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Proc. nº 420/95
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 13 de Fevereiro de 1992, M... e mulher, MA..., intentaram acção de despejo, com processo sumário, contra J... e outros, pedindo a resolução do contrato de arrendamento de uma garagem, celebrado entre os autores e J..., de quem os réus são herdeiros. Alegaram que o arrendamento em causa se destinava ao exercício de indústria e que o estabelecimento instalado no prédio arrendado se encontrava encerrado desde 1970.
Contestaram os réus, afirmando que o primeiro réu continua a explorar o estabelecimento de serralharia instalado no prédio arrendado, tendo apenas reduzido a actividade, devido ao estado degradado do prédio, de que são responsáveis os senhorios, por se recusarem a realizar obras de reparação e por impedirem os réus de as efectuar.
O Tribunal Cível da Comarca de Lisboa (12º Juízo), por sentença de
28 de Maio de 1993 (fls. 233), considerou provado que o encerramento do estabelecimento se prolongava há pelo menos cinco anos; considerou não provado que o encerramento do estabelecimento tivesse a sua origem na falta de condições do prédio arrendado e que os senhorios tivessem impedido os réus de efectuar obras no prédio arrendado. Nessa conformidade, julgou a acção procedente, declarando resolvido o contrato de arrendamento, nos termos do artigo 64º, nº 1, alínea h), do Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, e condenando os réus a despejar imediatamente o prédio arrendado e a entregá-lo aos autores.
Inconformados, os réus interpuseram recurso desta decisão. Nas suas alegações sustentaram que a sentença viola o artigo 64º, nº 1, alínea h), do R.A.U., ao não integrar devidamente a matéria de facto provada, nomeadamente o facto de o réu J... continuar a actividade de serralharia no prédio arrendado. Invocaram também que a sentença interpreta a mencionada disposição do R.A.U. de modo 'desconforme com a Constituição, que valora privilegiadamente o direito à vida (artº 24º da CRP) de que faz parte o direito a um mínimo de subsistência e o direito ao trabalho (artº 58º da CRP)', ao 'subordinar o direito à vida – subsistência – e ao trabalho do R. José Herculano Ferreira – aos interesses muito privados, nada «públicos», do senhorio'.
2. Por acórdão de 15 de Dezembro de 1994 (fls. 275), o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Quanto à alegada violação da Constituição, lê-se no acórdão da Relação de Lisboa:
'É evidente a inexistência de nexo de causalidade entre a resolução do contrato de arrendamento sobre o rés-do-chão do prédio urbano, com a inerente condenação dos RR. no respectivo despejo imediato, e a invocada violação dos seus direitos à vida e ao trabalho, consagrados na C.R.P. (artºs 24º e 58º da C.R.P.).'
Os recorrentes, sucessivamente, requereram a aclaração do acórdão e arguiram a nulidade do mesmo, invocando, no que agora importa considerar, omissão de pronúncia, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, quanto à questão de constitucionalidade por eles suscitada, 'já que só uma decisão concreta sobre ela permite, designadamente, a integral verificação dos requisitos necessários ao eventual recurso para o Tribunal Constitucional'. Ambas as reclamações foram indeferidas (acórdãos de 7 de Fevereiro e 16 de Maio de 1995).
3. J... e outros vieram então interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº
28/82, pedindo a apreciação da 'inconstitucionalidade material do artº 64º, nº
1, al. h), do R.A.U., na interpretação feita na sentença apelada, dado privilegiar o aproveitamento do local para o prosseguimento de actividades produtivas em detrimento dos direitos dos apelantes à vida e ao trabalho (artºs
24º e 58º da CRP)'.
O recurso foi admitido por despacho de 2 de Julho de 1995 (fls.
312).
4. No Tribunal Constitucional, foi proferido despacho para produção de alegações, tendo os recorrentes formulado as seguintes conclusões:
'I – A sentença recorrida interpretou o artº 64º nº 1 alínea h) do R.A.U. de forma desconforme com a CRP ao violar a hierarquia dos direitos e princípios fundamentais da Constituição da República que privilegia o direito à vida – art.
24º da CRP e ao trabalho – artº 58º do CRP sobre os restantes direitos económicos sociais e culturais, ao sacrificar esses direitos do R. ao presumido melhor aproveitamento do arrendado pelos A.A. ora Recorridos. II – A interpretação do artº 64º, nº 1 alínea h) do R.A.U. não é a única interpretação possível da referida norma face à matéria de facto provada, vide, por exemplo, Ac. R. Porto de 3.02.81, in Col. Jur. 1981, 1º – 146 e Acórdão do STJ, de 6 de Janeiro de 1983, in RLJ Ano 119º, nº 372, 9, pp 251 e 253. III – Sacrificar a concreta realização 'esporadicamente' de 'pequenos trabalhos de serralharia' a um abstractamente definido 'interesse público – o do aproveitamento de todos os locais utilizáveis para o prosseguimento de actividades produtivas geradoras de riqueza e emprego' não respeita a hierarquia dos direitos e princípios constitucionalmente consagrados na CRP. IV – A CRP privilegia manifestamente os direitos liberdades e garantias pessoais, entre os quais se encontra o direito à vida – artº 24º – relativamente aos direitos e deveres económicos sociais e culturais. V – O direito ao trabalho por outro lado (artº 58º da CRP) está para os direitos económicos sociais e culturais [entre os quais se conta o direito de propriedade] na mesma posição em que se encontra o direito à vida no quadro dos direitos, liberdades e garantias.'
Os recorridos suscitaram uma questão prévia quanto à admissibilidade do recurso, por considerarem que os recorrentes não levantaram um problema de inconstitucionalidade normativa, tendo apenas posto em causa a decisão de mérito da 1ª instância. Concluíram assim as suas alegações:
'1. O presente recurso não deveria ter sido admitido porquanto os Recorrentes não suscitaram em sede própria a questão da inconstitucionalidade do art. 64º, nº 1, alínea h) do R.A.U. Na verdade,
2. Limitam-se tão somente a discordar da interpretação de tal norma feita pelo Tribunal a quo, por desconformidade com direitos acolhidos na CRP. Assim,
3. e porque essa decisão de admissibilidade do recurso de fls. 312 não vincula esse Alto Tribunal, impugna-se agora a mesma, nos termos e para os efeitos legais – cfr. art. 76º, nº 3 da Lei 28/82, de 15 de Novembro.
4. Mas mesmo que assim não fosse, nunca o presente recurso poderia merecer provimento. Com efeito,
5. a sentença recorrida interpretou correctamente o art. 64º, nº 1, alínea h) do R.A.U., sem cometer qualquer ofensa a quaisquer preceitos constitucionais, designadamente os artigos 24º e 58º da CRP. E isto porque,
6. não existe qualquer nexo da causalidade entre a resolução do contrato de arrendamento em causa, com a inerente condenação dos ora recorrentes no despejo imediato, e a invocada violação dos seus direitos à vida e ao trabalho, consagrados nos aludidos preceitos. Aliás,
7. os direitos constitucionais à vida e ao trabalho têm um continente e um conteúdo completamente diversos daqueles que os Recorrentes pretendem conferir-lhes.'
Notificados para se pronunciarem quanto à questão prévia suscitada pelos recorridos, os recorrentes responderam que a mesma não deveria proceder.
5. Em consequência da alteração na composição do Tribunal Constitucional, houve mudança de relator.
Completados os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.
II
6. Os recorrentes pedem ao Tribunal Constitucional que aprecie a constitucionalidade da norma constante do artigo 64º, nº 1, alínea h), do R.A.U., cujo teor é o seguinte:
'Artigo 64º
(Casos de resolução pelo senhorio)
1. O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário:
[...] h) Conservar encerrado por mais de um ano, o prédio arrendado para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, salvo caso de força maior ou ausência forçada do arrendatário, que não se prolongue por mais de dois anos.'
Na óptica dos recorrentes, tal norma é inconstitucional, 'na interpretação feita na sentença apelada, dado privilegiar o aproveitamento do local para o prosseguimento de actividades produtivas em detrimento dos direitos dos apelantes à vida e ao trabalho (artºs 24º e 58º da CRP)' – assim, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (fls.
310).
7. Foi suscitada pelos recorridos uma questão prévia quanto à possibilidade de o Tribunal Constitucional conhecer do recurso. Os recorridos consideram que os recorrentes não levantaram um problema de inconstitucionalidade normativa, tendo-se limitado a pôr em causa a decisão de mérito da 1ª instância, que lhes foi desfavorável.
Têm razão os recorridos.
Os recorrentes não questionam neste processo a constitucionalidade da norma constante do artigo 64º, nº 1, alínea h), do R.A.U.. Ao requererem que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade da norma, 'na interpretação feita na sentença apelada', os recorrentes pretendem afinal que este Tribunal faça um novo julgamento sobre a matéria que constitui o objecto do litígio. Essa pretensão situa-se obviamente fora do âmbito da competência do Tribunal Constitucional.
É certo que o Tribunal Constitucional tem admitido que o recurso de constitucionalidade – designadamente o recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, como é o caso dos autos – possa ter por objecto não a norma (ou a parte da norma) aplicada na decisão recorrida, abstractamente considerada, mas a norma tal como interpretada na decisão recorrida. Por outras palavras, o Tribunal Constitucional tem admitido a possibilidade de apreciar a conformidade constitucional de uma determinada interpretação ou dimensão normativa de um preceito legal.
Porém, quando o recorrente pretender que o recurso tenha por objecto a apreciação de uma disposição legal, considerada numa sua dimensão normativa determinada, compete ao recorrente identificar o sentido da norma cuja conformidade constitucional questiona.
Isto mesmo afirmou o Tribunal Constitucional, no acórdão nº 367/94
(Diário da República, II, nº 207, de 7 de Setembro de 1994, p. 9341 ss):
'[...] ao questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há-de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do texto do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido
(essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão, em termos de, tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, desse modo, afrontar a Constituição'.
8. Ora, os recorrentes não identificaram, durante o processo, qual o sentido atribuído à norma em causa, na decisão recorrida, que consideram desconforme com a Constituição.
Em momento algum os recorrentes explicitaram de que modo pode atentar contra o direito à vida e o direito ao trabalho constitucionalmente consagrados uma norma que considera fundamento de resolução do contrato de arrendamento para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal a desocupação do prédio pelo arrendatário, durante mais de um ano, sendo certo que, no caso dos autos, tanto o Tribunal de 1ª instância como a Relação de Lisboa consideraram não provado que o encerramento do estabelecimento tivesse a sua origem na falta de condições do prédio arrendado e sendo certo também que a apreciação dessa prova estaria, em qualquer caso, fora do controlo do Tribunal Constitucional.
Nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa – a peça processual em que dizem ter suscitado a questão de constitucionalidade – os recorrentes concluíram, através de fórmula que utilizam repetidamente nestes autos:
'A sentença recorrida interpreta o artº 64º, nº 1, alínea H), do R.A.U. de forma desconforme com a CRP, ao violar a hierarquia dos direitos e princípios fundamentais da Constituição da República que privilegia o direito à vida artº
24º da CRP e ao trabalho artº 58 da CRP sobre os restantes direitos económicos, sociais e culturais, ao sacrificar esses direitos do R. ao presumido melhor aproveitamento do arrendado pelos AA., ora recorridos' (conclusão E).
Na resposta à questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pelos recorridos, os ora recorrentes limitaram-se a afirmar (fls.
341):
'Na verdade, nas alegações do recurso para o Tribunal da Relação, os Recorrentes, quando dizem que a 'interpretação do artº 64º nº 1 alínea h) do RAU feita pela sentença recorrida' é 'desconforme com a Constituição', dizem, obviamente, que a alínea h) do nº 1 do artº 64º, a ter o sentido que lhe foi dado na sentença recorrida, é inconstitucional. Aliás, no parágrafo seguinte das mesmas alegações os Recorrentes insistem nesta ideia. Num e noutro referem o princípio substantivo violado – o direito à vida, consagrado no artº 24º da CRP – pela referida norma, se lhe for dado, como o foi, o sentido que lhe deram na sentença e Acórdão recorridos.'
Os recorrentes vêm com esta resposta confirmar o procedimento adoptado em peças processuais anteriores: indicam as normas constitucionais que consideram violadas, mas não o significado conferido à norma impugnada que, em sua opinião, seria contrário à Constituição.
Tal actuação, nas circunstâncias do caso, implica afinal imputar a inconstitucionalidade directamente à própria decisão e não à norma legal aplicada. Sendo o controlo de constitucionalidade atribuído ao Tribunal Constitucional um controlo normativo, apenas pode incidir sobre normas – as normas aplicadas na decisão recorrida, não obstante ter sido suscitada a sua inconstitucionalidade, ou as normas que a decisão recorrida tenha recusado aplicar com fundamento em inconstitucionalidade, conforme os casos. As decisões judiciais, em si mesmas consideradas, não podem, no sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, ser objecto de tal controlo.
9. Conclui-se deste modo que não estão verificados, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso interposto.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta.
Lisboa, 28 de Abril de 1999- Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa