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Procº n.º 51/98
1ª Secção Cons. Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: I – RELATÓRIO:
1. - Em acção intentada contra J. B. e OUTROS pela CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, em que foi pedido, com fundamento em impugnação pauliana, o reconhecimento do direito da Autora à restituição ao património dos primeiros Réus de determinadas fracções de dois prédios urbanos e do direito de aí proceder à respectiva execução, foi proferida decisão pelo Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, que julgou a acção procedente, nos seguintes termos: 'pelo exposto, atentas as disposições legais citadas e ainda o artigo 616º do Código Civil, julgo a acção procedente e, consequentemente, declaro ineficaz em relação
à Autora a doação feita pelos réus J. B. e mulher M. M. à ré M. E., (...) podendo a Autora executar as aludidas fracções, na medida do seu crédito sobre os réus doadores'.
Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 24 de Abril de 1996, decidiu negar a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Os réus, não se conformando com o assim decidido interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (adiante, STJ). Nesta instância, por acórdão de 18 de Fevereiro de 1997, foi negada a revista pedida pelos originários Réus.
Contra esta decisão reagiram os recorrentes, arguindo a nulidade do acórdão, arguição essa indeferida por acórdão de 26 de Junho de
1997. Notificados deste acórdão, os réus vieram interpor recurso para o Tribunal Pleno e simultaneamente para o Tribunal Constitucional. Entretanto, após diversos incidentes, os réus interpuseram mais dois recursos para o Tribunal Constitucional, tendo sido todos admitidos, no STJ, por despacho do relator de
10 de Dezembro de 1997, exarado a fls. 294. q
2. – Destes recursos, apenas foi admitido, neste Tribunal, o recurso interposto a fls. 272, dos autos, tendo, quanto aos restantes sido proferida uma decisão sumária que decidiu deles não tomar conhecimento.
Relativamente a esta decisão sumária, os recorrentes reclamaram para a conferência, reclamação indeferida pelo Acórdão n.º 715/98, contra o qual foi suscitado um pedido de aclaração, indeferido pelo Acórdão n.º
144/99, cujo trânsito implicou o trânsito definitivo da referida decisão sumária.
3. – Assim, o presente recurso reporta-se apenas às normas dos artigos 610º, alínea b) e 616º, do Código Civil (CC) e ao artigo
661º, n.º1, do Código de Processo Civil (CPC), enquanto permitem que uma decisão jurisdicional condene em algo qualitativamente diverso do pedido formulado – assim foi delimitado o recurso no respectivo requerimento de interposição, que define o seu âmbito.
É certo que os recorrentes, nas suas alegações não só acrescentam uma norma – o artigo 611º do CPC - , como também separam a interpretação que antes tinham definido como acima se escreveu em duas diferentes formulações.
Como o âmbito do recurso tem de ser definido no respectivo requerimento de interposição, os recorrentes podem certamente restringir o que definiram, mas não podem alargá-lo, depois, nas alegações do recurso (artigo 684º, n.º2, segunda parte, do CPC).
Assim, definida no requerimento de interposição do presente recurso, a fls. 286 dos autos, o seu âmbito, tal como ficou atrás descrito no ponto 3, não podem agora os recorrentes acrescentar a esse âmbito, a norma do artigo 611º do CPC nem a interpretação que fazem relativamente à questão da prova dos créditos.
Nestes termos, o recurso em causa abrange apenas a norma conjugada dos artigos 610º, alínea b) e 616º do Código Civil e do artigo 661º, n.º1, do CPC, enquanto interpretadas no sentido de permitirem que uma decisão jurisdicional condene em algo qualitativamente diverso do pedido formulado.
Quer os recorrentes quer a entidade recorrida apresentaram alegações. Os primeiros, em jeito de conclusões que seguidamente fundamentaram e sustentaram, começaram por afirmar que 'a procedência do presente recurso assenta nas seguintes razões principais':
1. O Acórdão recorrido extraiu dos arts. 610º, b), e 611º do Código Civil
(CC) a seguinte norma jurídica que aplicou à factualidade sub judice: na impugnação pauliana o autor não tem de especificar e provar o exacto montante do seu crédito na data do negócio impugnado; apesar disso, nos termos do art. 611º do CC, cabe aos RR. O ónus de provar que nessa data possuía bens penhoráveis de igual ou maior valor.
2. Esta norma viola frontalmente os princípios da igualdade e do acesso ao Direito e aos tribunais tutelados nos arts. 13º e 20º da Constituição da República Portuguesa (CRP), designadamente os sub-princípios do contraditório e da imparcialidade dos tribunais.
3. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que o Acórdão recorrido confirmou, interpretou o art. 661º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), conjugado com o art. 616º, n.º 1, do CC, no sentido de estes artigos permitirem que, deduzido em acção pauliana o pedido de restituição material e jurídica de bens ao património do devedor alienante de modo a que estes possam ser executados a decisão final pode ser a de considerar o negócio impugnado ineficaz relativamente ao autor-credor, podendo este executar os bens transmitidos no património do terceiro-adquirente.
4. Uma norma com este conteúdo e eficácia é inconstitucional por violação da tutela conferida pelos princípios da igualdade e do direito fundamental de acesso ao Direito e aos tribunais (artigos 13º e 20º da Constituição), designadamente o sub-princípio processual do contraditório.
Pelo seu lado, a Caixa Geral de Depósitos recorrida, não formulou conclusões, mas argumentou no sentido da rejeição do presente recurso, alegações que confirma depois de notificada da junção das conclusões do recorrente.
Cumpre apreciar e decidir.
4. – Vejamos, antes de mais, o teor das disposições em que se inserem as normas que constituem objecto do presente recurso.
Do Código Civil:
'Artigo 610º
(Requisitos gerais) Os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes: a. .....; b. Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.' Artigo 616ª
(Efeitos em relação ao credor)
1. Julgada procedente a impugnação, o credor tem o direito á restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.
2. O adquirente de má fé é responsável pelo valor dos bens que tenha alienado, bem como dos que tenham perecido ou se hajam deteriorado por caso fortuito, salvo se provar que a perda ou deterioração se teriam igualmente verificado no caso de os bens se encontrarem no poder do devedor.
3. O adquirente de boa fé responde só na medida do seu enriquecimento.
4. Os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido.'
Do Código de Processo Civil: Artigo 661º
(Limites da condenação)
1.A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.
2[...]'.
Segundo os recorrentes, tendo a Caixa Geral de Depósitos formulado, na petição inicial, o pedido no sentido de lhes ser reconhecido o direito à restituição das fracções autónomas doadas pelos 1ºs recorrentes à 2ª recorrente, Maria Filomena, e o direito de as aí executar, não podia a decisão de primeira instância – depois confirmada nas instâncias seguintes – declarar a ineficácia em relação à Autora – a Caixa - , da referida doação.
Uma tal interpretação dos normativos acima transcritos viola os artigos 13º e 20º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Será, de facto, assim?
5. – De acordo com o que se escreve nas alegações dos recorrentes, '(...) o Tribunal excedeu os limites impostos por lei à sua actividade jurisdicional e ao seu poder de condenar, com infracção do princípio do dispositivo que assegura à parte circunscrever o thema decidendum e do princípio do contraditório, pois não permitiu aos réus a defesa relativamente ao conteúdo da condenação, gerando-se assim uma situação de indefesa claramente impedida pelo princípio da igualdade e pelo direito de acesso aos Tribunais e ao direito constitucionalmente tutelados nos artigos 13º e 20º CRP'.
Segundo os recorrentes, a igualdade das partes não foi respeitada na medida em que os ora recorrentes não tiveram oportunidade de se pronunciarem sobre a questão da ineficácia do doação que acabou por ser reconhecida na decisão da primeira instância. Por outro lado, o princípio do direito de acesso ao direito e aos tribunais e o sub-princípio do contraditório também não foram respeitados na medida em que não tiveram oportunidade de exercerem o seu direito de defesa quanto a tal aspecto da lide.
Porém, só aparentemente é assim. Vejamos.
A Caixa autora da acção peticionou a sua procedência e que lhe fosse 'reconhecido o direito à restituição das mencionadas fracções autónomas ao património dos primeiros RR. e o direito de aí as executar, com todas as consequências legais, nomeadamente no que ao registo predial tange'.
A sentença julgou a acção procedente e, consequentemente, julgou ineficaz em relação à A. (Caixa) a doação feita pelos Réus, podendo a A. executar as aludidas fracções, na medida do seu crédito sobre os Réus doadores. De acordo com o entendimento dos recorrentes, a Caixa teria pedido a nulidade do negócio mas a sentença decidiu-se pela sua ineficácia relativa.
Porém, é manifesto que a Caixa nunca peticionou a nulidade da doação das fracções em causa: limitou-se a pedir que lhe fosse reconhecido o direito à restituição das fracções ao património dos doadores e o direito de aí as executar, ou seja, a pedir o reconhecimento dos efeitos da impugnação pauliana (artigo 616º, do Código Civil).
Aliás, quanto aos efeitos da impugnação não existe unanimidade na doutrina, predominando todavia a orientação que confere à impugnação pauliana uma natureza pessoal, no sentido de que através dela se faz apenas valer um direito de crédito à restituição, na medida exigida pelo interesse da pessoa que a exerce (cf. Almeida Costa, 'Direito das Obrigações',.
5ª Edição, Almedina, pág. 728). 'A mesma ideia inspira a directriz que assinala
à impugnação pauliana a consequência da ineficácia, relativamente ao credor que a utiliza, do acto sobre que recair' – refere o mesmo Autor (ob. cit., pág.
729).
A nossa lei, ao consagrar no artigo 616º do Código Civil que ao credor que impugnou com êxito o acto do devedor cabe o direito à restituição dos bens, na medida do seu interesse (nº1), bem como as outras soluções constantes dos outros número do preceito, mostram que o legislador se afastou do sistema da nulidade (que era o do anterior código - artigo 1044º).
É assim claro que não tendo a Caixa, em qualquer momento do processo, pedido a nulidade do acto que impugnou e não sendo o novo sistema consagrado no Código Cvil o da invalidade mas o de um direito pessoal de restituição, tem de reconhecer-se que a sentença proferida não condenou nem em quantidade diversa nem em objecto diverso do que foi pedido.
Mas a interpretação normativa feita na decisão recorrida viola o princípio da igualdade na vertente da igualdade de armas ou o princípio de acesso ao direito enquanto proibição de indefesa?
Este Tribunal tem afirmado (Acórdão n.º249/97, in
'Diário da República', 2ª série, de 17 de Maio de 1997), que o processo de um Estado de direito, incluído o processo civil, tem de ser um processo equitativo e leal no qual cada uma das partes há-de poder expor as suas razões de facto e de direito perante o tribunal antes que este tome a sua decisão. As partes têm de poder exercer o seu direito de defesa em condições de inteira igualdade: nisto se analisa o princípio do contraditório que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º da CRP.
Ora, no caso em apreço, não se vê que a interpretação normativa adoptada pela decisão recorrida afecte o direito de defesa dos recorrentes ou o seu direito ao contraditório, não contendendo também com a igualdade de armas.
Com efeito, sempre os réus e ora recorrentes puderam exercer os seus direitos processuais ao longo da tramitação processada nas diferentes instâncias, puderam alegar o que entenderam em total igualdade de armas processuais.
Também não ocorre nos autos qualquer situação de proibição de indefesa, consistente na privação ou limitação do direito de defesa da parte perante os órgãos judiciais durante a discussão das questões que lhes respeitem.
A decisão, ao optar pela declaração de ineficácia da doação feita pelos réus e pela possibilidade de execução dos créditos da autora na medida dos seus interesses mais não fez do que optar pela posição doutrinal dominante e que se encontra legalmente consagrada, sem que uma tal interpretação tenha afectado o direito de defesa dos réus.
Improcede, assim, o presente recurso de constitucionalidade.
III – DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida na parte impugnada.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC’s. Lisboa, 12 de Janeiro de 2000 Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida