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Processo nº 416/99
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.1. - JM e CF, identificados nos autos, foram condenados, por acórdão de 25 de Novembro de 1998, do Tribunal do Círculo de Coimbra, em processo comum, com intervenção do Colectivo, como autores materiais de um crime previsto e punido pelo artigo 24º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 28/84, de
20 de Janeiro, cada um na pena de seis meses de prisão, substituída por multa à taxa diária de 2.000$00 e na multa de 120 dias, à mesma taxa diária – multas desde logo declaradas perdoadas, na sua totalidade, nos termos do disposto no artigo 8º, nº 1, alíneas b) e c), da Lei nº 15/94, de 11 de Maio.
1.2.1.- Inconformados, do assim decidido recorreram os arguidos para o Supremo Tribunal de Justiça.
Nas conclusões da respectiva motivação escreveram:
'B1: O Tribunal a quo não procedeu ao ‘exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal’, como lhe é imposto pelo nº 2 do artº 374º do Código de Processo Penal. Com efeito, B2: a referida exigência é já aplicável a todos os processos, mesmo antes de 1 de Janeiro de 1999, por a referida norma dever ser considerada interpretativa, por não conter matéria inovadora, antes se tendo limitado a ultrapassar as divergências entre a doutrina e a jurisprudência acerca da amplitude do dever de motivação. B3: sendo certo que só a interpretação e aplicação do âmbito de tal dever nos termos acima preconizados se compagina com o efectivo asseguramento do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, resultante dos comandos do artº 14º, nº
5 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e 32º, nº 1, parte final da Constituição da República, na redacção da Lei Constitucional nº 1/97. Com efeito, B4: só perante o escrupuloso conhecimento de tal normativo, na respectiva redacção actualizada, em caso de recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, como é aquele dos autos, o referido alto Tribunal poderá sindicar minimamente a assunção da matéria de facto de forma a alargar a esta os seus poderes de revista. Como assim, B5: resultaram violados, por inobservância dos respectivos comandos, os artigos
374º, nº 2 do Código de Processo Penal – na redacção da Lei nº 59/97, de 25 de Agosto – o artº 13º, nº 1, do Código Civil, o artº 14º, nº 5 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (aprovado para vigorar na ordem jurídica interna pela Lei nº 29/78) e o artº 32º, nº 1, parte final da Constituição da República. B6: sendo certo que os recorrentes discordam da assunção da matéria de facto feita pelo Tribunal recorrido. Por outro lado. B7: o aresto em apreço padece de insuficiência de matéria de facto para a prolação de uma conscenciosa decisão de meritis, ao não caracterizar individualizadamente as funções que estavam adscritas a cada um dos recorrentes. B8: as quais, de acordo com a natureza das coisas e as regras da experiência teriam, forçosamente de ser diferenciadas. B9: vício que pode ser sindicado pelo Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo do disposto no artº 410º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal, o que terá de determinar a anulação do julgamento, com reenvio do processo para outro Tribunal para que se proceda a novo julgamento. Finalmente, B10: a não concordarem V.as Ex.as com as anteriores considerações, então deverá o acórdão proferido nos autos ser revogado, por os recorrentes terem actuado sem dolo nem negligência e, por conseguinte, serem absolvidos. Com efeito B12: o acórdão recorrido procedeu a inexacta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 14º e 15º do Código Penal, pois sendo embora certo que os recorrentes, maxime o recorrente MATIAS não ter agido com o cuidado devido, a verdade é que, quer um, quer o outro, ao confiarem no conteúdo dissuasor da
‘comunicação interna’ referida nos autos, não chegaram sequer a realizar a possibilidade dos géneros em questão serem destinados ao consumo público.'
1.2.2.- O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 22 de Abril de 1999, negou provimento ao recurso.
Concretamente e na parte que interessa – pois outros recursos houve – aquele Tribunal pronunciou-se do seguinte modo:
'Começam os recorrentes neste recurso, por aduzir que o Tribunal não procedeu a um exame criterioso da prova produzida e que, ademais, não teria explicado por que deu mais relevo a certos depoimentos e outros meios de prova, prejudicando outros. Contudo, neste acórdão e o que constitui uma verdadeira raridade, aconteceu até que a fundamentação da matéria de facto é mais extensa do que a matéria provada, isto evidentemente em termos quantitativos.
É claro que isto poderá não ter significado só por si e se fosse certo que tal fundamentação, embora extensa, não fosse substancial. Mas não: o Tribunal, aludindo circunstanciadamente aos depoimentos prestados pelas testemunhas, indicou a sua razão de ciência e o sentido do respectivo depoimento. Além disso, explicitou claramente o seu raciocínio e a forma como formou a sua convicção e quanto à prova documental, ligou-a às peças constantes do processo. Quanto à prevalência dada a certos depoimentos, isso apenas significa que o Tribunal foi criterioso na selecção dessa prova, pois que é por demais evidente que os depoimentos nunca podem ter igual valor. Ainda quanto á questão da fundamentação: Aconteceu, efectivamente, que o novo Código de Processo Penal, no artigo 374º, nº 2, alude à – ‘indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal’, enquanto que o anterior apenas se referia às – ‘provas que serviram para formar a convicção do Tribunal’. Terá havido uma alteração essencial do regime? Cremos que não porque quando o Tribunal indica as provas que formaram a sua convicção, sem acrescentar mais nada, está logo implicitamente a fazer o seu exame crítico. Isto é: quando menciona que as provas foram tais e tais, está implicitamente a seleccionar aquelas provas que serviram de base à sua convicção e a dizer que foram aquelas e não outras. Mas normalmente e em tantos e tantos arestos que vimos e apreciámos no anterior regime processual, o Tribunal indica sempre o sentido da prova, o seu valor e alcance, fosse ela testemunhal, documental ou pericial. E é isso, no fundo o exame crítico das provas. Foi isso, também, que fez o acórdão recorrido o qual deixou claro e explícito o seu exame sobre a prova testemunhal, o mesmo acontecendo com a prova documental. Convém, ainda, acrescentar a este propósito que se se entender pelo referido
‘exame crítico’ algo de mais transcendental do que aquilo que nós considerámos
‘hic et nunc’, então terá de se reconhecer que o acórdão recorrido, proferido em
25-11-98, não estaria submetido ao novo regime processual, dado o disposto no nº
2, do artigo 6º da Lei nº 15/98, de 25 de Agosto.
É, pois, de afastar por completo qualquer nulidade decorrente da violação do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.'
1.3.1.- Mantendo-se inconformados, os dois arguidos interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional daquele aresto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal (CPP), na redacção da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, na interpretação no mesmo dada e, como tal, aplicada ao caso concreto.
Considerando que a norma, na redacção actual, exige o exame crítico das provas produzidas, assumindo-se interpretativa e não inovadoramente, pelo que, assim, deve ser aplicável a todos os processos, mesmo antes de 1 de Janeiro de 1999, pretendem os recorrentes que a interpretação feita à mesma norma pelo Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de que a apreciação crítica da prova é meramente implícita, viola 'desde logo o nº 1 do artigo 205º da Constituição da República, lido este dispositivo face ao critério matriz do nº 1 do artigo 32º do mesmo diploma', norma esta também violada com essa interpretação, 'ao não assegurar a mesma um efectivo direito ao recurso, mormente nos termos do direito legislado em vigor ao tempo da prolação da decisão da 1ª instância'.
1.3.2.- Notificados para alegarem, fizeram-no oportunamente, assim concluindo:
'B1: A redacção advinda para o disposto no nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, por força da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, nada tem de inovador relativamente àquilo que já anteriormente deveria considerar-se constituir o
étimo de garantia do dever de fundamentação das decisões judiciais. B2: nos exactos termos de uma correcta interpretação do disposto em tal normativo, elemento concretizador do direito consignado no artigo 205º, nº 1 da Constituição da República. Por isso, B3: o inciso que passou a fazer parte de tal normativo do direito legislado constitui um sector meramente interpretativo acrescido a tal norma e, em boa verdade, destinado a exautorar a interpretação a que o Supremo Tribunal de Justiça vinha procedendo quanto à amplitude de dever de motivação das decisões judiciais em matéria penal. B4: assim se dando cabal cumprimento, para que mais dúvidas não fossem cabidas – admitindo-se, sem conceder, que o poderiam ser anteriormente – acerca da referida amplitude. B5: e, do mesmo passo, contribuindo para reforçar o ditame constitucional do direito ao recurso, nos termos da parte final do nº 1 do artigo 32º da Constituição da República. Como assim, B6: o dito inciso do direito legislado assume evidente cariz meramente interpretativo, pelo que deveria ter sido tomado em conta quer pela 1ª instância, quer pelo Supremo Tribunal de Justiça, no momento da prolação dos respectivos acórdãos constantes dos autos. Ora. B7: a interpretação que fez vencimento no acórdão do Supremo Tribunal, já que a questão, em 1ª instância, nem sequer suscitou, nos termos referidos em sede de
‘motivação’ e que aqui se dão por reproduzidos, torna materialmente inconstitucional o nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, mal ferindo o respectivo conteúdo, não só face ao disposto no artigo 205º da Constituição da República B8: como ao nº 1 do artigo 32º deste último diploma, norma à luz da qual os dois normativos acima referidos devem ser lidos, interpretados e aplicados. Como assim, B9: deverão V.as Ex.as declarar inconstitucional a interpretação a aplicação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça do normativo em apreço, não só por se ter recusado a aplicá-lo como ao preconizar que, mesmo que devesse ser aplicado teria de ser interpretado da forma constante do acórdão. Com efeito, B10: a declaração de inconstitucionalidade que se pretende deve ser no sentido de que o artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de que a apreciação crítica da prova é meramente implícita, viola desde logo o nº 1 do artigo 205º da Constituição da República, lido este dispositivo face ao critério matriz do nº 1 do artigo 32º do mesmo diploma, norma esta também violada pela predita interpretação, ao não assegurar a mesma um efectivo direito ao recurso, mormente nos termos do direito legislado em vigor ao tempo da prolação da decisão da 1ª instância.'
1.3.3.- Por sua vez, o magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal contra-alegou, concluindo:
'1º- O objecto do presente recurso tem de considerar-se reportado à norma constante da redacção originária do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal – anterior à emergente da Lei nº 59/98 – já que foi este o preceito legal que o acórdão recorrido claramente considerou aplicável ao caso dos autos.
2º- Não sendo obviamente pertinente pretender discutir, no âmbito do presente recurso de constitucionalidade, se a nova redacção de tal preceito é ou não de considerar ‘interpretativa’ do direito anterior ou discretear sobre a
‘comparação’ entre so regimes originário e actual de tal preceito legal.
3º- Não tendo acórdão recorrido, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, realizado e aplicado a interpretação normativa, alegadamente inconstitucional, especificada pelo recorrente, nomeadamente, nas conclusões da sua alegação (a fls. 430) – já que tal aresto considerou expressamente que o tribunal de 1 instância ‘explicitou claramente o seu raciocínio e a forma como formou a sua convicção’ quanto à prova produzida – não deverá conhecer-se do recurso, por faltar um essencial pressuposto do mesmo.'
1.3.4.- Responderam os arguidos à questão prévia levantada pelo Ministério Público, no sentido do não conhecimento do objecto do recurso, contrariando-a de modo a ser a mesma desatendida.
Em síntese, reiteram que, para o Supremo, a singela indicação das provas na decisão recorrida contém, implicitamente, o respectivo exame crítico e opõem-se à tese sustentada pelo Ministério Público.
1.4. - Recebido os autos neste Tribunal Constitucional, atravessaram os arguidos requerimento em que pedem a remessa dos mesmos ao Supremo Tribunal de Justiça, a fim de aí ser declarado extinto o procedimento criminal, por prescrição.
Os autos foram remetidos àquele Supremo, após despacho do relator, de 7 de Janeiro de 2000 e aí, por acórdão de 17 de Fevereiro seguinte, não se considerou prescrito o procedimento criminal quanto aos recorrentes.
Como, então, se escreveu, ocorreu uma causa interruptiva da prescrição do procedimento criminal, ao ser o arguido notificado do 'despacho de pronúncia ou equivalente, nos termos do apontado artigo 120º, nº 1, alínea c), do CP, o que teve lugar por despacho de 21 de Setembro de 1995, notificação levada a efeito 'muito antes de 16 de Dezembro de 1998' (data em que, segundo os recorrentes, teria ocorrido a prescrição).
Aliás, para o Supremo, sempre essa interrupção da prescrição se verificaria, 'quer se considere aplicável o regime constante do Código Penal de 1982, quer se aplique o regime em vigor instituído pela Lei nº
65/98 e pelas alterações decorrentes do Decreto-Lei nº 48/95, porquanto se se considerar aplicável o regime vigente à data do cometimento dos factos, a prescrição interrompe-se com a notificação ao arguido do despacho de pronúncia ou equivalente, nos termos do artigo 120º, nº 1, alínea c), do Código Penal, proferido em 21-9-95; e se se considerar aplicável o regime actual da interrupção da prescrição do procedimento criminal, também esta se interrompeu com a notificação da acusação, nos termos do artigo 121º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal [rectius: do Código Penal] deduzida em 22-6-95 e seguidamente notificada'.
Sendo certo que, para o Supremo, em qualquer das vias possíveis o procedimento criminal não se extinguira, aquele Tribunal optou, no entanto, pelo aplicação do preceito de 1982, por ser esse o sentido da jurisprudência fixada anteriormente e por não se 'mostrar adequado' aplicar retroactivamente o novo regime.
2.1. - Interpuseram os recorrentes novo recurso para o Tribunal Constitucional, igualmente ao abrigo da alínea b) do nº 1 do citado artigo 70º da lei nº 28/82, pretendendo que se 'declare' a inconstitucionalidade do disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 120º do CP82, na interpretação e aplicação que do mesmo foi feita nos autos, por violadora do disposto no artigo
2º, maxime seu nº 4, do Código Penal de 1982, norma generalizadamente reconhecida como de cariz constitucional, com fundamento no direito legislado.
Admitido o recurso, já neste Tribunal e após despacho do relator, convidando-os a especificar a norma ou princípio constitucionais violados, vieram precisar mostrar-se desrespeitado o princípio constitucional da aplicação do regime penal substantivo que se revele mais favorável ao arguido, convocando o artigo 29º, nºs. 1 e 3, do texto constitucional.
2.2. - As alegações apresentadas em momento oportuno concluiram assim:
'B1: Como decorre dos disposto no artigo 16º da Constituição da República, e é unanimemente reconhecido, o nº 4 do artigo 2º do Código Penal constitui um direito fundamental constante de uma lei. Ora, B2: os diversos momentos ou acontecimentos processuais referidos nas alíneas do nº 1 do artigo 120º do Código Penal de 1982, como factores interruptivos da prescrição do procedimento criminal, são, como o Tribunal Constitucional já reconheceu, importados da caracterização do Código de Processo Penal de 1929. Com efeito, B3: para aquilo que agora especificamente interessa, os nomina iuris ‘despacho de pronúncia’ e ‘despacho equivalente ao de pronúncia’ eram, também eles, provenientes do diploma processual penal da chamada Ditadura Nacional e que aí conheciam os significantes dogmáticos e funcionais que se deixaram acima dilucidados a fs. 6, 7 e 8 da motivação e aqui dados por reproduzidos, brevitatis causa. Por seu lado, B4: o Código de Processo Penal de 1987, sob cujo âmbito os presentes autos foram tramitados, desconhece a expressão ‘despacho equivalente ao de pronúncia’, sendo certo que o despacho de pronúncia é uma das formas pela qual pode terminar a fase de instrução e, por força do qual o arguido é submetido a julgamento. B5: nada tendo a ver, pois, na sua teleologia com o seu homólogo de 1929, até por encerrarem fases processuais completamente dispares na economia de ambos os diplomas. Ademais, B6: a expressão compósita ‘despacho de pronúncia ou equivalente’, acriticamente utilizada no acórdão sub iuditio é que não só não existe, como nunca existiu na ordem jurídica nacional. Por conseguinte, B7: o Supremo Tribunal de Justiça, no seu mencionado acórdão, tirado já no
âmbito do Código de Processo Penal de 1987, mas fazendo apelo a um conceito processual material proveniente do respectivo predecessor, e assim julgando não se verificar a interrupção do procedimento criminal, atribuiu ao disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 120º do Código Penal de 1982 um conteúdo de sentido que o inconstitucionaliza. B8: face ao disposto ao nº 4 do artigo 2º do Código Penal, pois essa expressão compósita ou em alternativa é insusceptível de aplicação a feitos penais iniciados após 1 de Janeiro de 1998. Com efeito, B9: não tendo ela ou elas curso no direito português em vigor, não deve fazer-se-lhes apelo. B10: raciocínio que deve ser reexpendido a propósito das causa de interrupção da prescrição introduzidas na nossa lei penal a partir de 1 de Outubro de 1995, não só por serem mais desfavoráveis para os recorrentes, mas por constituírem normas de direito processual-material que não existiam no momento da prática dos factos alegadamente delituosos. Finalmente, B11: decorre precípuo que o disposto na tal alínea c) do assinalado artigo 120º
é inconstitucional, não só por violar o nº 4 do artigo 2º do Código Penal, como os números 1 e 3 do artigo 29º do diploma fundamental B12: pelo que o acórdão recorrido deve ser revogado, a fim de que o Supremo Tribunal de Justiça aplique o direito em consonância com a declaração de inconstitucionalidade que se postula.'
2.3. - Finalmente, o Ministério Público, ao contra-alegar, rematou do seguinte modo:
'1- Não implica violação do princípio da aplicação da lei mais favorável ao arguido a aplicação do regime dos actos interruptivos da prescrição do procedimento criminal que vigorava à data da prática do facto, em consequência de o Tribunal ter constatado que a aplicação retroactiva da lei nova, em vigor sobre tal matéria, conduziria identicamente a considerar interrompido o procedimento criminal, em nada beneficiando o arguido.
2- Não implica qualquer raciocínio de cariz ‘analógico’ o que se traduz em qualificar, para efeito de aplicação da norma constante do artigo 120º, nº 1, alínea c) do Código Penal de 1982, o despacho a que alude o artigo 311º do Código de Processo Penal como sendo – atenta a sua estrutura e típica funcionalidade – ‘equivalente à pronúncia’, dada a similitude de natureza e função processual entre tal despacho e o que estava previsto no artigo 390º do Código de Processo Penal de 1929, e que merecia inquestionavelmente tal qualificação.
3- Na verdade, em qualquer daqueles dois despachos está cometida ao juiz
(nomeadamente nos casos em que, como no dos presentes autos, não houve instrução) uma liminar apreciação da acusação e o saneamento do processo, assegurando o seu trânsito para a fase de julgamento – sem necessidade de exaustiva apreciação de fundamentos da acusação e de expressa descrição da matéria de facto, que caracteriza o despacho de pronúncia.
4- Tal interpretação normativa não implica, deste modo, violação do princípio da legalidade.
5- Pelo que deverá improceder o presente recurso.'
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
1. - O recurso do acórdão de 22 de Abril de 1998
1.1. - O objecto deste recurso respeita à interpretação que, na tese dos recorrentes, o Supremo Tribunal de Justiça deu à norma do nº 2 do artigo 374º do CPP (na redacção da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto) e, como tal, a aplicou no aresto em sindicância.
O preceito, ao enunciar os requisitos da sentença, impõe que ao relatório se siga a fundamentação, constando esta da enumeração dos factos provados e não provados e de 'uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção do tribunal' (sublinhado agora).
A alteração consistiu em introduzir, no texto anterior, o inciso relativo à exigência de exame crítico das provas, dispondo a Lei nº
59/98 a entrada em vigor a 1 de Janeiro de 1999 da nova formulação (ou melhor, das alterações introduzidas por esse diploma no Código de Processo Penal).
Defendem os recorrentes a natureza meramente interpretativa dessa norma, desprovida de conteúdo inovador e, como tal, imediatamente aplicável a todos os processos, mesmo aos instaurados anteriormente àquela data. Nesta leitura, o aditamento mais não seria do que o modo que o legislador adoptou para ultrapassar as divergências existentes, nos planos jurisprudencial e doutrinário, quanto á amplitude do dever de motivação.
1.2. - Houve, com efeito, o propósito de acolher no processo penal um regime de fundamentação próximo do já consagrado para o processo civil, decorrente do disposto no nº 3, parte final, do artigo 659º do Código de Processo Civil, na redacção do artigo 1º do Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro.
Pretendeu-se, desse modo, ir ao encontro da garantia constitucional do dever de fundamentação, que se deseja não se configurar dogmática e autoritariamente mas sim de forma racionalmente compreensível e, do mesmo passo, comportando um juízo sobre a própria validade das provas.
O exame crítico das provas credibiliza a decisão, viabiliza o recurso e permite revelar 'o raciocínio lógico do tribunal relativamente à própria decisão', como foi sublinhado na Conferência Parlamentar sobre a Revisão do Código de Processo Penal, em 7 de Maio de 1998 (cfr. intervenções de Luís Nunes de Almeida, Germano Marques da Silva e Eduardo Maia Costa, inter alia, in Código de Processo Penal – Processo Legislativo, vol. II, tomo II, ed. da Assembleia da República, 1999, págs. 68, 85, 86, 90 e 95 e segs.).
E, na verdade, ocupando essa garantia do dever de fundamentar um lugar central no sistema de valores, nos quais se deve inspirar a administração da justiça no Estado democrático moderno (cfr. Michele Taruffo,
'Notte sulla Garanzia Costitutionale della Motivazione', in – Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LV, 1979, págs. 29 e segs.), a fundamentação das sentenças penais, especialmente das condenatórias, deve ser susceptível, como se escreveu já em acórdão deste Tribunal, 'de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da livre apreciação pelo julgador, devendo também indicar as razões de direito que conduziriam à decisão concretamente proferida' (cfr. acórdão nº 680/98, publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Março de 1999, que acrescenta ser este o núcleo central da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais).
1.3. - Ora, independentemente de se cuidar de saber se o inciso enxertado no texto do nº 2 do artigo 374º tem natureza meramente interpretativa ou se se assume inovadoramente, o certo é que entende-se que o Tribunal a quo – como resulta das passagens transcritas do acórdão recorrido, a este respeito suficientemente concludentes – não aplicou a norma em causa com o sentido interpretativo impugnado pelos recorrentes – ou seja, com o sentido de que a
(singela) mencionação das provas que serviram para formar a convicção do julgador (já) contém em si, de modo implícito, o respectivo exame crítico.
Com efeito, está naturalmente subtraída à competência do Tribunal Constitucional a censura à apreciação feita pelo Tribunal recorrido no tocante à amplitude da fundamentação convocada. Só lhe cabe apreciar se o entendimento substantivo das normas pertinentes se mostra constitucionalmente conforme – o que passa pela utilização desse entendimento na ratio decidendi.
A esta luz, não procede a tese dos recorrentes que imputa ao Supremo a interpretação questionada: o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, ao considerar crer não ter havido alteração essencial do regime porque 'quando o Tribunal indica as provas que formaram a sua convicção, sem acrescentar mais nada, está logo implicitamente a fazer o seu exame crítico', situa-se no plano da retórica que, no caso, mais não releva do que um mero obter dictum.
Contrariamente ao que pretendem os recorrentes, a frase não pode ser descontextualizada, para assim dela poderem especular.
É que o Supremo, em momento anterior, deixara expresso que se aludira circunstanciadamente, na fundamentação, aos depoimentos prestados pelas testemunhas, indicando-se a sua razão de ciência e o sentido do respectivo depoimento. E que se explicitara claramente o raciocínio e a forma como a convicção fora alcançada, articulando-se a prova documental às peças constantes do processo.
Ou seja, considerou o Supremo não ter ocorrido – como efectivamente não ocorreu –, no acórdão condenatório, uma mera enunciação dos meios de prova produzidos em audiência, pois que se especificaram as provas relevantes e se relacionaram as mesmas com os elementos constantes dos autos, o que assume um juízo prudencial baseado nas regras da experiência, nas palavras do acórdão nº 607/98, publicado no Diário da República, II Série, de 3 de Março de 1999, e preenche a função endo-processual da fundamentação (cfr. Michele Taruffo, loc. cit.), que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e ainda colocar o Tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente (ver, a este propósito a jurisprudência deste Tribunal, citando-se, entre outros, os acórdãos nºs. 55/85, 310/94, 382/98,
546/98, 102/99, 135/99 e 288/99, publicados no Diário citado, II Série, de 28 de Maio de 1985, 29 de Agosto de 1994, 11 de Dezembro de 1998, 15 de Março, 1 de Abril, 7 de Julho e 22 de Outubro, todos de 1999, respectivamente – para a redacção anterior do preceito, mas com integral pertinência no caso vertente).
1.4. - Por outras palavras, a ratio decidendi do acórdão não assentou na interpretação da norma do nº 2 do artigo 374º do CPP no sentido de que a apreciação crítica da prova é meramente implícita. Na verdade, no exame feito à decisão da 1ª instância, aquele Tribunal foi explícito no sentido de considerar a mesma como substancialmente motivada, explicando e revelando claramente a forma e o processo como se formou a livre convicção do Colectivo.
Assim, tudo apontaria, se houvesse conhecimento de mérito, para concluir estar a fundamentação em consonância com os propósitos do legislador ao exigir o exame crítico das provas e, bem assim, com o critério plasmado no citado acórdão nº 680/98.
Sucede que nem a esse ponto se deve chegar. Como bem observa o magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal (ao defender a manifesta inviabilidade do recurso interposto) com o objecto que lhe foi atribuído, 'o critério ou padrão normativo usado efectivamente pelo Supremo para sindicar da suficiência da fundamentação da decisão proferida pelo colectivo sobre a matéria de facto não coincide com a interpretação especificada pelos recorrentes, ao delimitar o objecto do recurso de inconstitucionalidade que interpuseram'.
Ouvidos a propósito desta questão prévia, os recorrentes não lograram desmerecer esse entendimento.
Não se conhece, em face do exposto, do objecto do recurso do acórdão de 21 de Abril de 1998.
2. - O recurso do acórdão de 17 de Fevereiro de 2000
2.1. - Nos termos do nº 4 do artigo 2º do Código Penal, 'quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado'.
Pretendem os recorrentes, com o segundo recurso, obter a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 120º, nº 1, alínea c), do CP, na sua redacção originária, tal como foi interpretada e aplicada pelo Supremo, por considerarem que essa interpretação desrespeita aquela norma do mesmo passo que viola o princípio constitucional que impõe a aplicação do regime penal substantivo que mais favorável se mostre ao agente, com suporte nos nºs. 1 e 3 do artigo 29º da CR (rectius, nº 4 do artigo 29º).
Consoante afirmam, o aresto, ao socorrer-se do texto de
1982, optou pela versão mais desfavorável aos recorrentes: «seja qual for a boa interpretação a conferir à expressão 'despacho de pronúncia ou equivalente' – escrevem – uma coisa é certa: o Código Penal, na sua redacção em vigor a partir de 1 de Outubro de 1995, não elenca, agora no artigo 121º, o referido acto processual como causa interruptiva da prescrição'. Assim, entre as duas concepções em questão, 'a nova e a velha', o Supremo, ao escolher esta última, violou o princípio constitucional de aplicação (retroactiva) da lei penal mais favorável ao agente.
A questão de constitucionalidade subjacente desdobra-se, pois, em duas vertentes: uma, na medida em que o Tribunal recorrido entendeu ser de observar o texto de 1982, prende-se com o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao arguido que, assim, teria sido violado ao não se aplicar retroactivamente o teor da norma resultante da alteração de 1995; outra teria a ver com o princípio da tipicidade e legalidade na interpretação da lei penal – o aresto recorrido, ao interpretar o segmento normativo 'despacho de pronúncia ou equivalente', terá procedido a uma interpretação analógica dessa expressão, que o Código de Processo Penal de 1929 acolhia mas não pode ser acriticamente adoptada face ao de 1987.
2.2. - A argumentação desenvolvida no acórdão não permite afirmar ter sido postergado o princípio da lei penal mais favorável ao arguido.
É que, como a transcrição feita revela, o procedimento criminal sempre teria de considerar-se interrompido, seja em conformidade com a versão inicial do Código de 1982, seja de acordo com as alterações que posteriormente lhe foram introduzidas.
Ou seja, entendeu-se ser aplicável ao caso concreto o regime decorrente da primitiva redacção, pelo que o prazo prescricional do procedimento criminal se interrompeu com a notificação aos arguidos do 'despacho de pronúncia ou equivalente', não sendo de observar o texto actual, fixado pela Lei nº 65/98. E compreende-se porquê: a aplicação desta última redacção implicaria considerar-se interrompida a prescrição com a notificação ao arguido da acusação [cfr. actual alínea b) do nº 1 do artigo 121º], ocorrida obviamente em momento anterior e, como tal, configurando-se mais desfavoravelmente aos arguidos.
Assim sendo, forçoso é concluir que não sendo o novo regime mais favorável, mesmo que aplicado retrospectivamente, e sempre ocorrendo interrupção do prazo prescricional, não interessa conhecer da questão equacionada, uma vez que sempre se manteria a decisão no sentido de se considerar interrompido o prazo prescricional.
III
Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento dos recursos.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça, devida por cada um, em 5 unidades de conta.
Lisboa, 17 de Janeiro de 2001 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida