Tribunal n.º 379/96, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Julho de 1996 escreveu-se:
'[...] o requerimento de interposição do recurso limita o seu objecto às normas nele indicadas (cfr. o artigo 684º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, conjugado com o artigo 75º-A, n.º 1, desta lei), sem prejuízo, obviamente, de esse objecto, assim delimitado, vir a ser restringido nas conclusões da alegação (cfr. o citado artigo 684º, n.º 3). O que, na alegação (recte, nas suas conclusões), o recorrente não pode fazer é ampliar o objecto do recurso antes definido.' Sucede que, tendo a recorrente sido notificada, nos termos dos n.º 5 e 6 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, para indicar 'todos os elementos exigidos pelos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo', fê-lo abandonando a invocação da inconstitucionalidade dos artigos 666º, n.º 2 e 668º, alínea d) do Código de Processo Civil. Ora, a propósito da relação que intercede entre o requerimento de interposição do recurso e a peça processual que resulta do cumprimento do despacho de aperfeiçoamento proferido pelo relator do processo ao abrigo daquela norma legal, escreveu-se no Acórdão n.º 20/97 (publicado no Diário da República, II série, de 1 de Março de 1997):
'[...] cabe perguntar se no requerimento de aperfeiçoamento pode restringir-se o conjunto de normas que se quer ver apreciadas pelo Tribunal. A resposta deve ser afirmativa, não só porque esse é o sentido normal do despacho de aperfeiçoamento previsto no referido artigo 75º-A, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional para o caso de requerimentos vagos ou genéricos, mas também por analogia com o já aludido poder reconhecido às partes de restringir o objecto do recurso nas conclusões das alegações (n.º 3 do artigo 684º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional).' Em face deste princípio (aliás reiteradamente enunciado: cfr., v.g., os Acórdãos n.ºs 71/92, 323/93, 10/95 e 35/96, publicados na II série do Diário da República, de 18 de Agosto de 1992, 22 de Outubro de 1993, 22 de Março de 1995 e
2 de Maio de 1996, respectivamente), logo resulta que a apreciação de constitucionalidade que este Tribunal há-de fazer não poderá incidir sobre as normas dos artigos 666º, n.º 2 e 668º, alínea d), do Código de Processo Civil, como requerido nas conclusões das alegações produzidas junto deste Tribunal.
6. O facto de as restantes normas identificadas nessas alegações se referirem a diplomas cuja apreciação da constitucionalidade foi pedida no requerimento de interposição de recurso, não é, por si só, suficiente para as tomar, na sua totalidade, como objecto do recurso de constitucionalidade.
É que, como ainda recentemente se escreveu no Acórdão n.º 529/98, publicado no Diário da República, II série, de 25 de Fevereiro de 1999, e é pacificamente entendido, o conhecimento dos recursos de constitucionalidade interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º – como é o caso –, 'exige a presença, cumulativa, dos três requisitos de tal tipo de recurso, a saber: suscitação, durante o processo, de uma inconstitucionalidade normativa; aplicação dessa norma, com o sentido alegadamente inconstitucional, como ratio decidendi do caso; esgotamento prévio dos recursos ordinários à disposição do recorrente.' Vejamos se, no caso sub iudicio, estão preenchidos tais requisitos, sendo certo que à recorrente se não abrem outras vias de recurso que não o recurso de constitucionalidade, pelo que se dá por verificado o último dos requisitos referidos - a saber, o da prévia exaustão dos recursos ordinários.
7. Adiantemos desde já que, fosse qual fosse o sentido da decisão deste Tribunal Constitucional sobre a questão de constitucionalidade do 'Dec. Lei n.º 837/76 e o parágrafo único do artigo 1º do Dec. Lei n.º 39672, de 20/5/54' ('a partir da entrada em vigor da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro'), sempre se manteria a decisão do Acórdão recorrido, razão pela não se tomará conhecimento do recurso quanto a estas normas. Vejamos porquê. A ora recorrente suscitou, durante o processo – mais especificamente, na conclusão 9ª das alegações de recurso para a Relação de Lisboa e no ponto 61º das relativas ao recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça –, a questão de constitucionalidade do 'Dec. Lei n.º 837/76 e o parágrafo único do artigo 1º do Dec. Lei n.º 39672, de 20/5/54'. Acontece, porém, que, apesar de a ratio decidendi do julgado nesse Supremo Tribunal – e que conduziu à decisão de não provimento do recurso de revista – residir no juízo de que '[...] na infracção, pela vítima, do n.º 4, do art.º
40º, do CE, se encontra a causa, se não exclusiva, pelo menos concorrente do evento danoso', bem andou o tribunal recorrido quando concluiu:
'[...] Não interessa, por outro lado, indagar da inconformidade constitucional superveniente da norma do Dec. 837/76, de 29/11, que alterou o art.º 40º, CE, e do parágrafo único do art.º 1º, do DL 39672, de 20/5, uma vez que a regra básica de onde se retirou a culpa da vítima (a de não dever o peão atravessar a via pública sem se assegurar de antemão de que o pode fazer sem perigo de acidente) já constava da primitiva redacção do art.º 40º, CE.' Assim, de nada aproveitará à recorrente um eventual julgamento de inconstitucionalidade, pois que à inconstitucionalidade do 'Dec. Lei n.º 837/76 e do parágrafo único do artigo 1º do Dec. Lei n.º 39672, de 20/5/54' não se seguiria que a decisão recorrida decidisse diferentemente. Ao invés, tal julgamento levaria (como se reconheceu na decisão recorrida) a que se devesse aplicar essa mesma regra que 'já constava da primitiva redacção do art.º 40º, CE', sendo que uma tal decisão de aplicação de direito infra-constitucional não
é – com o limite do respeito do âmbito da decisão que fosse eventualmente tomada por este Tribunal – sindicável em face de parâmetros constitucionais. Se, como é o presente caso, a fundamentação relevante do Acórdão recorrido continuaria a ser a que referimos – nela sempre tendo aplicação também, como ratio decidendi, a norma que se extrai do conjunto normativo que a recorrente imputa de organicamente inconstitucional –, é pura questão académica conhecer da questão de constitucionalidade suscitada. Ora, o recurso de constitucionalidade, como tem sido repetidamente acentuado pela jurisprudência constitucional (vejam-se as hipóteses versadas nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 577/95 e 1089/96, inéditos), desempenha uma função instrumental, no sentido de só deverem ser conhecidas as questões de constitucionalidade quando o seu julgamento possa influir na decisão a proferir no processo principal. Não existe, por isso, um dos pressupostos essenciais à admissibilidade do recurso de constitucionalidade relativamente às normas em questão – mesmo que este Tribunal se pronunciasse sobre essa parte do objecto do recurso, sempre careceria tal julgamento de utilidade instrumental, já que, fosse qual fosse o sentido da decisão sempre esta seria, face ao seu objecto, insusceptível de alterar o julgamento da matéria de fundo –, e não pode este Tribunal tomar conhecimento da questão de constitucionalidade do 'Dec. Lei n.º 837/76 e do parágrafo único do artigo 1º do Dec. Lei n.º 39672, de 20/5/54'.
8. Resta a questão da não invocação, durante o processo, da inconstitucionalidade da norma do artigo 5º, n.º 3 do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 39672, de 20 de Maio de 1954, no preciso sentido que este requisito assume em processo constitucional: invocação da inconstitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo, de modo a que a intervenção do Tribunal Constitucional se possa fazer, verdadeiramente, em via de recurso (cfr. entre a jurisprudência constante sobre a matéria, os Acórdãos n.ºs 90/85 e 94/88, publicados no Diário da República, II série, de 11 de Julho de 1985 e de 22 de Agosto de 1988, respectivamente). Alega a recorrente que não teve oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade da norma do artigo 5º, n.º 3 do Código da Estrada anteriormente, já que a decisão recorrida se configurava, nessa parte, como uma verdadeira 'decisão-–surpresa' (pontos 5º, 6º e 7º da resposta ao convite de aperfeiçoamento do requerimento de recurso). Se assim fosse, estaríamos perante uma daquelas situações, excepcionais, em que se dispensaria o ónus de impugnação da constitucionalidade durante o processo, mesmo perante a exigência de uma estratégia processual adequada (cfr. Acórdãos n.ºs 479/89, e 232/94, publicados no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992 e de 22 de Agosto de 1994), segundo a qual cabe às partes antecipar a aplicação de quaisquer normas jurídicas em relação às quais tenham objecções de constitucionalidade, em ordem a criar os pressupostos necessários à sua impugnação constitucional. Há, contudo, que constatar que in casu esse problema não se põe, pois que a ora recorrente suscitou durante o processo, mais concretamente na conclusão 18º das alegações de recurso para o tribunal a quo, a inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 5º, n.º 3 do Código da Estrada, alegadamente colidente 'com os princípios da igualdade, da discriminação, previsto no art.º
13º da C.R.P.', Concluindo-se, assim, que a questão de constitucionalidade não deixou de ser suscitada durante o processo, tendo inclusivamente o tribunal recorrido (a fls.
390, último parágrafo, dos autos) feito aplicação da norma do n.º 3 do artigo 5º do Código da Estrada, com o sentido alegadamente inconstitucional referido pela recorrente, importa conhecer de fundo a questão de constitucionalidade suscitada. B) Apreciação do recurso
9. O presente recurso tem, portanto, por objecto a norma do artigo 5º, n.º 3 do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 39672, de 20 de Maio de 1954, cujo teor é o seguinte:
'Artigo 5º
(Regras gerais)
3. Os veículos e animais transitarão sempre o mais próximo possível das bermas ou passeios, mas a uma distância destes que permita evitar qualquer acidente. Exceptuam-se os casos em que, no mesmo sentido, sejam possíveis duas ou mais filas de trânsito, desde que não haja lugar na fila mais à direita ou tenham de utilizar-se as da esquerda para ultrapassar ou mudar de direcção.
...' Segundo a recorrente,
'[...] no Douto Acórdão referiu-se que a regra da primeira parte do art.º 5º, n.º 3 do C.E. visa a segura fluidez do trânsito, a pensar no cruzamento dos veículos que circulam em sentido oposto e na ultrapassagem entre os que vão no mesmo sentido. Nada tem a ver com a segurança dos peões, razão porque para a produção do resultado danoso, a infracção releva da importância causal idêntica
à de uma regularíssima ultrapassagem.
9. Assim, essa posição constitui uma discriminação para os peões.
10. Pois, o cumprimento das regras de trânsito visa a protecção e a segurança, para uma boa fluidez do trânsito em geral e não apenas para os veículos com a exclusão dos peões.' Argumenta ainda a recorrente que 'ao contrário do que se refere no Douto Acórdão, a obrigatoriedade de seguir pela fila mais à direita, tem por fim não perturbar o trânsito em geral, ou seja, o de veículos e peões, e não apenas facilitar as ultrapassagens'. A questão que agora constitui objecto de recurso relaciona-se assim com o problema do âmbito de tutela tido em vista pelo legislador da norma ora impugnada. Ora, é sabido que não compete ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a correcção do entendimento, em si mesmo, por que optou a decisão recorrida, mas apenas decidir se a norma que se extrai desse preceito, na interpretação efectivamente seguida na decisão recorrida, está ou não de acordo com a Constituição, nomeadamente com o princípio da igualdade invocado pela recorrente. Sobre esta questão adianta-se que a interpretação por que optou, nesta parte, a decisão recorrida – no sentido de que 'a regra da primeira parte do n.º 3, do art.º 5º, referida, visa a segurança e a fluidez do trânsito, a pensar no cruzamento dos veículos que circulam em sentidos opostos e na ultrapassagem entre os que vão no mesmo sentido', 'nada tendo a ver com a segurança dos peões'
–, do preceito supra referido não consagra qualquer solução arbitrária ou desproporcional, ou violadora do princípio da igualdade. A solução adoptada adoptada na decisão recorrida – se é ou não a melhor sob o ponto de vista da interpretação do direito infra-constitucional, não interessa aqui apreciar – é susceptível de ser justificada à luz de critérios materiais de decisão que afastam a alegação de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade. De facto, só em relação à segunda parte da norma do n.º
3 do artigo 5º ('...mas a uma distância destes que permita evitar qualquer acidente') mencionado é que poderá pôr-se em causa a interpretação levada a cabo pela decisão recorrida. Deve, porém, atentar-se em que parece decorrer da própria letra da lei que o legislador teve em vista com tal norma evitar que o veículo atinja quem vá pela borda do passeio, do lado direito da faixa de rodagem, isto é, quem siga junto ao trânsito automóvel que circula na faixa que lhe está reservada. Assim, poderia sustentar-se que, indo o peão junto ao lado esquerdo da faixa de rodagem, ou mesmo pela faixa de rodagem, quando atropelado, tal norma se não aplique. Esta conclusão, que restringe o âmbito de tutela aos peões que circulem pelo passeio, do lado direito da faixa de rodagem, poderia, aliás, defender-se pelo argumento, literal, de os dois segmentos ora em análise fazerem parte de uma mesma frase, como que decorrendo o segundo, de forma necessária, do primeiro. De toda a forma, não interessa apurar se essa é a melhor interpretação, pois o que não oferece dúvida é que as situações dos automobilistas e dos peões que circulem junto a um ou outro lado da faixa de rodagem são materialmente desiguais – quer do ponto de vista dos cuidados que a circulação dos peões de um ou outro lado da estrada impõe aos automobilistas que circulam num dado sentido, quer pela maior proximidade dos peões em relação aos veículos quando aqueles se encontrem junto ao lado direito, e pela maior proximidade dos veículos a um ou outro lado da faixa de rodagem, quer, ainda, pelas maiores ou menores possibilidades de visão que terão do trânsito automóvel que se aproxima. E pode, pois, justificar-se uma interpretação da qual decorra um tratamento também diverso no que toca aos deveres de cuidado impostos aos automobilistas para protecção dos peões, consoante eles circulem junto a um ou outro (ou mesmo num ou noutro) lado da faixa de rodagem – maxime para valoração da sua culpa, quando, como infelizmente ocorreu no presente caso, é atropelado, com consequências trágicas, um peão que se encontrava no lado esquerdo da faixa de rodagem. Não consubstancia, pois, violação do princípio constitucional da igualdade a interpretação da regra de circulação rodoviária contida na primeira parte do n.º
3 do artigo 5º do Código da Estrada que entende visar ela, por um lado, facilitar a ultrapassagem dos veículos que seguem atrás (sobretudo quando os veículos que vão à frente têm velocidades mais limitadas) e, por outro lado, garantir a boa circulação daqueles com que se efectue algum cruzamento, e segundo a qual o valor da segurança dos peões que tal norma tutela, no seu segmento final, respeita àqueles que sigam pela borda do passeio do lado direito da faixa de rodagem. Tutela, esta, resultante na medida em que o veículo – em cumprimento da regra que impõe aos condutores a obrigação de transitarem o mais próximo possível das bermas ou passeios do lado direito da faixa de rodagem – deva guardar em relação às bermas o intervalo necessário para evitar qualquer acidente. Em conclusão, sendo ou não a melhor interpretação (de tal não importa agora curar), o entendimento da regra do artigo 5º, n.º 3 do Código da Estrada em questão não se afigura constitucionalmente censurável, desde logo, pela diferença de riscos, resultante da proximidade aos veículos, entre os peões que circulem de um ou outro lado da faixa de rodagem. Ao não proteger igualmente o valor da segurança dos peões independentemente de estes circularem ou não no passeio ou na faixa de rodagem, e do lado da faixa de rodagem mais ou menos próximo do trânsito automóvel em causa, o legislador do n.º 3 do artigo 5º, ora em apreciação, não consagrou qualquer solução arbitrária ou desproporcional, violadora do princípio da igualdade, previsto no artigo 13º da Lei Fundamental. E não procede, assim, a alegada inconstitucionalidade. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide: a. Não tomar conhecimento do recurso no que respeita às normas dos artigos
666º, n.º 2 e 668º, alínea d), do Código de Processo Civil e às normas do Decreto-Lei n.º 837/76 e do parágrafo único do artigo 1º do Decreto-Lei n.º
39672, de 20 de Maio de 1954; b. Não julgar inconstitucional a norma do artigo 5, n.º 3 do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º ´39672, de 20 de Maio de 1954; c. Em consequência, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que diz respeito à questão de constitucionalidade; d. Condenar a recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 15 UC. Lisboa, 11 de Janeiro de 2000 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida