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Processo n.º 204/10
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., S.A., notificada do acórdão n.º 18/2011, proferido nos presentes autos de impugnação judicial da liquidação do IRC relativa ao ano de 2008, e pelo qual se decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 5º da Lei n.° 64/2008, de 5 de Dezembro, por violação do princípio da não retroactividade da lei fiscal, vem requerer a reforma do acórdão por lapso manifesto, nos termos do artigo 169º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil, e, bem assim, pedir a sua aclaração, com os seguintes fundamentos:
Nos termos do douto acórdão cuja aclaração aqui se vem muito respeitosamente requerer, é “inteiramente transponível para o caso vertente” a doutrina sancionada no acórdão n.° 399/2010, desse mesmo Venerando Tribunal.
Ora com o devido respeito que muito e sincero é, só pode decorrer de um lapso manifesto a directa transposição da doutrina sufragada neste último acórdão para a situação em causa nos presentes autos, acarretando a procedência do recurso.
Senão vejamos,
Do disposto no acórdão cuja doutrina se pretende transpor decorre que o IRS (imposto em causa nestoutro processo) é “um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento recebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos recebidos num determinado ano. O que significa que só no final do ano de 2010 se pode apurar a taxa do imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere” (sublinhado nosso, sob parte do acórdão 399/2010).
Ora, é indubitavelmente oposto a este o caso da tributação autónoma em sede de IRC.
De facto,
Apesar de a tributação autónoma dos encargos em questão nos autos se achar formalmente integrada no Código do IRC, ela está mais próxima, nas suas características determinantes, dos impostos de obrigação única do que dos impostos de formação sucessiva como o IRC, desde logo por ter um facto tributário distinto, pois não se refere ao rendimento apurado em determinado período, mas antes a certas e determinadas despesas, cada uma por si considerada, doutrina pacífica e inquestionada e que bem resulta da tese de doutoramento do Exmo. Senhor Professor Dr. João Sérgio Ribeiro, intitulada “Tributação Presuntiva do Rendimento — um contributo para reequacionar os métodos indirectos de determinação da matéria colectável”.
É que, ao passo que no IRC — como no IRS — a base tributável só é efectivamente conhecida no final do período de tributação e constitui a síntese de várias operações com relevo fiscal, a tributação autónoma que incide sobre os referidos encargos torna-se irreversível a partir do momento em que os sujeitos passivos neles incorrem, não podendo ser anulada por via de proveitos posteriores ou quaisquer outras vicissitudes. Em termos simplistas: feita a despesa (facto) os pressupostos do tributo (incidência objectiva, subjectiva e taxa) verificam-se instantânea e irremediavelmente.
Quer isto dizer que, quando paga € 1.000,00 de gasolina, uma empresa sabe logo ser inevitável o pagamento de tributação autónoma, no montante de € 50,00 euros, ainda que esse pagamento só tenha lugar no ano seguinte, ainda que tenha posteriormente lucros ou prejuízos incalculáveis, ainda que cesse posteriormente a actividade...
Assim, o aumento dessa tributação para € 100,00, com a entrada em vigor de lei nova posterior, afecta operações com relevo tributário directo e individual e já totalmente concluídas, pois que a lei entra em vigor quando o quantum tributário dos encargos anteriores já era absolutamente imutável e imune a eventos subsequentes.
Com efeito, a tributação autónoma concretiza um verdadeiro imposto de obrigação única sobre o consumo, de formação imediata, ao contrário do que sucede com o IRS ou o IRC, impostos de formação sucessiva, cujo apuramento se faz a final, isto é, a 31 de Dezembro do respectivo ano e cujo quantum é sempre mutável até a essa data.
Na tributação autónoma, o facto tributário é instantâneo, ou seja, os seus efeitos — o dispêndio e a aplicação da taxa — ocorrem e esgotam-se num preciso momento, o momento em o gasto é incorrido, não havendo, ao invés dos impostos de formação sucessiva, qualquer determinação/correcção da matéria colectável, a final.
E, se dúvidas não há de que assim o é, a aplicação desta nova taxa a factos ocorridos em data anterior à sua entrada em vigor consubstancia uma verdadeira e efectiva retroactividade autêntica, uma vez que se está a aplicar a lei nova a factos tributários, instantâneos, anteriores à sua entrada em vigor, que se produziram e esgotaram, na sua totalidade, ao abrigo da lei antiga.
Esta retroactividade autêntica encontra-se abrangida pelo normativo constitucional aqui em análise, pelo que a tentativa de aplicação desta taxa a factos ocorridos em data anterior a 6 de Dezembro — data da entrada em vigor da Lei que altera a dita taxa —, viola, de modo flagrante, o princípio constitucional da não retroactividade da lei fiscal.
E é isto mesmo o que resulta da transposição para o específico caso dos autos da doutrina do douto acórdão n.° 399/2010, razão pela qual, com todo o respeito, atribui a Recorrida a lapso manifesto a conclusão pelo provimento do recurso por transposição directa do referido acórdão, cuja doutrina douta e sabiamente plasmada do aresto acarretaria, pelo contrário, a oposta conclusão atentos os contornos factuais bem expostos nos autos.
O confronto da aludida diferença entre o tributo autónomo em causa e o apuramento do rendimento em IRC e IRS é suficiente para, a contrario, se inferir, para lá de qualquer dúvida, que a jurisprudência-fundamento do Tribunal Constitucional integra na proibição da retroactividade fiscal do n° 3 do artigo 103° da CRP as situações em que o facto tributário gerador já se formou totalmente ao abrigo da lei antiga:
“Em suma, dos trabalhos preparatórios da revisão constitucional de 1997 retira-se, por um lado, que o legislador da revisão apenas pretendeu incluir, no n.° 3 do artigo 103.° da CRP, a proibição da retroactividade autêntica, própria ou perfeita da lei fiscal, o que não é contrariado pela letra do preceito, uma vez que o texto constitucional apenas se refere à natureza retroactiva tout court. Por outro lado, resulta igualmente dos trabalhos preparatórios, de forma cristalina, que não se pretenderam Integrar no preceito as situações em que o facto tributário que a lei nova pretende regular não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes continuando a formar-se na vigência da lei nova, pelo menos, quando estão em causa impostos directos relativos ao rendimento (como é claramente o caso dos presentes autos).” (negrito nosso) (-)
A visão da recorrida sobre o problema da retroactividade da lei fiscal está em linha com a interpretação vertida pelos Exmos. Conselheiros neste acórdão, que veio de forma sabiamente fundamentada pôr fim a um sem número de querelas doutrinárias em torno da inconstitucionalidade de normas fiscais feridas de mera retrospectividade, ie. que se aplicam a situações em que o facto jurídico está ainda em formação no momento da sua entrada em vigor.
Mas não é essa a situado dos autos, por todos os motivos já atrás assinalados e que não é demais vincar: no momento em que ocorre uma despesa sujeita a tal tributação, gera-se imediatamente a obrigação de pagar a correspondente tributação autónoma, a qual vai acabar por ser efectivamente liquidada em Maio do ano seguinte, momento em que se faz o mero somatório de todas as despesas do ano e se paga o correspondeste imposto.
Nos autos, assiste-se a uma retroactividade intermédia (-) ou de segundo grau, cuja proibição nem sequer levanta discussão doutrinal, apenas se enunciando o problema da retroactividade de terceiro grau (-) ou mínima (-) nos termos em que o TC tão doutamente fez no dito acórdão:
“Na doutrina, Autores há que consideram que o âmbito de aplicação do artigo 103.°, n.° 3, CRP abrange somente a retroactividade autêntica e não a imprópria ou “inautêntica” (Casalta Nabais, Direito Fiscal, p. 147; Rui Guerra da Fonseca, Comentário à Constituição Portuguesa, II volume, coordenação de Paulo Otero, pp. 872 e segs., Américo Fernando Brás Carlos, Impostos, p. 145 e segs.), enquanto outros mostram mais simpatia pela posição contrária, como é o caso de Paz Ferreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo II, Coimbra, 2006, p. 223, seguindo a posição de Diogo e Mónica Leite de Campos e Jorge Bacelar Gouveia).”
Em face do exposto, não resulta claro para a ora recorrida — quiçá por inabilidade sua que não se põe de parte — a conclusão do acórdão aqui em questão, de que, por transposição da doutrina plasmada no já citado acórdão n.° 399/2010, se conceda provimento ao recurso e se revogue a decisão recorrida, pois que — com a devida vénia — a doutrina cuja transposição se pretende só poderá acarretar a negação de provimento ao recurso e a manutenção da decisão recorrida.
É que sendo totalmente oposta a situação dos autos àquela que se encontrava sub judice no processo do douto acórdão n.° 399/2010, só pode a doutrina neste plasmada acarretar solução também oposta.
Crê, pois, a Recorrida e ora Requerente que, salvo o devido respeito, ocorreu manifesto lapso na qualificação jurídica da situação em discussão nos presentes autos, o que determinou a o entendimento e decisão de ser aqui transponível e aplicável a doutrinado Ac. 399/2010.
É que sendo totalmente oposta a situação dos autos àquela que se encontrava sub judice no processo do douto acórdão n.° 399/2010, só pode a doutrina neste plasmada, a manter-se válida e merecedora de adesão, como doutamente entendido, acarretar aqui solução também oposta.
É por esta razão e com base no que vem de ser dito que — com todo o respeito que muito e devido é — vem a Recorrida aos autos requerer a Vs. Exas. se dignem esclarecer as seguintes dúvidas, que não podem deixar de se lhe suscitar perante o acórdão aqui em questão:
i. Deve inferir-se do Acórdão sub judice, não obstante o atrás enunciado, que é entendimento dos Exmos. Juízes Conselheiros que uma despesa/encargo que seja desembolsada por uma empresa como a recorrida em data anterior à entrada em vigor da lei em causa (6 de Dezembro de 2008) e que é base de sujeição da tributação autónoma é um facto gerador dessa tributação autónoma de formação sucessiva que só se completa no termo do exercício, ie. a 31/12/2008-
ii. Se assim é, então é entendimento dos Exmos. Juízes Conselheiros que tal como no IRS e no IRC, vicissitudes que ocorram posteriormente à realização da despesa incidente de tributação autónoma podem alterar os elementos que formam o facto gerador, a saber, elemento objectivo (matéria e taxa (-)) e subjectivo ou se, ao invés, após a verificação dos mesmos apenas se irão produzir os seus efeitos, ie. a liquidação (mera soma do imposto incidente sobre as despesas efectuadas) e o pagamento-
iii. Se o entendimento for este último, não é verdade que existe uma contradição insanável entre esse mesmo entendimento e a jurisprudência vertida no Acórdão nº 399/2010, na medida em que neste se propugna integrarem-se na proibição da retroactividade fiscal do nº 3 do artigo 103° da CRP as situações em que o facto tributário gerador já se formou totalmente ao abrigo da lei antiga, o que não é seria o caso dos rendimentos em IRS cujas taxas foram alteradas-
E assim, em face de todo o exposto, analisadas estas questões, como aqui muito respeitosamente se requer, eventualmente sempre com seu douto suprimento, a reapreciação da qualificação jurídica que dos factos foi efectuada, decidindo-se a final, atenta a sua natureza totalmente oposta à da factualidade em apreço no processo que deu origem ao Ac. 399/2010, em sentido precisamente contrário ao que foi decidido, pela inconstitucionalidade da aplicação da alteração legislativa produzida pela Lei 64/2008 ás despesas em causa incorridas no exercício de 2008 e negando consequentemente provimento ao recurso.
Por outro lado, e sem prescindir,
Ainda que se conclua, não ter carácter retroactivo a Lei 64/2008 a que se referem os presentes autos, ainda assim — dizíamos — temos por inequívoco que tal Lei fere directamente o disposto na Lei Geral tributária, que no seu artigo 12° dita que as normas tributárias se aplicam “aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos”
Ora, dúvidas não existem de que a aplicação da nova taxa de tributação autónoma aos encargos incorridos desde o início do exercício de 2008, pretende aplicar norma tributária a factos anteriores à sua entrada em vigor, razão pela qual contraria a Lei Geral Tributária.
Em face do exposto, sendo a Lei Geral Tributária uma lei que apresenta materialmente valor reforçado (atente-se o disposto no seu Titulo I com força geral para aplicação à totalidade do universo jurídico-tributário) cumpre determinar, nos termos da alínea c) do n.° 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, a ilegalidade da aplicação da Lei 64/2008 aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor, pelo que aqui se requer, com a devida vénia, tal pronúncia.
Nestes termos, requer respeitosamente a Vs. Exas., ao abrigo do disposto na alínea a) do n° 2 do artigo 669° do CPC aplicável ao presente por via do disposto no artigo 69° da Lei do Tribunal Constitucional, se dignem esclarecer o sentido do douto acórdão dos autos, nomeadamente quanto às questões que suscitou à Recorrida e que acima se expuseram, assim daí se concluindo por diferente qualificação jurídica dos factos em causa e reformando em consequência o acórdão aqui em causa, com o que se fará como sempre inteira e sã Justiça!
O Exmo Magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido de que poderia ter fundamento o pedido de reforma do acórdão com base no disposto no artigo 669º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil, porquanto se está no caso perante uma tributação autónoma e não procederia a analogia com o acórdão n.º 399/20109, em que se baseou o julgamento de não inconstitucionalidade.
Cabe apreciar e decidir.
2. Nos presentes autos de impugnação judicial da liquidação do IRC relativa ao ano de 2008, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga recusou a aplicação da norma do artigo 5.º da Lei n.° 64/2008, de 5 de Dezembro, por violação do princípio da não retroactividade fiscal consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, na medida em que essa disposição determinou a retroacção de efeitos a 1 de Janeiro de 2008 em relação à nova redacção dada ao artigo 8l.°, n.º 3, alínea a), do CIRC, que agravou de 5% para 10% a taxa de tributação autónoma incidente sobre despesas de representação e encargos com viaturas ligeiras de passageiros.
Em recurso de constitucionalidade, interposto pelo magistrado do Ministério Público ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, o Tribunal Constitucional, através do acórdão ora reclamado, além do mais, julgou não verificada a inconstitucionalidade material por aplicação da doutrina do acórdão n.º 399/2010, que firmou o entendimento segundo o qual legislador da revisão constitucional de 1997, que introduziu a actual redacção do artigo 103º, n.º 3, apenas pretendeu consagrar a proibição da retroactividade autêntica da lei fiscal, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga.
Para assim concluir, o acórdão reclamado considerou que a situação dos autos é similar à analisada no mencionado acórdão n.º 399/2010, porquanto também aí se «não declarou a inconstitucionalidade de normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei», situação essa que se considerou ser correspondente à de retroactividade inautêntica, não coberta pela regra do artigo 103º, n.º 3.
A similitude detectada pelo acórdão reclamado tem, por outro lado, como pressuposto necessário, como se depreende de diversas outras passagens, que a Lei n.º 64/2008, através da nova redacção dada à alínea a) do n.º 3 do artigo 81º do CIRC, operou um agravamento da taxa de tributação de encargos que são tidos como custos de exercício para efeitos de IRC e que se enquadra no procedimento de liquidação desse mesmo imposto, ainda que sob a designação de taxa de tributação autónoma.
Vem agora a reclamante alegar que o acórdão incorreu em lapso manifesto de qualificação jurídica, e que ao caso não era aplicável a doutrina do acórdão n.º 399/2010, porquanto apesar de a tributação autónoma dos encargos em questão se achar formalmente integrada no Código do IRC, ela está mais próxima, nas suas características determinantes, dos impostos de obrigação única do que dos impostos de formação sucessiva como o IRC, desde logo por ser um facto tributário distinto.
Deve começar por dizer-se que o lapso manifesto que justifica a reforma do acórdão nos termos previstos no artigo 669º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil, pressupõe que se tenha adoptado, de uma forma evidente, patente e virtualmente incontroversa, uma solução jurídica errónea no julgamento da questão de direito. Só assim se justificando que, com sacrifício da imutabilidade das decisões judiciais não passíveis de recurso, se dê oportunidade ao tribunal de alterar o julgado em benefício da realização da justiça material (Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra, 1999, págs. 444-445) .
No caso concreto, o pretenso lapso manifesto não é mais do que - embora a reclamante não o mencione - a consequência de o tribunal, decidindo por maioria, ter divergido do entendimento expresso no voto de vencido de um juízes que compõem a secção, no qual, de facto, se invoca da inaplicabilidade ao caso do acórdão n.º 399/2010 por se estar perante uma imposição fiscal que é materialmente distinta da tributação em IRC embora formalmente inserida na liquidação desse imposto.
No entanto, o facto de ter sido formulado um voto de vencido não significa que tenha havido erro manifesto quanto à solução jurídica que obteve vencimento, mas apenas que houve discordância entre os juízes quanto ao sentido da decisão, sendo que, em todo o caso, o acórdão não pode deixar de ser lavrado de harmonia com a orientação que tenha prevalecido (cfr. artigo 713º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
É, aliás, de notar que o reclamante, no decurso do processo, e, designadamente, no requerimento de impugnação judicial, sempre colocou a questão de constitucionalidade como sendo reportada a um imposto de obrigação periódica, ou seja, a um imposto, como o caso do IRC, «em que o facto tributário se prolonga no tempo, por um período determinado mais ou menos longo sendo o imposto apurado pelo resultado do conjunto de diversas variáveis verificadas durante todo esse período», vindo a defender que «a lei que entra em vigor a meio do exercício apenas poderá produzir os seus efeitos a partir do início do exercício seguinte, sob pena de inconstitucionalidade por proibida retroactividade» (cfr. artigos 62º e segs. da impugnação judicial, e, especialmente, artigos 69º, 70º e 82º).
E, assim sendo, a reclamante – tal como, aliás, a decisão recorrida - nunca perspectivou a questão de constitucionalidade como reportada a um facto tributário autónomo, como seria de esperar, caso a qualificação jurídica agora sufragada fosse – como se pretende - a única e inquestionável solução de direito plausível.
O que sucede – como logo se entrevê – é que a solução que a reclamante agora propugna como sendo evidente – de tal modo que qualquer outra se encontra inevitavelmente inquinada de erro manifesto - não é senão a opinião que apenas se lhe revelou com a notificação do acórdão a que foi aposto o voto vencido, a que a reclamante agora aderiu por mera estratégia processual por ser a que é mais favorável à sua posição no processo.
A mera discordância relativamente ao julgado não é, no entanto, motivo para reformar a decisão por lapso manifesto – que, aliás, não ocorreu -, pelo que é indeferida a reclamação.
3. A reclamante pretende ainda que o tribunal responda às seguintes interrogações:
(a) Deve inferir-se do Acórdão sub judice, não obstante o atrás enunciado, que é entendimento dos Exmos. Juízes Conselheiros que uma despesa/encargo que seja desembolsada por uma empresa como a recorrida em data anterior à entrada em vigor da lei em causa (6 de Dezembro de 2008) e que é base de sujeição da tributação autónoma é um facto gerador dessa tributação autónoma de formação sucessiva que só se completa no termo do exercício, ie. a 31/12/2008-
(b) Se assim é, então é entendimento dos Exmos. Juízes Conselheiros que tal como no IRS e no IRC, vicissitudes que ocorram posteriormente à realização da despesa incidente de tributação autónoma podem alterar os elementos que formam o facto gerador, a saber, elemento objectivo (matéria e taxa(-)) e subjectivo ou se, ao invés, após a verificação dos mesmos apenas se irão produzir os seus efeitos, ie. a liquidação (mera soma do imposto incidente sobre as despesas efectuadas) e o pagamento-
(c) Se o entendimento for este último, não é verdade que existe uma contradição insanável entre esse mesmo entendimento e a jurisprudência vertida no Acórdão nº 399/2010, na medida em que neste se propugna integrarem-se na proibição da retroactividade fiscal do nº 3 do artigo 103° da CRP as situações em que o facto tributário gerador já se formou totalmente ao abrigo da lei antiga, o que não é seria o caso dos rendimentos em IRS cujas taxas foram alteradas-
Como resulta do disposto no artigo 669º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, as partes podem requerer ao tribunal que proferiu a sentença o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade que ela contenha. A sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes.
No caso, porém, a reclamante não identifica qualquer excerto do acórdão que padeça de obscuridade ou ambiguidade, relativamente ao qual se justifique a aclaração. E limita-se antes a expor algumas dúvidas sobre a doutrina nele sufragada e que pretende ver esclarecidas.
Como é sabido, o Tribunal, proferida a decisão, esgota o seu poder jurisdicional e apenas pode rectificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer ou reformar a sentença nos termos previstos nas disposições dos artigos 667º e seguintes do Código de Processo Civil (artigo 666º, n.º 2). E, por conseguinte, fora desse quadro legal, não tem de prestar quaisquer esclarecimentos adicionais ou resolver as dúvidas que, do ponto de vista das partes, ainda subsistam.
É assim de indeferir o pedido de aclaração.
4. Por fim, vem a reclamante requerer, nos termos da alínea c) do n.° 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, que o Tribunal se pronuncie sobre a ilegalidade da Lei n.º 64/2008 por contrariar o artigo 12º da Lei Geral Tributária, no ponto em que permite a aplicação de normas tributárias a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor.
Cabe referir, a este propósito, que a decisão recorrida se limitou a «declarar materialmente inconstitucional o artigo 5.º da Lei n.° 64/2008, de 5 de Dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de Janeiro de 2008 a alteração ao artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do CIRC», por violação do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
E o Ministério Público veio interpor recurso obrigatório dessa decisão, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, delimitando o objecto do recurso por referência à norma cuja aplicação foi recusada com fundamento em inconstitucionalidade.
Não havia, por isso, que decidir qualquer questão de ilegalidade qualificada, que não foi sequer suscitada.
O pedido formulado subsidiariamente não tem, por conseguinte, qualquer cabimento.
5. Termos em que se decide indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2011.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.