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Processo nº 995/98
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A. C. e mulher C. M., com os sinais identificadores dos autos, vieram interpor recurso para o Tribunal Constitucional, 'nos termos dos artigos 70º
1.b), 71º, 74º, 75º da Lei nº 28/82, de 15/11', do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2 de Julho de 1998, que, em acção de despejo contra eles intentada, negou provimento ao recurso de apelação que haviam interposto da sentença do Tribunal Judicial da Comarca do Funchal (3º Juízo Cível), de 14 de Outubro de 1997 e que decretara 'o despejo do locado, a efectivar pelos RR. 3 meses após o trânsito em julgado desta sentença' e decidira 'julgar improcedente o pedido reconvencional'. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade invocam os recorrentes que, não se conformando com aquele acórdão 'no que respeita à parte que julga constitucional o artigo 1041º do C.Civil', dele vêm interpor recurso, respeitando ele 'a matéria (inconstitucionalidade do artigo 1041º do C. Civil) já suscitada no processo', e esclarecendo depois, a convite do Relator, ao abrigo dos poderes conferidos pelos nºs 5 e 6 do artigo 75º-A, da Lei nº 28/82, aditado pelo artigo 2º, da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, e na redacção do artigo 1º, da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, que 'as normas da Constituição que os recorrentes consideram terem sido violadas são os seus arts. 65º, 1 e
168º, 1, h) (inconstitucionalidade material e orgânica) e que a 'peça processual em que a questão foi suscitada foi a contestação dos RR. ora recorrentes'.
2. Nas suas alegações, concluem assim os recorrentes:
' a) O desaparecimento do requisito constante no art. 1098º do C. Civil, hoje revogado, leva a concluir que o senhorio possa mover acção de denúncia para habitação própria uma pluralidade de vezes, ofendendo o princípio da estabilidade do caso julgado e toda a nossa tradição Jurídica em matéria de segurança do direito à habitação, originando uma grande insegurança da posição do inquilino e consequente ofensa do disposto do art. 65º da C.R.P. b) A subsecção V da secção IX do capítulo I do Dec-Lei 321-B/90, padece do vício de inconstitucionalidade orgânica. Na verdade, c) A Lei 42/90, de 10.08 dá poderes limitados ao Governo, nomeadamente na alínea c) do art. 2º, que aponta para preservar a posição do arrendatário tudo limitado a alteração à
«simplificação dos regimes relativos à formação, às vicissitudes e à cessação do respectivo contrato, de modo a facilitar o funcionamento deste instituto.» d) Ora o Governo, ao invés, fez desaparecer uma norma protectória (o nº 1 c) do art. 1098º) retirando o que lhe não era permitido retirar, porquanto a autorização legislativa não lhe conferia poderes para tanto, pelo que resulta violado o art. 168º 1 h) da Constituição. e) O regime constante da subsecção V da secção IX do Capítulo I do R.A.U. é, pois, material e organicamente inconstitucional, sendo que está vedada ao Tribunal a sua aplicação. Termos em que deve ser revogado o douto acórdão recorrido, e a douta sentença da
1ª instância, com os fundamentos atrás indicados, com o que se faz JUSTIÇA.'
3. Os recorridos e autores na acção de despejo, A. S. e mulher O. S., contra-alegaram, concluindo deste modo:
'1ª - Não deve conhecer-se do recurso sob pena de ao trazer de novo a este Tribunal a sua apreciação se ofender o caso julgado formal, relativamente ao despacho saneador que se havia pronunciado (sem recurso) pela não violação dos artigos 65, nº 1 e 168 alínea h) da C.R.P.
2ª - Face à diversidade dos preceitos constitucionais citados e decididos na 1ª Instância, na Relação, no requerimento do recurso desta interposto para este Tribunal e os apontados em resultado do convite do Exmº Relator pode dizer-se que os Recorrentes não responderam a este ou então responderam tão mal que o recurso devia ter sido julgado deserto mas como não foi não deve tomar-se dele conhecimento ou então por ser manifestamente infundado deve proferir-se decisão sumária do seu não provimento uma vez que nem a 1ª instância nem na Relação aplicaram a citada alínea c) do revogado artigo 1.098 nem o artigo 1.041, ambos do C.C. pois decidiram o despejo com o fundamento do não pagamento de rendas e não por denuncia do arrendamento não tendo sequer condenado no seu pagamento
(artigos 75-A, nº 7 e 78º, nºs 1 e 2 da LOTC).
3ª - O Governo ou legislador do RAU não extravasou a respectiva Lei de autorização, designadamente ao revogar aquela alínea e mesmo que o tivesse feito isso seria indiferente para o caso como resulta da conclusão anterior.
4ª - Como da mesma resulta ser pura perda de tempo estar a perder tempo com tal averiguação uma vez que essa alínea c) jamais foi nem pode vir a ser aplicada nos autos.
5ª - Face à situação história e actual do arrendamento urbano, o inquilino continua salvaguardado e garantido por uma série dos instrumentos supra referidos a começar pelo abuso de direito pelo que de todo em todo tornaria redundante aquele segmento.
6ª - Em suma: O Governo ou legislador do RAU ao excluírem a citada alínea c) não foram alem da respectiva autorização pois com isso não facilitaram nem favorecera a denuncia do arrendamento urbano para habitação própria do senhorio ou dos familiares, nem os Tribunais da 1ª Instância ou a Relação alguma vez a aplicaram tal como não o fizeram com o artigo 1.041 também do C.C.'
4. Ouvidos os recorridos sobre a questão do não conhecimento do recurso suscitada pelos recorridos ao longo das suas alegações e condensada nas respectivas conclusões 1ª e 2ª, nada disseram.
5. Tudo visto cumpre decidir. Preliminarmente interessa verificar se procede ou não a questão prévia suscitada pelos recorridos, relatando, para o efeito, o que os autos evidenciam. A. S. e mulher O. S., ora recorridos, intentaram, na comarca do Funchal, contra A. C. e mulher, C. M., ora recorrentes, acção sumária de despejo, alegando, em síntese, a falta de pagamento das rendas contratuais e, subsidiariamente, a necessidade do locado para sua própria habitação. Na contestação, os RR. suscitaram, entre o mais, a inconstitucionalidade material e orgânica do artigo 71º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Setembro, que substituiu o artigo 1098º do Código Civil, por força da revogação operada pelo artigo 3º do citado Decreto-Lei nº 321-B/90, de toda a subsecção III da secção VIII do capítulo IV, daquele Código, onde se inseria o referido artigo 1098º. Segundo os então RR, a nova subsecção V da secção IX do capítulo I do RAU
(subordinados à epígrafe 'Denúncia') permite ao senhorio denunciar o contrato e mover a respectiva acção de despejo as vezes que entender, o que se traduz numa violência social, alterando de uma forma profunda o direito à estabilidade da situação do arrendatário (sendo certo que já anteriormente fora intentada acção de despejo sem sucesso para os senhorios). A inconstitucionalidade orgânica derivaria do facto de a Assembleia da República não ter autorizado o Governo a alterar, com aquela extensão e profundidade, o regime de denúncia para habitação; a inconstitucionalidade material de a referida alteração nos colocar 'perante o facto de, nestas acções, não haver praticamente trânsito em julgado das sentenças absolutórias do inquilino', de
'esta alteração representar uma violência excessiva contra todo o corpo de normas que, desde o já longínquo ano de 1929, representam 'as regras socialmente
úteis que tutelam a posição do arrendatário' e ser tal preceito (o artigo 71º do RAU) 'claramente violador do artigo 65º, nº 2, da C.R.P., naquilo que ele tem de mais importante e menos programático: o direito à segurança do morador'. A 1ª instância decidiu, por via do despacho saneador de 18 de Outubro de 1996, pela não inconstitucionalidade, quer orgânica, quer material, do referido preceito, sem que os RR tivessem reagido contra essa decisão. Inconformados com a sentença de 14 de Outubro de 1997, que decretou o despejo com fundamento em falta de pagamento no tempo e local próprios (facto que os RR não conseguiram contradizer) das respectivas rendas, recorreram estes, em recurso de apelação, para o Tribunal da Relação de Lisboa, suscitando agora a inconstitucionalidade do artigo 1041º do Código Civil. O citado artigo seria inconstitucional porque estabelece um regime protectório excessivo para um direito de crédito do senhorio à custa do sacrifício ou do risco do sacrifício de um direito de conteúdo superior, ou seja, a protecção dada a este direito creditício pelo artigo 1041º é superior, neste particular, à protecção e à dignidade atribuídas pelo artigo 65º da Constituição ao direito de quem habita. Não logrando, mais uma vez, êxito na 2ª instância, a qual viria a confirmar, por via de acórdão recorrido, a decisão da 1ª instância, interpuseram de novo A. C. e mulher recurso para este Tribunal Constitucional, desse acórdão, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, suscitando nas alegações a inconstitucionalidade do artigo 71º do RAU, e só desta norma, como já o haviam feito na contestação e com os mesmos fundamentos, mas abandonando agora a questão da inconstitucionalidade do artigo 1041º do Código Civil. É o que ressalta do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade e das alegações apresentadas perante este Tribunal Constitucional, não havendo coincidência entre essas peças.
6. Como é jurisprudência reiterada deste Tribunal, constituem pressupostos de interposição deste tipo de recurso, ao abrigo da alínea b), nº 1, do artigo 70º, entre outros, que a decisão de que se recorre tenha efectivamente aplicado a norma arguida de inconstitucionalidade durante o processo e argui-la 'durante o processo' significa que ela tenha de ser suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, de forma a que essa mesma questão seja tida em conta por esse tribunal e ele se possa pronunciar sobre a mesma. Só em casos excepcionais, que não vêm ao caso, pode o interessado suscitar a questão após proferida a decisão final. Ora, que aconteceu no caso dos autos? Os recorrentes levantaram nas alegações para o Tribunal da Relação de Lisboa a questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 1041º do Código Civil e esta norma foi efectivamente aplicada pela decisão ora recorrida. Porém, não é a inconstitucionalidade desta norma que agora suscitam, apesar de ser ela identificada no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade. E só relativamente a esta norma era susceptível arguir com oportunidade a inconstitucionalidade. Os recorrentes abandonaram nas alegações para o Tribunal Constitucional a questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 1041º, como já haviam abandonado perante o Tribunal de Relação a questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 71º do RAU suscitada na contestação e decidida no despacho saneador, sem terem reagido contra ele. Ao retomarem agora a questão de inconstitucionalidade deste último preceito do artigo 71º (repete-se: que já haviam abandonado) não o fizeram a tempo. Para a poderem suscitar neste Tribunal, era seu dever tê-la também suscitado nas alegações para o Tribunal da Relação de Lisboa, de forma a que esta instância se pronunciasse sobre ela. Os próprios recorrentes confessam que a arguição de inconstitucionalidade foi feita na contestação da acção de despejo. Tornava-se necessário que a decisão da Relação tivesse formado sobre essa norma
(do artigo 71º) um juízo de (in)constitucionalidade, um juízo que constituísse a
'ratio decidendi' da decisão. Ora, isso não foi feito pelos recorrentes, nem tão-pouco a Relação a aplicou. Como vimos, a 'ratio decidendi' da decisão assentou na norma do artigo 1041º, cuja inconstitucionalidade não é agora suscitada nas alegações dos recorrentes. Com o que procede a questão prévia de não conhecimento do recurso de constitucionalidade, por falta de apontado pressuposto.
7. Termos em que, DECIDINDO, não se toma conhecimento do recurso e condenam-se os recorrentes nas custas, com a taxa de justiça fixada em oito unidades de conta Lisboa, 11 de Janeiro de 2000 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Bravo Serra Luís Nunes de Almeida