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Processo n.º 663/10
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 504/2010, que ora se transcreve:
“I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente Caixa Geral de Depósitos e recorridos o Ministério Público e Outros, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, do acórdão proferido, em conferência, pela 7ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em 5 de Maio de 2010 (fls. 1867 a 1880), posteriormente complementado pelo acórdão proferido, pelo mesmo Tribunal e Secção, em 7 de Julho de 2010 (fls. 1944 a 1947), que indeferiu o requerimento de arguição de nulidades do primeiro acórdão.
Entende a recorrente que a decisão recorrida aplicou diversas interpretações normativas que padecem de inconstitucionalidade, a saber:
“norma constante do artº 759º, nº 2 do C. Civil, quando interpretada no sentido da sua aplicabilidade aos casos em que não se verifique uma despesa útil realizada na coisa e da qual resulte a prevalência absoluta do direito de retenção sobre hipoteca anteriormente constituída, por violação dos princípios da segurança jurídica, igualdade, proporcionalidade e confiança, ínsitos no princípio do estado de direito democrático, constante do artº 2º da C.R.P.” (fls. 1996);
“norma constante do artº 672º do CPC, quando interpretada no sentido de que a pronúncia do Tribunal da Relação sobre a oportunidade/tempestividade do recurso de apelação não faz caso julgado dentro do processo, por violadora do princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança, ínsito no princípio do estado de direito democrático, constante do artº 2º da C.R.P.” (fls. 1996);
“da norma constante do nº 3, do artº 130º do CIRE, quando interpretada no sentido de que a falta de impugnação da lista de credores reconhecidos faz precludir o direito ao recurso da sentença de graduação de créditos proferida em primeira instância, em matéria de mera aplicação do direito [a]os factos, por violação dos princípios da proporcionalidade, da protecção jurídica e das garantias processuais, consagrados pelos artºs 2º e 20º da C.R.P.” (fls. 1996 e 1997).
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls. 2027), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que algum ou alguns desses pressupostos não estão preenchidos ou que a questão a decidir é simples, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Quanto à primeira questão de inconstitucionalidade normativa, importa notar que o Tribunal Constitucional já dispõe de abundante jurisprudência que afasta a alegada inconstitucionalidade da norma jurídica extraída do n.º 2 do artigo 759º do Código Civil (ver Acórdãos n.º 374/03, n.º 594/03, n.º 22/04, n.º 356/04, n.º 466/04 e n.º 698/05, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), seja com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, seja com fundamento em inconstitucionalidade material.
Ilustrativo a este propósito é o Acórdão n.º 356/04, nos termos do qual se decidiu que:
“9. O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 498/2003 (D.R., II Série, de 3 de Janeiro de 2004), apreciou a conformidade à Constituição da norma da alínea b) do nº 1 do artigo 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, na interpretação que confere aos créditos imobiliários emergentes de contrato individual de trabalho preferência sobre a hipoteca anteriormente constituída, concluindo pela não inconstitucionalidade da norma apreciada. Tal questão tem semelhança com a questão apreciada neste processo.
Nos presentes autos, está em causa um direito de retenção resultante do incumprimento de contrato-promessa de compra e venda de imóvel, por parte da promitente vendedora, no caso em que havia tradição da coisa (do imóvel).
Ora, como resulta, desde logo, do preâmbulo dos Decretos-Leis nºs 236/80 e 379/86, o objectivo prosseguido pela solução agora impugnada é a tutela da defesa do consumidor e das expectativas de estabilização do negócio (muitas vezes incidente sobre a aquisição de habitação própria permanente) decorrentes da circunstância de ter havido tradição da coisa, através da viabilização de ressarcimento adequado e efectivo da frustração culposa de tais expectativas.
Não se trata, pois, de questão idêntica à subjacente aos casos que já foram objecto de jurisprudência do Tribunal Constitucional (nomeadamente, os que dizem respeito à tutela de créditos de entidades públicas, mediante outorga de privilégios creditórios imobiliários gerais, sem qualquer conexão com os imóveis por eles abrangidos – referidos no mencionado Acórdão nº 498/2003). Com efeito, o direito de retenção, associado à tradição da coisa, implica uma conexão com o imóvel ou fracção objecto da garantia real que não existe, por via de regra, nos privilégios creditórios gerais.
Na apreciação da questão de constitucionalidade suscitada nos presentes autos, é decisiva a circunstância, de resto sublinhada pelo tribunal a quo, de o regime impugnado já se encontrar em vigor no momento em que a hipoteca foi constituída. Em face de tal circunstância não se pode concluir, desde logo, pela violação do princípio da confiança relativamente a expectativas anteriormente firmadas.
Para além disto, é ainda de referir que a norma em apreciação no presente recurso opera meramente uma ponderação adequada do interesse das instituições de crédito detentoras de créditos hipotecários na protecção da confiança inerente ao registo predial e do interesse dos consumidores na protecção da confiança relativa à consolidação de negócios jurídicos, notando-se que os mesmos respeitam, em muitos casos, à aquisição de habitação própria permanente.
Nesta perspectiva, também a contenção dos princípios da confiança e da segurança jurídica associados ao registo predial, que resulta da atribuição de preferência ao direito de retenção sobre a hipoteca registada anteriormente, tem a sua justificação na prevalência para o legislador do direito dos consumidores à protecção dos seus específicos interesses económicos (associados, em inúmeros casos, à aquisição de habitação própria, pelo que é ainda convocável o artigo 65º da Constituição) e à reparação dos danos (artigo 60º da Constituição – cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., p. 323).
Em face do que ficou exposto, não se verifica, portanto, a inconstitucionalidade da norma apreciada.”
Neste acórdão, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 755º, nº 1, alínea f), do Código Civil (necessariamente articulada com o disposto no artigo 759º, nº 2, do mesmo diploma). Aderindo a este juízo, mais não resta do que remeter para a respectiva fundamentação, conforme expressamente permitido pelo n.º 1 do artigo 78º-A da LTC. Conclui-se, portanto, pela não inconstitucionalidade da interpretação normativa extraída do n.º 2 do artigo 759º do Código Civil.
4. Quanto à segunda questão de inconstitucionalidade normativa – relativa à interpretação do artigo 672º do CPC –, importa frisar que o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer de interpretações normativas que tenham efectivamente constituído o fundamento determinante da decisão recorrida, conforme resulta claramente do artigo 79º-C, da LTC.
Ora, bem lido o acórdão que indeferiu a arguição de nulidade do acórdão originariamente proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, constata-se que o mesmo não se limitou a adoptar a interpretação normativa reputada de inconstitucional pela recorrente, segundo a qual “a pronúncia do Tribunal da Relação sobre a oportunidade/tempestividade do recurso de apelação não faz caso julgado dentro do processo”. Pelo contrário, a decisão recorrida considerou antes que:
“A argumentação do caso julgado aduzida pela reclamante em defesa da sua pretensão serve na perfeição de suporte da posição defendida no acórdão ora reclamado.
Na verdade, enfileirou o acórdão, em defesa do não conhecimento da graduação de créditos, pelo princípio de que se formou caso julgado sobre a existência dos créditos, seus montantes e qualificação. E chegou-se a essa conclusão com base na constatação, real, de que não tendo sido apresentada qualquer oposição, dentro do prazo, aos créditos, e sua qualificação e montantes, dos credores incluídos na respectiva lista têm de se ter por reconhecidos e não mais podem ser já questionados, limitando-se a sentença, então, a homologar essa lista, atribuindo-se efeito cominatório à falta de impugnações.
Foi e é precisamente a formação de caso julgado que impede(ia) a (re)apreciação da graduação dos créditos, não podendo, por isso mesmo, a Relação tê-la apreciado (…)”. (fls. 1946)
Daqui decorre que a decisão recorrida nunca se limitou a afirmar que “a pronúncia do Tribunal da Relação sobre a oportunidade/tempestividade do recurso de apelação não faz caso julgado dentro do processo” – em sentido tal que não estivesse o Supremo Tribunal de Justiça impedido de alterar tal decisão sobre a oportunidade do recurso –, tendo antes afirmado que tal falta de caso julgado formal decorre, antes, da circunstância de já se ter produzido, em momento processual anterior, força de caso julgado. Sucede, porém, que a recorrente não identificou esta interpretação normativa, mais ampla e desenvolvida, como objecto do presente recurso. Razão pela qual não se pode conhecer do objecto do recurso, quanto a esta parte, por força do limite imposto pelo artigo 79º-C da LTC.
Para além disso, deixe-se registado que ainda se poderia dizer que a recorrente nem sequer cumpriu o ónus de prévia e adequada suscitação da questão de inconstitucionalidade (artigo 72º, n.º 2, da LTC), quanto à segunda questão de inconstitucionalidade, na medida em que poderia antecipar, de modo objectivo, a possibilidade de aplicação da interpretação normativa em causa, em função dos argumentos já anteriormente esgrimidos pelos demais credores reclamantes (ora recorridos). Aliás, no próprio requerimento de arguição de nulidade, a recorrente veio expressamente reconhecer que a tese da preclusão do direito ao recurso já havia sido esgrimida nos autos pelos recorridos (fls. 1933), pelo que não podia ter deixado de antecipar a possibilidade de o tribunal ora recorrido vir a aderir a tal tese alternativa. Optando por apenas suscitar a questão de inconstitucionalidade após a prolação da decisão final, não podia a recorrente vir apenas em sede de requerimento de arguição de nulidade corrigir algo que deveria ter feito, preventiva e alternativamente, em sede de alegações de recurso de revista.
4. Por último, quanto à terceira questão de inconstitucionalidade normativa – apenas invocada em sede de requerimento de arguição de nulidade, conforme, aliás, admitido pela recorrente (fls. 1997) –, importa frisar que o conhecimento de questões de inconstitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional depende da sua prévia e adequada suscitação processual perante o tribunal recorrido, conforme decorre do n.º 2 do artigo 72º da LTC.
Ora, conforme já notado a propósito da segunda questão de inconstitucionalidade normativa, era exigível à recorrente que tivesse antecipado a aplicação da interpretação normativa extraída do n.º 2 do artigo 130º do CIRE, pelo tribunal recorrido. Com efeito, tal questão tinha vindo a ser debatida nos autos desde o recurso originariamente interposto para a segunda instância. As contrapartes da recorrente sustentaram, aliás, a inadmissibilidade do recurso, com fundamento na aplicação daquela mesma interpretação normativa.
Sucede que a recorrente optou por não invocar, “ad cautelam”, em sede de alegações de revista, a inconstitucionalidade daquela interpretação normativa que, segundo padrões objectivos, não podia ter deixado de equacionar como aplicável pelo tribunal recorrido. O poder jurisdicional do tribunal recorrido extinguiu-se com a prolação do acórdão proferido em 5 de Maio de 2010, só podendo aquele conhecer de questões puramente formais, em sede de arguição de nulidade ou de pedido de reforma da decisão. Em regra, não é essa a sede própria para se suscitar e se conhecer de questões de inconstitucionalidade a propósito de normas cuja aplicação à causa já havia sido equacionada nos autos. Apenas no caso de a aplicação de determinada norma se revelar insólita, surpreendente ou imprevisível é que seria justificada a suscitação tardia, em sede de requerimento de arguição de nulidade, de tal questão de inconstitucionalidade.
Não constituindo a aplicação daquela norma uma decisão surpreendente, mais não resta que concluir pela impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso, quanto à terceira questão de inconstitucionalidade, por manifesta falta de suscitação processual adequada, conforme determina o n.º 2 do artigo 72º da LTC.
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, pelos fundamentos supra expostos, decide-se:
não julgar inconstitucional a norma do artigo 759º, nº 2, C.C. na interpretação suscitada pelo recorrente;
não conhecer do objecto do presente recurso quanto às restantes questões.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.”
2. Inconformada, a recorrente apresentou a seguinte reclamação, que ora se resume:
“(…)
Ora nenhum dos invocados arestos versa sobre a possível inconstitucionalidade da norma constante do nº 2 do artº 759º do C.Civil, quando interpretada no sentido da sua aplicabilidade aos casos em que não se verifique uma despesa útil realizada na coisa e da qual resulte a prevalência absoluta do direito de retenção sobre hipoteca anteriormente constituída.
Com efeito, a citada jurisprudência debruça-se sobre a questão da (in)constitucionalidade das normas constantes da alínea f) do nº 1 do artº 755º e do nº 3 do artº 442º, ambas do C. Civil.
Em apenas um dos citados Acórdãos é, sequer, referida a norma do nº 2 do artº 759º do C.Civil (no Acórdão nº 356/04), sendo que, ainda assim, tal referência surge apenas no contexto da apreciação da constitucionalidade da alínea f) do artº 755º, na interpretação que ali é suscitada.
Significa isto que o objecto e fundamento do presente recurso (no que a esta primeira questão concerne) é significativamente distinto do anteriormente conduzido ao Tribunal Constitucional e por este órgão apreciado.
Não só a norma - cuja constitucionalidade na interpretação que lhe é dada se pretende ver apreciada - é distinta, como distinto é o fundamento normativo e histórico que preside ao raciocínio explanado.
A tese da recorrente (retirada, em grande parte, da obra de Cláudia Madaleno “A Vulnerabilidade das Garantias Reais, Coimbra Editora, 2008”) assenta na necessidade de se proceder a uma interpretação actualista do disposto no nº 2 do artº 759º do C.Civil (cuja redacção se mantém a mesma desde a versão original do código) após a introdução da norma constante da alínea f) do artº 755º.
É a ratio do preceito constante do nº 2 do artº 759º que centra a tese da recorrente, propugnando-se que o conflito que o nº 2 do artº 759º pretende resolver, reequilibrando os direitos de credor hipotecário e retentor com despesas realizadas (e incorporadas) na coisa, inexiste nos casos da alínea f), do nº 1, do artº 755º, pelo que, a esta concreta previsão normativa, aquela norma (a do nº 2 do artº 759º) não é aplicável.
Ora, que seja do conhecimento da recorrente, esta tese normativa não foi sufragada pelo Tribunal Constitucional, sendo que não o foi com toda a certeza em qualquer dos arestos citados na decisão sumária de que se reclama.
(…)
Quanto à segunda das questões invocadas (inconstitucionalidade da norma constante do artº 672º do CPC, quando interpretada no sentido de que a pronúncia do Tribunal da Relação sobre a oportunidade/tempestividade do recurso de apelação não faz caso julgado dentro do processo), a mesma não é conhecida por duas ordens de razão.
(…)
Ora, a reclamante não pode conformar-se com qualquer destas duas ordens de razão.
No que à primeira delas concerne, refira-se o seguinte:
a) Em sede de contra-alegações à apelação apresentada pela reclamante CGD, os recorridos (os promitentes-compradores cujo crédito foi graduado acima do hipotecário) invocaram (ainda que timidamente) a extemporaneidade da discussão levantada pela recorrente (não tendo, contudo, arguido caso julgado);
b) A decisão proferida pelo Tribunal da Relação, que julgou improcedente a apelação da CGD, apreciou a tempestividade e oportunidade do objecto do recurso, tendo decidido no sentido do conhecimento do respectivo mérito, porquanto se tratava de matéria exclusivamente de direito;
c) Apesar de vencedores quanto ao mérito do recurso, os recorridos foram, nessa parte (a da apreciação da oportunidade do recurso), vencidos, pelo que nos termos do preceituado no nº 1 do artº 684º-A do CPC (na versão aplicável aos autos) poderiam ter suscitado a ampliação do âmbito do recurso em sede de contra-alegações de revista, não permitindo, assim, que aquela parte da decisão que lhes foi desfavorável transitasse em julgado;
d) Sucede que a ampliação do âmbito do recurso não foi solicitada (os recorridos nem tão pouco apresentaram contra-alegações de revista) pelo que, nessa matéria, a prolação da Relação transitou.
Com o devido respeito, é absolutamente capcioso dizer-se que a questão não está no facto de o STJ entender que a prolação da Relação não fez caso julgado, entendendo antes que a própria Relação não podia ter conhecido da matéria uma vez que a mesma havia transitado em momento anterior. É que, salvo melhor opinião, não interessa se a Relação podia ou não conhecer do objecto do recurso. Interessa sim que ela conheceu e a decisão que fundamentou esse conhecimento não foi objecto de sindicância (mormente em sede de ampliação do âmbito do recurso), tendo, por isso, transitado. Ao desconsiderar decisão transitada do Tribunal da Relação, o STJ está a interpretar a norma constante do artº 672º do CPC no sentido de que a pronúncia do Tribunal da Relação sobre a oportunidade/tempestividade do recurso de apelação não faz caso julgado dentro do processo, ainda que o fundamento desta interpretação resida na (suposta) verificação de caso julgado anterior.
Quanto ao facto de ser exigível à reclamante CGD antecipar a possibilidade de aplicação da interpretação normativa em causa, alegando para o efeito no âmbito do seu recurso de revista, é este raciocínio desprovido de qualquer razoabilidade, quer do ponto de vista jurídico-processual, quer do ponto de vista do juízo da experiência comum.
O recorrente alega quanto à pretensão em que decaiu. O recorrente alega quanto à parte que lhe é desfavorável. O recorrente alega no sentido de obter decisão de direito diversa da recorrida. O recorrente não alega relativamente à parte da decisão que lhe é favorável, antecipando hipotéticos e futuros cenários de conversão da decisão favorável em desfavorável.
Se, no caso dos autos, os recorridos tivessem invocado caso-julgado nas suas contra-alegações de apelação e, por força da pronúncia do Tribunal da Relação, tivessem suscitado, quanto a essa matéria, a ampliação do âmbito do recurso de revista, então aí sim, ao recorrente era exigível que no exercício do seu contraditório antecipasse a possibilidade de os recorridos serem vencedores nesta sua pretensão subsidiária, sendo esse o tempo processualmente útil para invocar inconstitucionalidade.
Mas nada disso sucedeu nestes autos. A decisão do STJ não surge no âmbito de discussão que lhe seja submetida, surgindo sim absolutamente ex novo, sem que as partes tenham suscitado tal pronúncia.
Vale este raciocínio também para o fundamento aduzido pela decisão sumária de que se reclama para justificar o não conhecimento da terceira das inconstitucionalidades invocadas: a da norma constante do nº 3, do artº 130º do CIRE, quando interpretada no sentido de que a falta de impugnação da lista de credores reconhecidos faz precludir o direito ao recurso da sentença de graduação de créditos proferida em primeira instância, em matéria de mera aplicação do direito aos factos.
(…)
Ora, com excepção do requerimento de arguição de nulidade da decisão proferida pelo STJ, não teve a recorrente qualquer momento processual onde a invocação da inconstitucionalidade que pretende ver apreciada tivesse cabimento.
Aquilo a que a decisão sumária de que se reclama apelida de “ad cautelam”, a reclamante denomina de “ad absurdum”. Não pode este Tribunal Constitucional pretender que o recorrente de uma decisão judicial alegue, por “absurda cautela”, relativamente a todas as questões que no seu imaginário possam vir a ser conhecidas pelo tribunal ad quem, ainda que não suscitadas pelas partes no âmbito do concreto objecto do recurso em apreço. Fazê-lo é criar no recorrente um ónus de alegação virtual, não direccionado a uma concreta matéria, constante da decisão recorrida, e que lhe é desfavorável, mas, outrossim, direccionado a uma pluralidade de hipotéticas interpretações sobre matéria favorável, não sindicada (mesmo que subsidiariamente) pela contraparte, num exercício de antecipação por juízo de prognose.”
3. Devidamente notificado, o Procurador-Geral-Adjunto neste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação ora em apreço, nos seguintes termos:
“(…)
8º
No entanto, como se constata das alegações de recurso que a CGD interpôs da sentença de verificação e graduação de créditos do Tribunal Judicial de Barcelos para o Tribunal da Relação de Guimarães, fls. 1091 a 1118, o recorrente, que pretende ver o seu crédito hipotecário graduado à frente dos créditos reclamados pelos promitentes compradores das identificadas a fls. 1091, questiona a inconstitucionalidade da norma constante do nº 2 do artº759º do Código Civil, conjugada com a norma constante da alínea f) do nº 1 do artº 755º do mesmo diploma legal, por violação do princípio da segurança e protecção da confiança jurídicas, ínsitos no princípio de Estado de Direito Democrático, quando interpretada no sentido de que o direito de retenção do promitente comprador com traditio prefere ao credor hipotecário, mesmo quando essa traditio seja comprovadamente posterior à constituição e registo da hipoteca.
9º
Por sua vez, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães no âmbito desse recurso, cita e segue de perto a orientação do Acórdão nº 356/04 do Tribunal Constitucional, para concluir que não existe a invocada inconstitucionalidade.
10º
Assim, aquando do recurso de revista interposto do acórdão do Tribunal de Relação de Guimarães para o Supremo Tribunal de Justiça, a CGD, nas alegações que apresentou, invoca, quanto a esta questão de inconstitucionalidade, nomeadamente, que: «(…) O conflito que o nº 2 do artº 759 pretende resolver, reequilibrando os direitos de credor hipotecário e retentor com despesas realizadas (e incorporadas na coisa), inexiste nos casos da alínea f), do nº 1, do artº 755º, pelo que, a esta concreta previsão normativa, aquela norma (a do nº 2 do artº 759º) não é aplicável».
11º
Mas, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que negou provimento à revista, acórdão recorrido no recurso para o Tribunal Constitucional, quanto a esta questão, concluiu não existir qualquer violação dos princípios da confiança, da segurança jurídica, da proporcionalidade e da igualdade, fundamentando-se, também, na jurisprudência do Tribunal Constitucional (…).
12º
Resulta do exposto, que o acórdão proferido pelo STJ, interpretou e aplicou a norma do artº 759º, nº 2, do Código Civil, resultante da conjugação com o artº 755º, nº 1, alínea f), do mesmo diploma legal, de forma correspondente à interpretação efectuada pela citada jurisprudência do Tribunal Constitucional, nomeadamente, pelo Acórdão nº 356/04.
13º
Como tal, mesmo dando de barato não ter sido essa a exacta dimensão da interpretação agora questionada pela recorrente, o certo é que foi essa a interpretação efectuada pelo acórdão recorrido, proferido pelo STJ a 20 de Maio de 2010, sendo certo que a CGD não arguiu, aquando do requerimento de fls. 1931, a nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia quanto a esta questão.
14º
Ora, apenas a constitucionalidade das normas na interpretação aplicada pela decisão recorrida, é apreciada pelo Tribunal Constitucional, no âmbito de recurso ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC.
15º
Dessa forma, são irrelevantes as supostas especificidades das circunstâncias do caso concreto, que, segundo a reclamante, afastariam a aplicação dessa mesma jurisprudência do Tribunal Constitucional, citada na Decisão Sumária.
(…)
17º
Quanto à segunda questão de constitucionalidade normativa, relativa à interpretação do artigo 672º do CPC, a Decisão Sumária não conheceu do objecto de recurso (…).
19º
Por sua vez, a reclamante reafirma que a interpretação dessa norma, cuja inconstitucionalidade suscitou, foi a efectuada pelo STJ, sustentando que não lhe era exigível a antecipação da possibilidade de aplicação dessa interpretação normativa, uma vez que a decisão do STJ, nessa parte, surgiu ex novo, sem que as partes tenham suscitado tal pronúncia.
20º
Mas, também quanto a esta questão, a reclamante não tem razão.
21º
Na verdade, como bem sublinha a Decisão Sumária, no requerimento de arguição de nulidade, «(…) a recorrente veio expressamente reconhecer que a tese da preclusão do direito ao recurso já havia sido esgrimida nos autos pelos recorridos (fls. 1933), pelo que não podia ter deixado de antecipar a possibilidade de o tribunal ora recorrido vir a aderir a tal tese alternativa».
22º
Por fim, quanto à terceira questão de inconstitucionalidade normativa, apenas suscitada em sede de requerimento de arguição de nulidade do acórdão proferido pelo STJ a 20 de Maio de 2010, a Decisão Sumária conclui pela impossibilidade de conhecimento do objecto de recurso, por manifesta falta de suscitação processual adequada, por ser exigível à recorrente que tivesse antecipado a aplicação normativa do nº 2 do artigo 130º do CIRE, efectuada pelo tribunal recorrido.
23º
Muito embora a reclamante sustente não lhe ser exigível essa antecipação, o certo é que não lhe assiste razão.
24º
Isto porque, também esta questão vinha sendo debatida nos autos desde o recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães. Dessa forma, a interpretação acolhida pelo acórdão recorrido não foi imprevisível, inesperada ou insólita, não estando a recorrente dispensada do ónus da suscitação prévia.
25º
Acresce que o requerimento de arguição de nulidade não é já o meio idóneo e atempado para suscitar questão de inconstitucionalidade relativa a matéria sobre a qual se esgotou o poder jurisdicional do juiz (cfr. Acórdãos nºs 646/09 e 27/2010).
26º
Deve, pois, a reclamação ser, totalmente, indeferida.”
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Quanto à reclamação da decisão de não conhecimento “relativamente à “norma constante do artº 759º, nº 2 do C. Civil, quando interpretada no sentido da sua aplicabilidade aos casos em que não se verifique uma despesa útil realizada na coisa e da qual resulte a prevalência absoluta do direito de retenção sobre hipoteca anteriormente constituída” importa reiterar que ambos os tribunais recorridos – Tribunal da Relação de Guimarães e Supremo Tribunal de Justiça – aplicaram, enquanto “ratio decidendi”, a jurisprudência consolidada no Tribunal Constitucional e, em especial, a resultante do Acórdão n.º 356/04, citado na decisão ora reclamada.
A questão da (alegada) especificidade da questão normativa, tal como escolhida pela recorrente enquanto objecto do presente recurso, por integrar uma situação concreta em que não se teria verificado uma “despesa útil realizada na coisa e da qual resulte a prevalência absoluta do direito de retenção sobre hipoteca anteriormente constituída” não se afigura determinante ou tão pouco relevante – atenta a concreta configuração dos presentes autos – já que a decisão recorrida não aplicou, de modo efectivo e especificado, aquela concreta interpretação normativa. Pelo contrário, a decisão recorrida manteve a interpretação normativa do n.º 2 do artigo 759º do Código Civil (CC) que tem vindo a ser objecto de jurisprudência consolidada neste Tribunal. Ora, não cabe a este Tribunal reformar – ou sequer questionar – as interpretações normativas aplicadas pelos tribunais recorridos, quando aquelas visem, exclusivamente, a determinação do Direito infra-constitucional aplicável.
Por tal motivo, a decisão sumária reclamada limitou-se a confrontar a interpretação normativa efectivamente aplicada pelo tribunal recorrido – que seguiu, passo-a-passo, a jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional – com os princípios e normas constitucionais vigentes no nosso ordenamento jurídico. Foi, precisamente, por estar restringida a conhecer, apenas e só, da interpretação normativa aplicada pelo tribunal recorrido (artigo 79º-C da LTC), que a decisão reclamada procedeu a uma remissão para a jurisprudência constitucional nela mencionada. Não restam, assim, motivos para reformar a decisão reclamada, quanto a esta parte.
5. No que diz respeito às segunda e terceira interpretações normativas, a ora reclamante admite que não suscitou, previamente à tomada de decisão pelo tribunal recorrido, a respectiva inconstitucionalidade, conforme lhe era imposto pelo n.º 2 do artigo 72º da LTC. Contudo, alega que não lhe era exigível que antecipasse a aplicação daquelas, por parte da decisão recorrida, já que isso equivaleria a um ónus de antecipação de “todas as questões que no seu imaginário possam vir a ser conhecidas pelo tribunal ad quem, ainda que não suscitadas pelas partes no âmbito do concreto objecto do recurso em apreço” (sic).
Não foi, contudo, isso que entendeu a decisão reclamada. É que a decisão sumária nunca afirmou – nem podia tê-lo feito – que a reclamante estaria obrigada a um ónus de antecipação inesgotável e exauriente, relativamente a quaisquer interpretações normativas que viessem a ser alvo de aplicação. Bem pelo contrário, o que a decisão reclamada sustentou foi que, atenta a especificidade concreta dos autos recorridos, a recorrente dispôs, objectivamente, de todas as condições necessárias à prévia e adequada suscitação da inconstitucionalidade das interpretações normativas que agora reputa de inconstitucionais.
Quer a questão relativa à aplicação da norma extraída do artigo 672º do CPC, relativa à força de caso julgado formal do despacho de admissão de recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães, quer a questão relativa à “norma constante do nº 3, do artº 130º do CIRE, quando interpretada no sentido de que a falta de impugnação da lista de credores reconhecidos faz precludir o direito ao recurso da sentença de graduação de créditos proferida em primeira instância”, deveriam ter sido equacionadas pela recorrente, logo que colocadas pelos (então) recorridos, em sede de contra-alegações do recurso por si (então) interposto. Tendo estes invocado a preclusão do seu direito a recorrer da sentença de graduação de créditos, cabia à recorrente lançar mão de todos os meios processuais adequados à defesa da sua pretensão, incluindo a suscitação da inconstitucionalidade daquelas interpretações normativas perante o Supremo Tribunal de Justiça.
Ora, a recorrente não o fez, em nenhum daqueles momentos. Não pode, portanto, invocar que não era objectivamente previsível ou expectável que o Supremo Tribunal de Justiça pudesse vir a equacionar – e a aplicar – aquelas interpretações normativas.
Como tal, além de não ter cumprido o ónus processual de prévia e adequada suscitação da questão de inconstitucionalidade, a recorrente não pode beneficiar de qualquer dispensa de tal ónus, na medida em que a aplicação das segunda e terceira interpretações normativas não se afigura surpreendente – razão pela qual se indefere o pedido de reforma da decisão reclamada.
III – Decisão
Nestes termos, pelos fundamentos supra expostos e ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 77º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 03 de Fevereiro de 2011.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.