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Proc. nº 206/97
2ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Beleza
Acordam na 2ªSecção do Tribunal Constitucional:
1. A..., condenado pela autoridade administrativa competente na coima de
100.00$00 pela prática de uma contra-ordenação (exercício de actividade normalmente remunerada por quem recebe subsídio de desemprego), prevista e punida pelo artigo 54º-A do Decreto-Lei nº 79-A/89, de 13 de Março, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 418/93, de 24 de Dezembro, impugnou judicialmente a decisão perante o Tribunal do Trabalho de Matosinhos. O arguido fundamentou a impugnação, quanto à matéria de facto, na circunstância de nunca ter recebido qualquer remuneração, já que prestava trabalho graciosamente para o seu filho. Invocou também a inconstitucionalidade da norma condenatória aplicada, porque 'a autoridade autuada não necessita de provar o pagamento da respectiva remuneração', o que levaria à inversão do ónus da prova, com violação do nº 2 do artigo 32º e do artigo 13º da Constituição. Por decisão de 8 de Maio de 1996, de fls. 38, o Juiz do Tribunal do Trabalho de Matosinhos entendeu que não tinha que ser feita prova de que o arguido
'estivesse contratado e fosse remunerado', porquanto a 'questão fundamental para a procedência da acusação, nos termos do citado art. 54º-A, é o exercício de actividade normalmente remunerada (ainda que se não prove a remuneração) ou a contratação (no sentido de aceitação) de pessoa naquelas condições'. Todavia, julgando haver 'circunstâncias que diminuem acentuadamente a gravidade da culpa'
('o beneficiário arguido é pai do tomador do seu trabalho'), alterou para
30.000$00 o montante da coima aplicada, confirmando no restante a decisão administrativa. O arguido recorreu para o Tribunal da Relação do Porto; o recurso, porém, não foi aceite, por, nos termos do nº 1 do artigo 73º do Decreto-Lei nº 433/82, de
27 de Outubro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro, a coima aplicada não exceder 50.000$00. O Tribunal da Relação do Porto considerou, ainda, não se verificarem as circunstâncias previstas no nº 2 do mesmo artigo, e que poderiam levar à admissibilidade do recurso. Mas não deixou de afirmar que o preceito impugnado 'não exige que a actividade seja remunerada, nem estabelece qualquer isenção do ónus da prova. Acontece apenas, como resulta da letra do preceito, que o pagamento de remuneração não constitui elemento do tipo legal da contra-ordenação, consistindo a infracção tão somente no exercício de actividade que normalmente é remunerada. É indiferente que exista ou não remuneração'. E acrescentou: 'E nem se estranhe a atitude do legislador, uma vez que a sua preocupação foi a de evitar o pagamento do subsídio de desmprego a quem trabalha: ‘(...) evitar nalguns casos formas directas ou indirectas de obtenção indevida de prestações, com as correspondentes distorções e injustiças,
à luz da necessidade de proteger de modo adequado as pessoas que perderam efectivamente os seus empregos e buscam a sua reintegração no mercado de trabalho’(preâmbulo do Dec.-Lei nº 418/93)'.
2. É assim da decisão do Tribunal de Trabalho de Matosinhos que vem interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 da Lei do Tribunal Constitucional. Pretende o recorrente a apreciação da 'constitucionalidade do art. 54º-A do Dec.-Lei nº 418/93, de 24/12, por na perspectiva do recorrente, esta norma ofender o nº 2 do ar. 32º da Constituição da República Portuguesa, por violação do princípio da presunção de inocência do Arguido e da inversão do ónus da prova; e da ofensa do princípio da igualdade (art. 13º da C.R.P.), por na sequência da aplicação daquela norma, existir notória desigualdade jurídica entre as partes'.
3. Nas alegações apresentadas neste Tribunal, o recorrente retoma a argumentação já aduzida anteriormente, quer na impugnação judicial da decisão administrativa, quer no recurso que interpôs para o Tribunal da Relação do Porto. Em síntese, sustenta que o artigo 54º-A do Decreto-Lei nº 79-A/89, de 13 de Março, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 418/93, de 24 de Dezembro, ao punir quem, no período em que esteja a ser recebido subsídio de desemprego, exercer actividade normalmente remunerada, mesmo que não se prove o pagamento da remuneração, ofende frontalmente o nº 2 do artigo 32º da Constituição (princípio da presunção de inocência). Isto porque a autoridade administrativa 'não necessita de provar o pagamento da correspondente remuneração', ocorrendo nessa medida uma inversão do ónus da prova. Ora, no caso sub iudicio, a relação entre o recorrente e a pessoa para quem prestava trabalho
(o seu filho, Sérgio Manuel Viseu Ferreira) era apenas de auxílio e colaboração familiar, não existindo, nem vínculo laboral, nem remuneração. Acrescenta o recorrente que 'existe ofensa do princípio da igualdade (art. 13º da C.R.P.), pois existe notória desigualdade jurídica entre as partes, em especial da autoridade administrativa tutelada pelo Estado, dotado de jus imperii'.
4. O Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal Constitucional contra-alegou, afirmando, em resumo, o seguinte:
'Pensamos, aliás, que o recorrente parte de uma interpretação incorrecta e distorcida da norma constante do citado artigo 54º-A: em rigor, nela não se comina ou prevê qualquer ‘presunção’ de que o trabalhador, beneficiário do subsídio de desemprego, estará a ser remunerado pela entidade a quem, cumulativamente, presta serviços: (...) o que a lei estabelece é um verdadeiro dever legal de abstenção de exercício de actividades ‘normalmente remuneradas’ durante o período de atribuição das prestações integrantes do subsídio de desemprego – dever este que é violado pela simples circunstância de o trabalhador ser encontrado a exercer actividades daquela natureza, sendo perfeitamente irrelevante o apuramento da ocorrência do efectivo pagamento da remuneração que normalmente lhe corresponderia Ora, é manifesto que a tipificação desta conduta como integrando contraordenação, feita em diploma legal editado no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei nº 28/84, não infringe nenhum princípio ou preceito da Lei Fundamental. Note-se, aliás, que a única questão que, a nosso ver, se poderia razoavelmente discutir no presente processo se situa exclusivamente no âmbito da interpretação e aplicação do direito infraconstitucional – e consistiria em saber se, atenta a relação de parentesco existente entre o trabalhador que beneficiava do subsídio de desemprego e a pessoa a quem os serviços eram prestados, se poderia considerar tal ‘actividade’ como sendo ‘normalmente remunerada’. Trata-se, porém, como é evidente de questão em absoluto estranha à matéria do presente recurso de constitucionalidade, já que tem exclusivamente que ver com o apuramento da matéria de facto relevante e com a concretização de um conceito usado por norma de direito infraconstitucional'. Quanto à alegada 'violação do princípio constitucional da igualdade', entende ser 'verdadeiramente inintelegível'.
5. O teor da disposição legal em apreciação é o seguinte:
'O exercício de actividade normalmente remunerada durante o período de tempo em que estejam a ser concedidas as prestações de desemprego, ainda que se não prove o pagamento da correspondente remuneração, bem como a contratação de um trabalhador nestas condições constituem contra-ordenações puníveis com coima de
50.000 a 220.000$00.' A primeira das questões de constitucionalidade suscitadas consiste em saber se a norma aplicada pela decisão recorrida contraria o princípio da presunção de inocência previsto no nº 2 do artigo 32º da Constituição, segundo o qual 'todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação(…)'. Não se torna necessária, para o julgamento deste recurso, uma análise geral do conteúdo, fundamento, extensão e consequências do princípio constitucional invocado. Parece claro que a dimensão alegadamente violada da garantia da presunção de inocência reside na proposição de acordo com a qual não pode o legislador considerar preenchidos elementos do tipo legal incriminador, independentemente da produção efectiva da correspondente prova. Consideram GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA ('Constituição da República Portuguesa Anotada', 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 203) como integrando o conteúdo do princípio da presunção de inocência a
'proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido' (quanto ao problema de saber se deve falar-se em 'ónus da prova' no processo penal, cf. FIGUEIREDO DIAS, 'Direito Processual Penal', I, reimp., Coimbra, 1984, págs. 211 e segs.).
6. O artigo 54º-A do diploma legal em causa vem punir, durante o período de percepção de subsídio de desemprego, 'o exercício de actividade normalmente remunerada'. Resulta, assim, como sustenta o Ministério Público nas suas alegações, que desta norma se extrai um dever de abstenção do exercício de qualquer actividade normalmente remunerada, cuja violação é tipificada como contra-ordenação, independentemente da efectiva demonstração de que o agente recebeu qualquer quantia a título de remuneração. Por outras palavras, pode dizer-se que o que se qualifica como contra-ordenação
é a realização de actividade habitualmente remunerada, e não o beneficiar de remuneração por tal actividade. Poderia contra-argumentar-se afirmando que o objectivo da lei é evitar o injusto recebimento de prestações correspondentes ao subsídio de desemprego por quem obtenha rendimentos como contrapartida do exercício de actividades laborais, pelo que a punição da prestação de trabalho independentemente da prova da remuneração constitui uma verdadeira presunção de que tal remuneração existe. Estar-se-ia, porém, a confundir dois planos, que são e devem manter-se distintos: o dos elementos do tipo legal punitivo, por um lado, e o das razões ou motivos que conduziram o legislador a tipificar como infracção determinado comportamento, por outro. Ora, quanto ao primeiro dos planos enunciados, resulta claramente da lei que não constitui pressuposto da qualificação da conduta em causa como contra-ordenação
– não integrando o tipo legal correspondente – o pagamento de remuneração, bastando-se a norma sancionadora com o simples exercício de actividade que normalmente é remunerada. Pode discutir-se, quanto ao segundo plano, a motivação do legislador na antecipação da tutela sancionadora, ou o acerto de uma solução de natureza preventiva, de um ponto de vista de política legislativa. Mas não parece questionável a legitimidade constitucional de tipificar como contra-ordenação a conduta em causa, apesar de não ser exigida uma efectiva lesão do interesse jurídico que, em última análise, se pretende tutelar. Defender o contrário levaria a considerar ilegítima, por exemplo, a tipificação como contra-ordenação da condução de veículo automóvel em excesso de velocidade, sempre que não se comprovasse a verificação de um efectivo perigo para (ou mesmo de um dano a) interesses juridicamente protegidos de outrem. Assim, não chega a ser decisiva a tomada em consideração da circunstância de que a infracção em causa não se situa no domínio do direito criminal mas do ilícito de mera ordenação social, argumento considerado relevante nas alegações do Ministério Público neste Tribunal. Com efeito, as garantias consagradas no artigo 32º para o processo criminal não têm aqui aplicação automática, sendo problemática a questão de 'saber se e em que medida é que os princípios da
‘constituição processual criminal’, enunciados neste artigo, valem também para outros processos sancionatórios' (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., pág.
208). De qualquer forma, deve concluir-se que a norma legal impugnada em nada contraria o princípio constitucional da presunção de inocência.
7. Afirma ainda o recorrente, como se disse anteriormente, que 'existe ofensa do princípio da igualdade (art. 13º da C.R.P.), pois existe notória desigualdade jurídica entre as partes, em especial da autoridade administrativa tutelada pelo Estado, dotado de jus imperii'. Não se consegue compreender o alcance da invocada violação do princípio da igualdade, como bem nota o Senhor Procurador-Geral Adjunto. Na verdade, não sendo minimamente perceptível a relação de antinomia apontada pelo recorrente entre a norma impugnada e o artigo 13º da Constituição, não pode o Tribunal Constitucional conhecer da apontada questão de constitucionalidade. Assim, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida quanto à questão de constitucionalidade suscitada. Lisboa, 28 de Abril de 1999 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa