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Processo n.º 639/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O presente recurso de constitucionalidade emerge de providência cautelar de arresto intentada por A. SGPS, SA (1.ª requerente), e B. SGPS, SA (2.ª requerente), contra D. (1.º requerido); E. (2.º requerido); F. (3.º requerido); e G. (4.ª requerido), com vista a acautelar o direito a indemnização pedida em acção social de responsabilidade, instaurada contra os três primeiros requeridos, ao abrigo do disposto no artigo 77.º, n.º 1, do CSC, e o direito à restituição, invocado em acção de impugnação pauliana, do acto de partilha dos bens comuns entre o 1.º e a 4ª requeridos.
A 1.ª requerente é titular de uma participação representativa da totalidade do capital da 2.ª requerente e esta, por sua vez, era titular de uma participação representativa da totalidade do capital do C.., SA. Todas as acções representativas do capital social desta sociedade foram nacionalizadas através da Lei n.º 62-A/2008, de 11 de Novembro;
Por sentença da 7ª Vara Cível do Tribunal da Comarca de Lisboa, foi julgado procedente o procedimento cautelar no tocante aos 1.º, 2.º e 4.ª requeridos e improcedente quanto ao 3.º requerido, ordenando-se o arresto dos bens aí identificados a favor do C.., SA.
A 4ª requerida, aqui recorrente, interpôs, conjuntamente com outros requeridos, recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, pelo acórdão ora recorrido, julgou improcedentes as apelações e confirmou a decisão recorrida.
É dessa decisão que vem interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores, adiante designada LTC), nos seguintes termos:
«O recurso ora interposto visa a fiscalização da constitucionalidade material das seguintes normas:
- Artigo 77.º, n.° 1, do CSC:
1.º - Resulta do artigo 77.°, n.° 1, do CSC, que só os sócios ou accionistas podem intentar acções no interesse da sociedade.
2.° - O C.., S.A. foi nacionalizado pela Lei n.° 62-A/2008, de 11 de Novembro, publicada no DR, 1.ª Série, n.° 219, junto como documento 9 ao r.i..
3.º - Desde 11 de Novembro de 2008 que a 2.ª Requerente não é accionista do C. o que decorre da declaração junta a fls. 178 dos autos.
4.º - A providência cautelar sob recurso deu entrada no dia 21 de Novembro e 2008, ou seja, após a nacionalização.
5.º - Consequentemente, à data da entrada do procedimento cautelar a 2.ª Requerente não tinha legitimidade processual activa para intentar qualquer acção o ou procedimento na qualidade de accionista do C. (que deixou de ser), pelo que deveria o douto Acórdão recorrido ter declarado a 2.ª Requerida parte ilegítima, declarando respectivamente verificada a excepção dilatória da ilegitimidade.
6.°- A Constituição não permite, e muito menos impõe, a “interpretação” correctiva [leia-se, para além do mínimo apoio literal] da norma contida no artigo 77.°, n.° 1, do CSC. nem exige a “integração” de uma situação lacunar inexistente de forma a conferir à Requerente legitimidade para requerer o arresto no interesse do C. em alegada homenagem ao direito de acesso à justiça (isto é, à tutela jurisdicional efectiva: artigo 20, n.° 1, CRP).
7.º - O próprio Acórdão recorrido, que secundou a douta Decisão de 1.ª instância, confirma a ilegitimidade das Requerentes, ora Recorridas, para requererem e obterem, em seu beneficio, a presente providência cautelar à luz do artigo 77.°, n.° 1, do CSC.
8.° - Ao acabar por lhes conferir tal legitimidade por meio de um alegado processo interpretativo/integrativo sem um mínimo de apoio literal, o douto Acórdão recorrido mais não fez do que declarar efectivamente a inconstitucionalidade do artigo 77.°, n.° 1, do CSC, conferindo, pois, à ora Recorrente legitimidade para solicitar ao Tribunal Constitucional a apreciação de tal decisão, nos termos do artigo 280.°, n.° 1, al. a) da CRP.
9.º - Com efeito, na óptica da Recorrente, o douto Acórdão recorrido não fez uma verdadeira interpretação da norma contida no artigo 77.°, n.° 1, do CSC, declarando até que aplicou a norma que o legislador teria criado se tivesse previsto a “situação lacunar”.
10.º - A este respeito, escreveu-se no douto Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 90/05, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, o seguinte, que aqui se reitera:
“[...] só pode apresentar-se como sendo interpretação de uma determinada norma jurídica, mesmo quando ela seja lida conjugadamente com outra ou o normas jurídicas, um sentido que seja referível ao seu teor verbal: é que o intérprete não pode considerar o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente deve presumir que o legislador [...] soube exprimir o seu pensamento em adequados.”.
11.º - A integração da pretensa lacuna configura, na perspectiva da Recorrente, uma recusa implícita de aplicação do artigo 77.° do CSC [mormente do seu n.° 1 com fundamento na sua inconstitucionalidade, operada a pretexto da pretensa exigência de acesso à justiça (artigo 20.° da CRP) para os casos em que a perda da qualidade de accionista provenha de nacionalização.
12.°- Na óptica da ora Recorrente, não existe qualquer “situação lacunar” na norma, e o douto Acórdão recorrido julgou inconstitucional a norma contida pelo artigo 77.°, n.° 1, do CSC, interpretada no sentido de os ex-accionistas, após a nacionalização, não terem legitimidade activa para intentar ou requerer acções ou procedimentos cautelares no interesse da sociedade nacionalizada, por alegadamente violar o artigo 20.° da CRP, e, na sequência de tal julgamento de inconstitucionalidade, recusou tacitamente a aplicação de tal norma, e procedeu à criação e aplicação de uma norma nova, com um sentido que o artigo 77.°, n.°1, do CSC não comporta, por forma a atribuir legitimidade ao ex-accionista de uma sociedade nacionalizada para requerer providência cautelar no interesse da sociedade.
13.° - A norma contida pelo artigo 77.°, n.° 1, do CSC, interpretada no sentido de o ex-accionista após nacionalização não ter legitimidade activa para intentar ou requerer acções, ou procedimento cautelares, no interesse da sociedade nacionalizada, não é materialmente inconstitucional e não viola o artigo 20.° da CRP, ou qualquer outra norma ou princípio constitucional, não havendo fundamento para a recusa da sua aplicação.
14.° - Efectivamente, o direito de acesso à justiça garante o acesso a quem tem um direito ou interesse legítimo em levar a sua causa a Tribunal, cabendo ao legislador alguma margem de discricionariedade na configuração das acções adequadas à obtenção de tutela judicial, tendo presente a necessidade de salvaguardar outros bens constitucionais e o princípio da proporcionalidade.
15.° - Consequentemente, pode reservar a figura processual utilizada apenas/aos sócios ou mesmo ir mais longe e limitá-la somente aos sócios titulares de um mínimo do capital social, como faz o artigo 77.°, n.° 1.
16.° - Assim, não ofende o direito de acesso à justiça que a 2.ª Requerente apenas tenha legitimidade para requerer a providência cautelar de arresto no interesse da sociedade de que é accionista enquanto o for, tendo presente a necessidade de limitar aos sócios o poder de controlar a sociedade em homenagem ao direito à iniciativa privada e mesmo ao direito à propriedade.
17.º - No presente caso, pelo contrário, encontrando-se a sociedade controlada pelo Estado, é a própria propriedade pública e a garantia institucional do sector público empresarial (artigos 81.°, als. b) e d), e 82.°, n.°1 e n.° 2, da CRP) e, portanto, a iniciativa empresarial pública, que ficam em causa pela ingerência na gestão da referida sociedade por parte de terceiros pela concessão de legitimidade para instaurar acções alegadamente no seu interesse.
18.° - Como é possível alegar-se que ainda se prossegue o interesse da sociedade, como impõe o artigo 77.°, n.° 1, do CSC, quando os Requerentes do procedimento não têm já qualquer vínculo com esta- Resulta claro que apenas prosseguem interesses pessoais.
19.° - Ora, o direito de acesso à justiça não permite que ex-accionistas afectem a gestão da sociedade abusando da figura processual prevista no artigo 77.°, n.° 1, do CSC, sob pena de se lesar a iniciativa privada e, no presente caso, a iniciativa pública, constitucionalmente garantida.
20.°- Tal conclusão resulta claro da circunstância de o legislador prever expressamente outros meios para pequenos accionistas ou pessoas que o não sejam de se ressarcirem de eventuais danos por força da gestão da sociedade (artigo 79.° do CSC), aplicando, aliás, meros princípios gerais do Direito Civil. A entenderem-se lesados, deveriam as Requerentes, ora Recorridas, ter recorrido a outro meio processual.
21.º- Deste modo, a norma criada pelo douto Acórdão recorrido não só não é imposta pela Constituição, como viola os bens constitucionais do direito à iniciativa privada (artigo 61.º CRP) e da garantia institucional da iniciativa pública, violando ainda o dever dos Tribunais na procurada da verdade, da boa administração da Justiça e o dever de dirimir os conflitos de interesses públicos e (artigo 202.°, n.° 2, da CRP), para a qual não deixaria de contribuir o chamamento à demanda da sociedade nacionalizada beneficiária do procedimento.
22.° - Finalmente, salvo o devido respeito, que é muito, a reputada integração de uma “situação lacunar” por imperativo do disposto no artigo 20.° da CRP douto Acórdão recorrido relativamente ao artigo 77.°, n.° 1, do C norma completamente nova em sua substituição que foi aplicada retroactivamente ao presente caso e que não era minimamente previsível para os destinatários da mesma, sendo esta mesma norma (e não agora directamente o processo da sua criação, para efeitos de controlo pelo Tribunal Constitucional) materialmente inconstitucionais por violar o princípio da certeza e da segurança jurídica, pilar dos princípios do Estado de Direito democrático [arts.° 2.° e 9.°, al. b), da CRP], dado o seu carácter radicalmente retroactivo e natureza completamente inovadora, e organicamente inconstitucional por lesão ao princípio da separação de poderes (artigo 111.º CRP) ao invadir a função legislativa reservada aos órgãos de soberania políticos.
23.º - Consequentemente, na óptica da ora Recorrente, o douto Acórdão recorrido recusou implicitamente a aplicação da norma contida no artigo 77.°, n.º1, do CSC, interpretada no sentido [único compatível com a normal] de os ex accionistas não terem legitimidade activa para intentar ou requerer acções ou p cautelares no interesse da sociedade nacionalizada e, segundo se ju1ga, ao o fazer criou uma norma inconstitucional a vários títulos.
24.° - A ora Recorrente invocou a inconstitucionalidade material da norma em causa nas suas conclusões n.°s 16 a 22 do recurso de apelação para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa e, existindo (na óptica da Recorrente) recusa (tácita) de aplicação da norma contida no artigo 77.°, n.° 1, do CSC com fundamento na sua inconstitucionalidade, deve o presente recurso, nesta parte, ser admito à luz do disposto no artigo 70.°, n.° 1, alínea a), mas também, caso se entenda que não houve recusa de aplicação do artigo 77.°, n.° 1, do CSC, à luz da alínea b), da Lei n.º 28/82 de 15/11, uma vez que a inconstitucionalidade daquela norma (com interpretativo alcançado) foi oportunamente invocada pela Recorrente.
- Artigo 77.°, n. °s 1 e 4, do CSC:
25.° - O artigo 77.°, n.° 4, do CSC, exige que “quando a acção social de responsabilidade for proposta por um ou vários sócios nos termos dos números anteriores, deve a sociedade ser chamada à causa por intermédio dos seus representantes.”.
26.° - Ou seja, mesmo que a 2.ª Requerida fosse parte legítima para demandar com base no artigo 77.°, n.° 1, do CSC (o que não se concede) resulta dos autos que a BNP, S.A. [beneficiária do arresto] não foi chamada nem interveio na providência cautelar, intentada no dia 21 de Novembro de 2008 e decretada a seu favor em 29 de Dezembro de 2008.
27.° - As normas contidas nos artigos 77.°, n.°s 1 e 4, do CSC, quando interpretadas singular ou conjugadamente, como o foram no douto Acórdão recorrido, no sentido, de concederem legitimidade ao ex-accionista de uma sociedade nacionalizada para requerer e ver decretado, mesmo após a nacionalização, no interesse a sociedade, procedimento cautelar sem que seja necessário que a sociedade beneficiária intervenha nos autos em data anterior à decisão que decrete a providência, são materialmente inconstitucionais, por assumirem um sentido normativo manifestamente imprevisível para o destinatário da norma, em violação dos artigos 2.° e 9.º, al. b), 20.° (direito de acesso a ao Direito, logo previsível) da C.R.P.
28.° - As mesmas normas, interpretadas nos referidos termos, violam ainda o direito ao acesso à justiça pela Sociedade nacionalizada (in casu, o C., S.A) que deveria ter sido chamada, e não foi, para se pronunciar sobre uma providência cautelar que foi requerida e decretada alegadamente no seu interesse, mas à sua revelia (art.° 20.°, n.°1 e 2, da CRP). Foram, pois, decididas questões em seu nome sem que esta tenha tido oportunidade para se pronunciar.
29.° - As mesmas normas interpretadas nos mencionados termos de não ser necessária a consulta da sociedade nacionalizada são ainda materialmente inconstitucionais por, por esta via, permitirem prejuízos para o seu accionista único, o Estado, e consequentemente permitirem lesões nos bens constitucionais propriedade pública e iniciativa empresarial pública (artigos 81, al. b) e d), e 82, n.° 1 e n.° 2, CRP).
30.° - A ora Recorrente invocou a inconstitucionalidade material das normas em causa na sua conclusão n.° 27 do recurso de apelação para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, pelo que deve o presente recurso, nesta parte, ser admitido à luz do disposto no artigo 70.°, n.° 1, alínea b), da Lei n.° 28/82 de 15/11, uma vez que a inconstitucionalidade material foi oportunamente invocada pela Recorrente.
- Artigos 102.º, n.º 2 e 388.º, n.º al. b), do Código de Processo Civil:
31.º- O douto Acórdão recorrido considerou extemporânea a arguição da incompetência material das Varas Cíveis de Lisboa para conhecer dos pedidos formulados pelas Requerentes, o que fez invocando que tal incompetência só poderia ter sido arguida até ao despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao inicio da audiência de discussão e julgamento, por aplicação do disposto no artigo 102.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
32.° - Mais considerou que o facto de a Recorrente não ter podido arguir tal incompetência por se tratar de um procedimento cautelar sem contraditório prévio não obstava a dita extemporaneidade, uma vez que a Recorrente poderia oposição e requerido a produção de prova e, aí, ter arguido tempestivamente a invocada incompetência material das Varas Cíveis de Lisboa.
33.º- A razão que preside à previsão do artigo 102.°, n.° 2, do Código de Processo Civil, é, essencialmente, a garantia da celeridade processual, a qual tem assento constitucional no artigo 20.°, n.° 4 e 5, da CRP.
34.º - Porém, se se admite que a Requerida poderia, após a sua citação para o procedimento (e, assim, após “o início da audiência de discussão e julgamento” já efectuada), ter arguido a excepção da incompetência material do Tribunal através da dedução de oposição e apresentação de prova, então, nada obsta, do ponto de vista da celeridade processual, a que o faça de imediato em sede de recurso, evitando-se uma oposição inútil, uma vez que o Tribunal de 1.ª instância já se havia expressamente sobre a questão prévia em causa, no sentido de se considerar materialmente competente.
35.º - Acresce que, a parte Requerida, na dita oposição, poderia não ter (como não tinha) qualquer prova a produzir, situação em que, mesmo havendo oposição, não seria tempestiva a arguição da excepção em causa, visto que não chegaria sequer a ser aberta a audiência de discussão e julgamento.
Consequentemente:
36.° - As normas contidas nos artigos 102.°, n.° 2, e 388.°, n.° 1, al. b), ambos do Código de Processo Civil, quando interpretadas, singular ou conjugadamente, como
o foram no douto Acórdão recorrido, no sentido de a incompetência material só poder ser arguida até ao despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência de discussão e julgamento, mesmo em casos de procedimento cautelar decretado sem contraditório prévio em que tal excepção tenha sido invocada imediatamente após a citação da Requerida em sede de recurso - `luz do entendimento de que nada obstava a que a Requerida pudesse ter deduzido oposição e requerido a produção de prova (e não recorrido) e, aí, ter arguido a invocada incompetência material do Tribunal - são materialmente inconstitucionais por violação do direito ao recurso, do acesso à justiça, à celeridade processual e à exigência constitucional de um processo equitativo, previstos no artigo 20.º, n.º1, 4 e 5, da CRP, direitos que foram desnecessariamente e desproporcionalmente restringidos pela norma formulada interpretativamente no douto Acórdão sob recurso (art.° 18.°, n.° 2, da CRP).
37.º - Efectivamente, enunciar normativamente que as Requeridas deverão realizar oposição (mesmo manifestamente inútil) antes de recorrer lesa o principio constitucional da celeridade processual e rejeitar um pedido em recurso, com base em tal fundamento, constitui uma lesão desproporcionada do direito de acesso à justiça, direito ao recurso implicitamente consagrado neste último e a um processo equitativo.
38.° - De igual forma, as normas contidas nos artigos 102.°, n.° 2, e 388.°, n.º 1, al b) ambos do Código de Processo Civil, quando interpretadas, singular ou conjugadamente, como o foram no douto Acórdão recorrido, no sentido de se impor ao Requerido - em procedimento cautelar decretado sem contraditório prévio - a obrigação (sob pena de extemporaneidade) de deduzir oposição (e não recorrer) e de nesta requerer a produção de prova, para poder invocar tempestivamente a excepção da incompetência material do Tribunal, nos casos em que o tribunal já se tenha declarado, de forma expressa, materialmente competente para julgar a causa, é materialmente inconstitucional por violação do direito ao recurso, do acesso à justiça, à celeridade processual e à exigência constitucional de um processo equitativo, previstos no artigo 20.°, n.°s 1, 4 e 5, da CRP, direitos desnecessariamente restringidos pela interpretação normativa adoptada no douto Acórdão sob recurso (art.° 18.°, n.° 2, da CRP).
39.º - O douto Acórdão que declarou extemporânea a arguição da incompetência em razão da matéria é, nesta parte, uma decisão surpresa, tendo em conta que a arguição foi feita pela ora Recorrente na sequência da sua citação para o procedimento cautelar e imediatamente após a mesma em sede de recurso.
40.°- Por se tratar de uma decisão surpresa sobre uma questão nova, em relação à qual a Recorrente não teve qualquer hipótese de contraditório, a Recorrente não arguiu anteriormente a inconstitucionalidade material da interpretação normativa adoptada no douto Acórdão recorrido, que não era previsível, razão pela qual o recurso deverá, também nesta parte, ser admitido à luz do disposto no artigo 70.º, nº 1, alínea b), da Lei n.° 28/82 de 15/11.
41.º - E não se diga que, nesta parte, a admissão do recurso será inútil uma vez que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa veio a julgar as Varas Cíveis de Lisboa materialmente competentes para o julgamento da causa, visto que, existindo jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça em sentido contrário ao decidido, é intenção da ora Recorrente, uma vez obtida, como se espera, a procedência do recurso sobre a questão da inconstitucionalidade material da norma formulada interpretativamente pelo Acórdão recorrido acerca dos artigos 102.°, n.°1, al. b), ambos do Código de Processo Civil, recorrer subsequentemente e após o trânsito do douto Acórdão recorrido (rectificado que seja quanto à questão da extemporaneidade), para o Plenário da Secções Cíveis do Supremo Justiça para a uniformização da jurisprudência quanto à questão da competência material do Tribunal, pugnando no sentido de o Tribunal competente ser o Tribunal de Comércio.
42.°- Sem que seja admitido e julgado procedente o recurso sobre a (in)constitucionalidade material das normas formuladas interpretativamente dos artigos 102.°, n.° 2, e 388.°, n.° 1, al. b), ambos do Código de Processo Civil, será inútil, e portanto legalmente inadmissível, o recurso para o Plenário Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça para a uniformização da jurisprudência quanto à questão da competência material do Tribunal (considerando que o Venerando Tribunal da Relação julgou, desde logo, a arguição da incompetência extemporânea, só se pronunciando, depois disso, pela competência Varas Cíveis de Lisboa).
43.º- A título meramente exemplificativo da existência de fundamento para o recurso previsto no artigo 763.° e seguintes do CPCivil, veja-se o douto Acórdão do STJ, datado de 18.12.2008, relatado pelo Exm.° Senhor Juiz Conselheiro Salvador da Costa, onde se decidiu que:
“3. A acção prevista no artigo 77° n.º 1, do Código das Sociedades assume estrutura sub-rogatória oblíqua, por não visar fazer valer directamente um direito próprio de quem a intentou, mas o direito de indemnização da própria sociedade, de que participa, em virtude de prejuízos só reflexamente susceptíveis de se repercutirem na sua esfera jurídica de sócio.
4. A competência em razão da matéria para conhecer da referida acção inscreve-se nos tribunais do comércio. “.
Termos em que, requer a V. Ex.ª que se digne admitir o presente recurso para o Tribunal Constitucional, a processar como apelação, com efeito meramente devolutivo e subida imediata, nos termos dos artigos 70.º n.° 1, alíneas a) e b) e 78.º, n.° 3 da Lei do Tribunal Constitucional, atentos os efeitos e regime de subida do recurso anterior.»
2. Por despacho de fls. 1726/1727, foram as partes notificadas para alegar, bem como para se pronunciarem sobre a eventualidade de o Tribunal não conhecer de parte do objecto do recurso, pelas razões aí suscitadas.
3. A recorrente respondeu ao citado despacho, defendendo o conhecimento de todas as normas indicadas no requerimento de interposição do recurso e concluindo o seguinte, quanto a cada uma das questões prévias suscitadas:
«(…) A - Quanto à possibilidade de o recurso sobre a constitucionalidade da norma do artigo 77.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais (SCS) não ser conhecido à luz da alínea a) [mas apenas à luz da alínea b)] do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), por se poder entender que não houve recusa implícita de aplicação da norma.
(…)
A.1.3 – Conclusão:
No silogismo jurídico que acima se expos o Tribunal “a quo” mais não fez do que recusar de forma implícita a aplicação da norma contida no artigo 77.º, n.º 1, do CSC, na interpretação que inicialmente lhe conferiu de que “o sócio único (…) por já não ser titular das suas participações na totalidade do capital social do C. SA deixa de estar legitimado para exercer o seu direito de accionar os ex-administradores do C. SA nos termos do art.º 77 do CSC”, criando depois, por alegada integração de uma lacuna, a norma aplicada “por imposição constitucional da tutela efectiva pelo julgador intérprete” que julgou necessária para assegurar, no caso concreto, o cumprimento do “princípio constitucional ínsito no art.º 20 da Constituição da República relativo ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, que é uma norma-princípio estruturante do Estado de Direito democrático”.
Salvo melhor opinião, tal recusa implícita de aplicação da norma contida no artigo 77.º, n.º 1, da CRP, com o sentido interpretativo configurado mas não aplicado na douta decisão recorrida, de que “o sócio único (…) por já não ser titular das suas participações na totalidade do capital social do C. SA deixa de estar legitimado para exercer o seu direito de accionar os ex-administradores do C. SA nos termos do art.º 77 do CSC”, confere à ora Requerente o direito de solicitar ao Tribunal Constitucional a apreciação da conformidade constitucional da norma desaplicada, nos termos do artigo 280.º, n.º 1, al. a) da CRP e do artigo 70.º, n.º 1, al. a) da LTC, tal como requerido.
Termos em que, se requer a apreciação da constitucionalidade material da norma a cuja recusa implícita se procedeu no douto Acórdão recorrido.
A.1.4 – Do pedido subsidiário para conhecimento do recurso quanto à inconstitucionalidade da norma aplicada (por integração de alegada lacuna), nos termos do 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.
Se assim não se entender, o que só por mera cautela de patrocínio se configura, na hipótese [alvitrada no douto despacho de 18 de Outubro de 2010] de se entender que não existiu recusa implícita de aplicação da norma contida no artigo 77.º, n.º 1, do CSC, requer-se, subsidiariamente, que seja fiscalizada a constitucionalidade material da norma criada (por alegada integração de lacuna) no douto Acórdão recorrido com o seguinte conteúdo: o sócio titular único de todas as acções por acto apropriativo e unilateral do Estado, é parte legítima para propor acção social de responsabilidade contra os ex-Administradores com vista à reparação a favor da sociedade do prejuízo que esta tenha sofrido, quando a mesma a não haja solicitado, e tendo a (…) legitimidade para a acção tem-na para a interposição do arresto cautelar.
Conforme tempestivamente alegado, tal norma, assim interpretada, é materialmente inconstitucional, conforme se tentará demonstrar em sede de alegações.
B - Quanto à possibilidade de o recurso sobre a constitucionalidade do artigo 77.º, n.º 4, do CSC, interpretado no sentido de não ser necessário que a sociedade beneficiária intervenha nos autos em data anterior à decisão que decrete a providência.
(…)
B.1.5 – Conclusão.
Por todo o exposto, o recurso interposto tem como objecto a norma aplicada pelo Tribunal, e não a decisão que a aplicou, a qual apenas se vê escrutinada pela necessária (e legal) verificação da (in)constitucionalidade material da primeira.
Pelo que, deve, também nesta parte, ser admitido e apreciado o recurso.
B.2 – Quanto à inadmissibilidade do recurso por se poder entender que a recorrente não terá legitimidade para impugnar esta norma em sede de recurso de constitucionalidade, uma vez que as normas e princípios constitucionais que invoca, se procedentes, fariam incidir o seu âmbito de protecção, não sobre a esfera jurídica da recorrente, mas sobre terceiros, nomeadamente, daquela que não foi chamado a integrar o alegado listisconsórcio, bem como do Estado, que não consta como parte da relação material controvertida.
(…)
B.2.9 – Conclusão.
Verifica-se, assim, o pressuposto da legitimidade da Recorrente, devendo, salvo o devido respeito e melhor opinião, o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do recurso, em síntese, porque:
a) A questão da inconstitucionalidade material ou orgânica das normas é de conhecimento oficioso, sendo credores da recusa de aplicação de normas inconstitucionais, e da aplicação de normas conforme à Constituição, todos os particulares e, assim, a própria Recorrente, independentemente dos princípios ou normas constitucionais cuja violação esteja em causa, a menos que se verifique uma qualquer situação da qual, no caso concreto, se possa retirar que o exercício direito ao recurso de constitucionalidade é abusivo (artigo 334.º do Código Civil), o que, no caso concreto, não se verifica, nem é alvitrado.
b) A Recorrente invocou na arguição da inconstitucionalidade e no requerimento de interposição do recurso, princípios constitucionais de que é reflexamente beneficiária.
c) A Requerente concretiza e alarga nas suas alegações o leque de princípios que considera violados pela norma do n.º 4 do artigo 77.º, tal como foi interpretado, sendo inequivocamente beneficiária directa destes.
d) O 1.º Requerido tem interesses contratuais directos próprios na aplicação dos princípios constitucionais invocados, interesses que se transmitem à Recorrente por o recurso interposto aproveitar sempre aos compartes, tudo se passando como se ocorresse litisconsórcio necessário entre estes.
C – Quanto à possibilidade de se entender que não estão verificados os pressupostos necessários ao conhecimento do recurso na parte referente aos artigos 102.º, n.º 2, e 388.º, alínea b), do Código de Processo Civil (CPC), interpretados “no sentido de a incompetência material só poder ser arguida até ao saneador, mesmo em casos de procedimento cautelar decretado sem contraditório prévio do requerido”.
Quanto ao eventual não conhecimento desta parte do recurso, o douto despacho, datado de 18 de Outubro de 2010, admite tal hipótese, com base em dois fundamentos distintos, que se passam a analisar de forma separada sobre as duas seguintes subalíneas denominadas C.1 e C2.
C.1 – Quanto à hipótese de o Tribunal poder vir a entender que não estão verificados os pressupostos necessários ao conhecimento do recurso na parte referente aos artigos 102.º, n.º 2, e 388.º, alínea b), do Código de Processo Civil (CPC), caso não se possa dizer que a norma assim aplicada constitui uma “decisão surpresa”, podendo antes traduzir a aplicação de regras bem conhecidas do processo civil.
(…)
C.1.5 – Conclusão.
Pelo exposto, conclui a Recorrente que:
a) A questão do não conhecimento do recurso quanto à questão da incompetência material do Tribunal foi conhecida oficiosamente pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa;
b) O sentido normativo atribuído aos artigos em causa não foi alvitrado em nenhuma das alegações das partes Recorrentes, das contra-alegações das Recorridas, nem sequer no douto parecer, junto às contra-alegações, elaborado pelo Exm.º Senhor Professor Doutor Lebre de Freitas, a favor da improcedência da questão da incompetência material das Varas Cíveis de Lisboa;
c) Tal sentido interpretativo não é comum, nem era previsível à luz da jurisprudência conhecida, sendo até inédito tanto quanto a Recorrente pôde até à data verificar;
d) Conforme consta do douto Ac. do Tribunal Constitucional n.º 358/98, de 12.05.1998 (DR, II, de 17.7.1998, págs. 10025 e s.), presentemente, antes de decidir não conhecer do recurso, deve o relator – que é quem tem competência para o efeito – ouvir cada uma das partes, por 10 dias, a semelhança do que ocorreu aliás nos autos através do douto despacho de 18.10.2010;
e) O Tribunal a quo omitiu a notificação prevista no artigo 704.º, n.º 1, do C.P.Civil;
f) A notificação omitida permitiria à Recorrente a oportunidade processual óbvia para invocar a inconstitucionalidade dos artigos 102.º, n.º 2, e 388.º, alínea b), do Código de Processo Civil, na interpretação que veio a ser adoptada pelo Tribunal a quo;
g) No caso concreto, a dispensa da prévia arguição da inconstitucionalidade à Recorrente, é exigência do direito a um processo equitativo e justo e do princípio da confiança do cidadão, que deve poder confiar que o Estado e, concretamente, os Tribunais, conduzirão o processo cumprindo estritamente os direitos processuais previstos na lei, e com respeito pelo princípio do contraditório.
h) Negar à Recorrente o direito ao recurso de constitucionalidade sobre uma norma que resolveu uma questão nova, conhecida oficiosamente e sem possibilidade de contraditório, da sua perspectiva, viola o direito ao recurso de constitucionalidade [artigo 20, n.º 1, e 280, n.º 1, al. b)] de forma desproporcional perante o bem de celeridade processual que se visa atingir.
i) A decisão de não conhecer do recurso quanto à questão da incompetência material por extemporânea constitui uma decisão surpresa, dispensando a prévia arguição da inconstitucionalidade das normas aplicadas, sob pena de esvaziamento das garantias de recurso em matéria de constitucionalidade.
j) Existindo dúvidas sobre o alcance da exigência de prévia arguição da inconstitucionalidade devem as mesmas ser resolvidas a favor da Recorrente, à luz do direito constitucional ao recurso, do direito à tutela jurisdicional efectiva e eficaz e de proibição de indefesa, consagrados no art.º 20º, e no princípio da tutela da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático, já que, no caso concreto, foi o Tribunal recorrido que contribuiu, de forma involuntária mas decisiva, para limitar as oportunidades processuais de tal invocação, ao deixar de ordenar o cumprimento da notificação prevista no artigo 704.º, n.º 1, do C.P.Civil e, assim, de publicitar intraprocessualmente a hipótese de vir a aderir à interpretação normativa aplicada.
C.2 – Quanto à hipótese de o Tribunal poder vir a entender que não estão verificados os pressupostos necessários ao conhecimento do recurso na parte referente aos artigos 102.º, n.º 2, e 388.º, alínea b), do Código de Processo Civil (CPC), porque pode revelar-se inútil o conhecimento desta questão de constitucionalidade, visto que, apesar de tudo, o tribunal recorrido, tomou posição sobre a questão da competência material, no sentido de considerar competente o tribunal judicial.
(…)
C.2.4 – Conclusão.
Pelo exposto, conclui a Recorrente que:
a) A “decisão a proferir” sobre a questão de constitucionalidade pode “influir utilmente no julgamento da questão discutida no processo”.
b) É irrelevante verificar que tal influência depende, no caso concerto, da procedência do recurso de constitucionalidade e, subsequentemente, do recurso para uniformização de Jurisprudência que a Recorrente declarou nos autos pretender interpor; essencial é que a decisão recorrida possa vir a ser alterada na sequência do recurso interposto.
c) A Recorrente tem um interesse relevante no conhecimento da questão de constitucionalidade em causa, que consiste em assegurar o exercício do direito ao recurso previsto no artigo 763.º, do C.P.Civil.
Nada obsta assim à apreciação da constitucionalidade material das normas contidas nos artigos 102.º, n.º 2, e 388.º, n.º 1, al. b), ambos do Código de Processo Civil, na interpretação sempre em referência.
Termos em que, requer a V.Ex.ªs que o Tribunal Constitucional conheça do recurso de constitucionalidade, nos termos dos artigos 70º n.º 1, alíneas a) e b) e 78.º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional, relativamente a todas as normas a que se reporta o requerimento de interposição de recurso.
Para prova da utilidade do recurso de constitucionalidade e o interesse legítimo na interposição do mesmo, requer a junção aos autos de fotocópia do Acórdão do STJ, que fundamentará (obtida a procedência do recurso de constitucionalidade quanto ao pedido n.º 4, acima formulado) o recurso para uniformização de Jurisprudência para o Plenário das Secções Sociais do Supremo Tribunal de Justiça, relativamente à interpretação a dar ao artigo 89.º, n.º 1, al. c), da Lei de Organização de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judicias (e não, como por lapso se referiu no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, ao artigo 121.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto).»
Ainda a respeito das questões prévias suscitadas, o recorrido B. SGPS, SA, pronunciou-se pelo não conhecimento do recurso na parte indicada no citado despacho, pelas razões neste avançadas.
4. A recorrente apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«A – QUANTO À CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA CONTIDA NO ARTIGO 77.º, N.º 1, DO CSC, OBJECTO DE RECUSA DE APLICAÇÃO:
1.º - Resulta do artigo 77.º, n.º 1 e 3, do CSC, que só os sócios [leia-se, ou accionistas] podem intentar, no interesse da sociedade, a acção contra os gerentes ou administradores, e não os antigos sócios ou ex-accionistas, ou de outra forma não se utilizaria [no n.º 1] a conjugação verbal “possuam”, correspondente ao tempo verbal presente.
2.º - Do douto Acórdão recorrido decorre que o Tribunal a quo considerou que a 2.ª Requerente não tinha legitimidade para interpor o arresto cautelar à luz do artigo 77.º, n.º 1, do CSC, “por já não ser titular das suas participações na totalidade do capital social do C. SA”.
3.º - Resulta ainda do mesmo, que o Tribunal “a quo”, ao preparar-se para aplicar a norma em causa ao caso concreto, detectou, atenta a fundamentação a que veio a aderir, a pretensa desconformidade de tal norma com a Constituição em casos em que o accionista tenha deixado de o ser por acto apropriativo e unilateral do Estado, concluindo que, por o legislador não ter previsto esta hipótese, haveria de se criar, por imperativo constitucional, a norma que conferisse ao ex-accionista legitimidade para o procedimento, norma que enunciou e veio a aplicar ao caso concreto.
4.º - Em tal processo o Tribunal “a quo” mais não fez do que recusar de forma implícita a aplicação da norma contida no artigo 77.º, n.º 1, do CSC, na interpretação que liminarmente lhe conferiu de que “o sócio único (…) por já não ser titular das suas participações na totalidade do capital social do C. SA deixa de estar legitimado para exercer o seu direito de accionar os ex-administradores do C. SA nos termos do art.º 77 do CSC”, criando depois a norma “por imposição constitucional da tutela efectiva pelo julgador intérprete” que julgou necessária para assegurar, no caso concreto, o cumprimento do “princípio constitucional ínsito no art.º 20 da Constituição da República relativo ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, que é uma norma-princípio estruturante do Estado de Direito democrático”.
5.º - Na óptica da Recorrente, a Constituição não impõe a recusa de aplicação da norma contida no artigo 77.º, n.º 1, do CSC, interpretado no sentido recusado no Acórdão recorrido.
6.º - O direito de acesso à Justiça garante o acesso a um juiz de quem tem um direito, ou interesse legítimo, em levar a sua causa a Tribunal, e não impõe que se conceda o direito à acção a quem só detenha um mero interesse indirecto ou reflexo.
7.º - A concessão de legitimidade activa para interpor providências cautelares em benefício da Sociedade em que se é, ou foi, accionista, cabe na discricionariedade constitutiva do legislador ordinário.
8.º - Ou seja, não impõe a Constituição a atribuição de legitimidade activa a meros detentores de interesses indirectos ou reflexos, impondo sim que os mesmos tenham legitimidade para intentar acções próprias para tutela dos seus interesses directos, como é o caso da acção prevista no artigo 79.º, do CSC.
9.º - O douto Acórdão recorrido reitera o entendimento adoptado pela 1.ª instância que negou fundamento às Requerentes (por falta de prova de factos constitutivos de qualquer direito indemnizatório) para requererem, em seu benefício e à luz do artigo 79.º, do CSC, a providência cautelar de arresto, e que afirma que, por via do procedimento, a 2.ª Requerente só vê tutelado um seu interesse indirecto ou reflexo.
10.º - Mesmo o interesse indirecto e reflexo do accionista em demandar no interesse da Sociedade só foi considerado relevante pelo legislador quando a participação atinja pelo menos 5%, ou 2% caso as acções da sociedade estejam cotadas em bolsa, o que demonstra que o legislador sentiu necessidade de limitar os casos em que atribuía ao accionista legitimidade activa para a acção “uti singuli”.
11.º - O referido interesse indirecto do accionista cessa ou diminui consideravelmente a partir do momento em que perdeu a qualidade de accionista, independentemente da perda dessa qualidade ter, ou não, ocorrido através de acto involuntário ou unilateral. O interesse indirecto do accionista não se confunde com o interesse indirecto e pessoal do ex-accionista. O accionista prossegue nitidamente o interesse social, já o ex-accionista apenas prossegue o seu interesse pessoal, ainda que o mesmo possa eventualmente ser convergente com o da sociedade.
12.º - No caso concreto, o ex-accionista receberá a sua indemnização com base no valor das suas participações determinado em avaliação do “efectivo património líquido” do C. .à data da nacionalização – 11.11.2008 – e, por conseguinte, não considerando as eventuais indemnizações a pagar ao C., S.A. por ex-Administradores do mesmo em data necessariamente posterior.
13.º - Isto é, se o ex-accionista se achar prejudicado com o valor pelo qual lhe foi (ou venha a ser) paga pela sua participação no âmbito da nacionalização, ou reclama do valor que recebeu directamente junto do accionista adquirente Estado, ou reclama directamente, em acção por si intentada com base no artigo 79.º, n.º 1, do CSC, contra os ex-Administradores que tenham dado azo à desvalorização das suas acções e à sua subsequente transmissão – via nacionalização – por um valor inferior àquele que existiria não fosse à conduta de tais ex-Administradores.
14.º - Consequentemente, é de se concluir que o direito à tutela judicial efectiva dos direitos titulados pelo ex-accionista, está legalmente assegurado com a previsão do artigo 79.º, do Código de Sociedades Comerciais.
15.º - Assim, não ofende o direito de acesso à Justiça que a 2.ª Requerente apenas tenha legitimidade enquanto accionista para requerer a providência cautelar de arresto no interesse da sociedade de que é accionista e enquanto o for.
Sem conceder:
16.º - Mas, mesmo que se entendesse que o direito de acesso à Justiça compreende a tutela de direitos de terceiro, haveria sempre que aferir se se justificaria considerar como inconstitucional a norma contida no artigo 77.º, n.º 1, do CSC, à luz da ponderação de direitos e interesses constitucionalmente consagrados e conflituantes.
É que,
17.º - O direito de acção de quem demanda é limitado e terá de ser enformado pela exigência de um processo equitativo.
18.º - Na óptica da Recorrente, o princípio do processo equitativo exige, em princípio, que o impulso processual seja do titular do direito que se pretende tutelar ou acautelar com a acção ou procedimento, sob pena de se estar a litigar no pressuposto e em nome da efectivação de um direito que, a limite, o respectivo titular pode reconhecer que não tem, decidir não exercer contra o demandado, ou não pretender exercê-lo pela forma concreta com que veio a ser exercido em seu alegado benefício.
19.º - O direito ou interesse de não ser demandado (desde logo, de forma arbitrária ou desnecessária, numa causa que pode até não vir a ser ratificada pelo titular do direito a tutelar ou acautelar) encontra fundamento específico no direito a um processo equitativo enquanto direito, liberdade e garantia implícito, e que constitui ainda um corolário do direito ao bom nome e à reserva da intimidade da vida privada (artigo 26.º, n.º 1, da CRP), que goza de natureza análoga a direito, liberdade e garantia e fica sujeito ao seu regime por força do artigo 17.º, da CRP.
20.º - Feita a ponderação entre o eventual interesse indirecto e reflexo em demandar sozinho de quem (como o ex-accionista) não tenha um benefício directo no desfecho da causa, e o interesse a não ser desnecessariamente demandado numa causa que não seja impulsionada pelo titular do interesse directo invocado, não se vislumbra que seja inconstitucional vedar, através do artigo 77.º, n.º 1, do CSC, a legitimidade ao ex-accionista, que, conforme acima se referiu, tem um interesse necessariamente diferente do ainda accionista.
21.º - A boa administração da Justiça, é em si, um direito ou interesse colectivo constitucionalmente consagrado e inerente ao próprio princípio do Estado de direito democrático (art. 2.º, da CRP), sendo uma das tarefas do próprio Estado (artigo 9.º, al. b) e artigo 202.º, ambos da CRP).
22.º - Na óptica da Recorrente o direito à boa administração da Justiça exige, em princípio, que o impulso processual pertença ao titular do direito a acautelar em juízo, sob pena de se admitir a hipótese de este vir a não ratificar o procedimento, e da consequente caducidade do mesmo, com a dispersão de meios que tal implica em prejuízo do bom funcionamento dos Tribunais.
23.º - O artigo 62.º, n.º 1, da CRP, consagra o direito à propriedade privada, direito este de natureza complexa que se subdivide num conjunto de outros direitos, como seja, o de o proprietário usar, fruir, vender, onerar, e dispor livremente do bem objecto da propriedade.
24.º - Qualquer procedimento cautelar com incidência no património do Requerido consubstancia uma compressão do direito de propriedade do mesmo com o objectivo de acautelar o direito creditório de terceiros sobre a pessoa do proprietário.
25.º - É, pois, natural que o legislador, dentro da discricionariedade que tem na matéria, limite os casos em que atribui legitimidade a meros titulares de interesses indirectos face à ponderação casuística dos interesses em presença, à luz dos princípios da igualdade, justiça, proporcionalidade, boa administração da Justiça e da proibição do excesso.
26.º - E daí também que se verifique a constitucionalidade da norma que vede a legitimidade ao ex-accionista em intentar procedimento cautelar, e, designadamente, o arresto preventivo.
Acresce que:
27.º - A sociedade beneficiária da providência tem direito fundamental em ser ela a enformar e impulsionar qualquer acção, ou providência, intentada em seu benefício.
28.º - O direito à tutela jurisdicional efectiva da sociedade beneficiária impõe, designadamente, que seja esta a configurar o pedido efectuado em seu benefício no procedimento, pela forma que considerar mais favorável aos seus interesses, que possa a escolher o meio processual a que recorre, que possa decidir se recorre ou não a Tribunal, se privilegia uma solução de acordo, se demanda este ou aquele seu ex-Administrador em concreto, e em que momento em que o faz.
29.º - Pertencendo a sociedade beneficiária do procedimento ao accionista único Estado, tem o mesmo direito à respectiva administração.
30.º - A garantia constitucional da propriedade pública e da iniciativa empresarial pública (artigos 81.º, als. b) e d), e 82.º, n.º 1 e n.º 2, da CRP) ficam em causa pela ingerência na gestão da referida sociedade de terceiros ex-accionistas, através da concessão aos mesmos de legitimidade para instaurar acções alegadamente no alegado interesse da sociedade pública.
31.º - Ora, o direito de acesso à Justiça não exige que ex-accionistas afectem a gestão da sociedade rejeitando a figura processual prevista no artigo 77.º, n.º 1, do CSC, e recriando a mesma com contornos abusivos e injustificados, sob pena de se lesar a iniciativa privada e, no presente caso, a iniciativa pública, constitucionalmente garantida.
32.º - A entenderem-se lesados, deverão ex-accionistas recorrer a outro meio processual, plasmado no artigo 79.º, do CSC.
33.º - Assim, caberia à empresa pública, ou ao seu novo accionista Estado, interpor a providência requerida, sendo irrelevante à luz da lei se o ex-accionista perdeu ou não essa qualidade de forma voluntária ou involuntária (como aconteceria no caso de amortização de uma quota, ou no caso de penhora e venda coerciva da mesma).
Por outro lado:
34.º - O princípio da certeza jurídica e da tutela da confiança impõe que se presuma que o legislador disse aquilo que quis dizer e que, na dúvida, se considere que a norma é conforme à Constituição, ao invés de a rejeitar com motivos de constitucionalidade em prejuízo das expectativas que a mesma criou nos respectivos destinatários.
35.º - Pelo exposto, a norma contida pelo artigo 77.º, n.º 1, do CSC, interpretada no sentido de o ex-accionista após nacionalização não ter legitimidade activa para intentar ou requerer acções, ou procedimento cautelares, no interesse da sociedade nacionalizada, não é materialmente inconstitucional e não viola o artigo 20.º da CRP, ou qualquer outra norma ou princípio constitucional, não havendo fundamento para a recusa da sua aplicação pelo Venerando Tribunal “a quo”.
Se assim não se entender:
B – DA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DA NORMA APLICADA (CRIADA POR INTEGRAÇÃO):
36.º - O Tribunal a quo criou uma nova norma para preencher a lacuna que decorreu da recusa de aplicação da norma contida no n.º 1 do artigo 77.º, do CSC, que enunciou da seguinte forma: o sócio titular único de todas as acções por acto apropriativo e unilateral do Estado, é parte legítima para propor acção social de responsabilidade contra os ex-Administradores com vista à reparação a favor da sociedade do prejuízo que esta tenha sofrido, quando a mesma a não haja solicitado. E tendo a 2.ª Requerente legitimidade para a acção tem-na para a interposição do arresto cautelar.”.
37.º - Assim, a norma objecto do recurso de constitucionalidade é também a norma resultante do processo da integração da alegada lacuna, contida no artigo 77.º, n.º 1, do CSC, interpretada no sentido de conceder legitimidade ao ex-accionista de uma sociedade nacionalizada para requerer, no interesse da mesma, procedimento cautelar, caso a mesma não o faça.
38.º - Dão-se “brevitatis causa” como integralmente reproduzidas as conclusões supra identificadas com os n.ºs 5 a 25, 27 a 34.
39.º - A inexistência de um interesse directo no procedimento, e o facto de o ex-accionista, já só prosseguir interesses pessoais e já não sociais é, na óptica da ora Recorrente, determinante para a inconstitucionalidade material da norma aplicada no douto Acórdão recorrido.
40.º - A norma criada e aplicada com o objectivo de atribuir legitimidade ao ex-accionista da sociedade beneficiária, sem necessidade de o impulso do procedimento ser da mesma, viola artigo 20.º, da CRP, por negar à sociedade beneficiária o direito à tutela jurisdicional efectiva.
41.º - Ao admitir-se através da norma aplicada que a sociedade controlada pelo Estado deixe de poder determinar se e quanto recorre a juízo para acautelar um direito que é seu, viola-se a própria propriedade pública e a garantia institucional do sector público empresarial (artigos 81.º, als. b) e d), e 82.º, n.º 1 e n.º 2, da CRP) e, portanto, a iniciativa empresarial pública, que ficam em causa pela ingerência desnecessária e ilegítima na gestão da referida sociedade por parte de terceiros, através da concessão de legitimidade para instaurar acções alegadamente no seu interesse.
42.º - A norma criada e aplicada no douto Acórdão recorrido é manifestamente imprevisível para o seu destinatário.
43.º - Ao ser afastada a aplicabilidade da norma claramente contida no artigo 77.º, n.º 1, do CSC, e ao ser criada subsequentemente - através de um processo de alegada integração de lacuna - uma nova norma que atribui legitimidade activa a um ex-accionista obviou-se «de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático” pelo que tal norma “terá de ser entendida como não consentida pela lei básica» ( cf. o Acórdão nº303/90, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 17º V., pág.65 e Diário da República, Iª série, de 26 de Dezembro de 1990).”.
44.º - Pelo que, salvo o devido respeito por opinião contrária, a norma criada e aplicada no douto Acórdão recorrido é materialmente inconstitucional por violar o princípio da certeza e da tutela da confiança jurídica.
45.º - A atribuição a uma mera ex-accionista (e já não a um accionista com uma participação tida como legalmente relevante) para intentar a designada acção “uti singuli” abre a porta para a tutela desnecessária do direito de acesso à jurisdição efectiva em beneficio de quem já só é titular de interesses pessoais, indirectamente inerentes à causa, em violação do direito ou interesse de não ser demandado (desde logo, de forma arbitrária ou desnecessária), num procedimento cautelar caracterizado pela dependência e instrumentalidade em relação à causa principal, que pode vir a não ser ratificado pelo titular do direito a acautelar.
46.º - A norma atributiva de legitimidade ao ex-accionista da sociedade pública, sem a exigência de listisconsórcio inicial activo, viola os artigos 18.º, n.º 2, 20.º, e 82.º, n.º 2, ambos da CRP, por negar de forma desnecessária à sociedade beneficiária o direito à propriedade, gestão e iniciativa da empresa pública nacionalizada, bem como, o princípio da segurança e da confiança jurídica, e restringe, de forma desnecessária, os direitos ao bom nome, à reserva da vida privada (art.º 26.º, n.º 1, da CRP), e o direito a um processo equitativo (art.º 20.º, n.º 4, da CRP), violando ainda os interesses constitucional inerentes à boa administração da Justiça, por violação do princípio da proibição do excesso (art.º 18.º, n.º 2, da CRP).
C – DA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DA NORMA DO ARTIGO 77.º, N.º 4, DO C.S.C. (interpretada no sentido de não ser necessário que a sociedade beneficiária da providência intervenha nos autos em data anterior à decisão que decrete a providência).
47.º - Está em causa a inconstitucionalidade material da norma contida no artigo 77.º, n.º 4, do CSC, interpretada no sentido de não ser necessário que a sociedade beneficiária da providência cautelar requerida por ex-accionista intervenha nos autos em data anterior à decisão que decrete a providência, ou seja, sem que seja exigido o litisconsórcio activo necessário inicial ou subsequente até à decisão do procedimento.
48.º - A ora Recorrente dá aqui como integralmente reproduzidos os argumentos expendidos supra contra a inconstitucionalidade da norma aplicada no douto Acórdão recorrido, na sequência da alega integração da lacuna do artigo 77.º, n.º 1, do CSC, atributiva de legitimidade activa ao ex-accionista sem exigência de litisconsórcio inicial.
49.º - Tais argumentos assumem relevância redobrada a partir do momento em que, não se trata apenas de atribuir legitimidade activa inicial ao ex-accionista de uma sociedade nacionalizada, e se admite também e cumulativamente que tal ex-accionista, litigue sozinho até à decisão que decrete o procedimento cautelar de arresto, ou seja, sem que se exija, pelo menos, a verificação de um litisconsórcio necessário activo subsequente.
50.º - Tal norma é, na óptica da Recorrente, materialmente inconstitucional:
a) por violar o princípio da proibição do excesso e o direito a um processo equitativo (art.º 20.º, n.º 4, in fine, da CRP), e restringir, de forma desnecessária, a tutela dos direitos ao bom nome, à reserva da vida privada (art.º 26.º, n.º 1, da CRP), em violação do princípio da proibição do excesso (art.º 18.º, n.º 2, da CRP), atribuindo uma legitimidade activa incondicional a um mero ex-accionista para intentar e obter a procedência, e, designadamente, o arresto preventivo, em que apenas tem interesse indirecto;
b) por violar o direito à boa administração da Justiça, que exige, em princípio, a presença em juízo de todas as partes directamente interessadas na resolução do litígio, de forma a evitar a repetição de causas, o desperdício de meios, e que os Tribunais produzam decisões eventualmente contraditórias sobre os mesmos factos e questões jurídicas; boa administração da Justiça que é inerente ao princípio do Estado de direito democrático (art. 2.º, da CRP), sendo uma das tarefas do próprio Estado (artigo 9.º, al. b) e (artigo 202.º, n.º 2, da CRP);
c) por violar o direito à propriedade dos Requeridos, de forma desnecessária e não proporcional (artigos 62.º, n.º 1, da CRP e 18.º, n.º 2, da CRP), ao permitir a atribuição incondicional, e não ao menos em casos de justo impedimento, de legitimidade activa e sem a exigência de um litisconsórcio necessário activo, ainda que subsequente, a um Requerente ex-accionista apenas indirectamente interessado no procedimento cautelar de arresto, o que consubstancia uma restrição ao direito de propriedade dos Requeridos (desnecessária, por exemplo, caso não exista interesse do titular do direito alegadamente acautelado, ou este não pretenda exercer o seu direito ao procedimento), obtida pela possibilidade de procedência de uma providência que impede o Requerido, por exemplo, de alienar ou onerar qualquer imóvel, ou de usar qualquer valor arrestado.
d) por violar os direitos próprios do ex-Administrador requerido, que se estendem à Recorrente, de exigir, logo de início, ou pelo menos, antes de ser decretado o arresto, a presença em juízo da entidade administrada, verificando-se a inconstitucionalidade da norma que, de forma desnecessária e incondicionada, atribua legitimidade activa e não condicionada, pelo menos, a um litisconsórcio activo necessário subsequente, à ex-accionista da sociedade que tenha deixado de o ser na sequência de processo de nacionalização.
51.º - A boa administração da Justiça exige um correcto conhecimento dos factos pelo Tribunal e, portanto, que todas as partes interessadas sejam em princípio ouvidas sobre estes, e se pronunciem de forma a esclarecer o Tribunal. Num caso de procedimento cautelar a decretar sem audiência prévia existem redobradas razões para se ouvir o titular do direito a acautelar, e não apenas um seu ex-accionista. Nesse caso, além de não se ouvir o Requerido, não se ouviria ainda o beneficiário da providência, o que se afigura uma desnecessária restrição aos interesses da boa administração da Justiça.
52.º - No concreto conflito de interesses entre os dos Requeridos em arresto e o interesse da ex-accionista requerer e obter sozinha o acautelar um direito creditório da sociedade nacionalizada através de arresto preventivo, prevalece manifestamente o primeiro, a menos que se verifique uma qualquer situação impeditiva de o procedimento ser impulsionado ou, pelo menos, ratificado antes de declarado, pela beneficiária do mesmo, isto é, a sociedade nacionalizada.
53.º - Ao admitir-se, de forma incondicional, que a sociedade controlada pelo Estado deixe de poder determinar se, e quanto, recorre a juízo para acautelar um direito que é seu, violam-se as garantias institucionais da propriedade pública e da iniciativa empresarial pública (implícita na tutela do sector público empresarial: artigos 81.º, als. b) e d), e 82.º, n.º 1 e n.º 2, da CRP), que são colocados em causa pela ingerência desnecessária e ilegítima na gestão da referida sociedade por parte de terceiros ex-accionista, através da concessão de legitimidade para instaurar procedimentos e prosseguir com eles, alegadamente, no interesse da empresa pública.
54.º - No entender da Recorrente a norma contida no n.º 4 do artigo 77.º, do CSC, quando interpretada, singular ou conjugadamente, com a norma resultante da integração do n.º 1 deste artigo, interpretadas singular ou conjugadamente, como o foram no douto Acórdão recorrido, no sentido, de concederem legitimidade ao ex-accionista de uma sociedade nacionalizada para requerer e ver decretado, mesmo após a nacionalização, no interesse da sociedade, procedimento cautelar sem que seja necessário que a sociedade beneficiária intervenha nos autos em data anterior à decisão que decrete a providência, são materialmente inconstitucionais, por assumirem um sentido normativo manifestamente imprevisível para o destinatário da norma, em violação dos artigos 2.º e 9.º, al. b), 20.º (direito de acesso ao Direito, logo previsível) da CRP.
55.º - Na óptica da Recorrente, a imposição de se ser Requerido num arresto (decretado sem audiência prévia) interposto apenas e só por um ex-accionista que age à luz de um invocado interesse de um terceiro nos autos, viola, de forma desnecessária e desproporcional, o direito a não se ser demandado, ou a sê-lo num processo justo e equitativo, no qual se assegure, ainda antes da decisão do procedimento, que o beneficiário dessa providência, tem efectivo interesse na mesma, garantindo-se que não sejam intentadas acções temerárias, ou à revelia da vontade real do pretenso titular do direito acautelado.
56.º - Não se vislumbra existir interesse constitucionalmente relevante que possa justificar uma tão acentuada, e desnecessária, compressão do direito (ou interesse) a não ser demandado e “condenado” em procedimento que não tenha o impulso ou, “ad mínimo”, a intervenção do beneficiário directo da mesma, ou seja, do titular do direito mediante o qual é decretada a providência.
57.º - Para obviar à hipótese desnecessária de se estar a requerer e fazer decretar um providência de arresto em prejuízo de terceiros bastaria chamar a beneficiária da mesma para que esta passe a intervir nos autos, e expresse nos mesmos o seu efectivo interesse ou desinteresse pela lide.
58.º - Ao formular-se uma norma de sentido contrário, como aplicada pelo Tribunal “a quo”, permitem-se demandas desnecessárias e ilegítimas.
59.º - A norma em causa, ao deixar de exigir a verificação de um litisconsórcio necessário activo inicial, ou subsequente, em procedimentos cautelares permite, designadamente, em procedimentos de arresto cautelar, a restrição desadequada e desnecessária de direitos patrimoniais dos Requeridos, constitucionalmente consagrados em violação do artigo 62.º, n.º 1, da CRP.
60.º - Tais normas interpretadas, nos mencionados termos, de não ser necessária a consulta da sociedade nacionalizada são ainda materialmente inconstitucionais por negarem o direito à gestão dos Estado relativamente a empresas publicas, e permitirem em tese prejuízos para o seu accionista único, o Estado, e consequentemente, permitirem lesões nos bens constitucionais das propriedade pública e da iniciativa empresarial pública (artigos 81, al. b) e d), e 82, n.º 1 e n.º 2, CRP).
D – DA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DOS ARTIGOS 102.º, n.º 2 e 388.º, N.º, AL. B), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (interpretadas, singular ou conjugadamente, no sentido de a incompetência material só poder ser arguida até ao despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência de discussão e julgamento, mesmo em casos de procedimento cautelar decretado sem contraditório prévio em que tal excepção tenha sido invocada imediatamente após a citação da Requerida em sede de recurso):
61.º - Estão em causa as normas contidas nos artigos 102.º, n.º 2 e 388.º, n.º, al. b), do Código de Processo Civil, interpretadas, singular ou conjugadamente, no sentido de a incompetência material só poder ser arguida até ao despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência de discussão e julgamento, mesmo em casos de procedimento cautelar decretado sem contraditório prévio em que tal questão tenha sido suscitada, imediatamente após a notificação da Requerida, em sede de recurso.
62.º - A razão que preside à previsão do artigo 102.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, é, essencialmente, a garantia da celeridade processual, a qual tem assento constitucional no artigo 20.º, n.º 4 e 5, da CRP.
63.º - Se se admite que o Requerente poderá, após a sua notificação para o procedimento (e, assim, após “o início da audiência de discussão e julgamento” já efectuada), arguir a excepção da incompetência material do Tribunal através da dedução de oposição e apresentação de prova, então, nada obsta, do ponto de vista da celeridade processual, a que o faça de imediato em sede de recurso, evitando-se uma oposição inútil, uma vez que o Tribunal de 1.ª instância já se tenha pronunciado expressamente sobre a questão prévia em causa, no sentido de se considerar materialmente competente.
64.º - O direito de acesso à jurisdição judicial efectiva impõe que “na organização dos tribunais e no recorte dos instrumentos processuais” é vedada “a criação de dificuldades excessivas e materialmente injustificadas no direito de acesso aos tribunais”.
65.º - É manifesto que a previsão de prazos demasiado curtos para a arguição de excepções, ou de quaisquer limitações ao direito ao recurso, consubstanciam dificuldades de acesso à jurisdição judicial efectiva.
66.º - Exigir ao Requerido que se oponha e apresente prova junto da 1.ª instância para poder validamente invocar a incompetência material do Tribunal, caso o Requerido não pretenda opor-se ao arresto, mas apenas impugnar a decisão que o decretou, viola o direito ao acesso à Justiça, à própria celeridade processual, bem como, à exigência constitucional de um processo equitativo, previstos no artigo 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, da CRP, direitos que se acham desnecessariamente e desproporcionalmente restringidos pelas normas aplicadas no douto Acórdão sob recurso (art.º 18.º, n.º 2, da CRP).
67.º - Por outro lado, recusar o conhecimento do recurso quanto à questão da incompetência material do Tribunal de 1.ª instância consubstancia a negação do direito à reapreciação de uma questão, com o argumento de que a questão já não pode ser suscitada em recurso, é, no caso concreto (em que o recurso é a primeira intervenção da Requerida após a citação e em que a decisão recorrida se pronunciou a favor da competência material do Tribunal), uma restrição desnecessária e desproporcional do direito ao recurso e a um processo equitativo.
68.º - Em nada ganhariam os autos, em termos de celeridade processual, com a imposição ao Recorrido do ónus de se opor à decisão que decretou o arresto, ao invés de recorrer, para poder suscitar a questão da incompetência material do Tribunal.
69.º - Assim, salvo melhor entendimento, não se verifica sequer no caso em apreço um verdadeiro conflito entre bens constitucionalmente consagrados para que se tenha de aferir qual a forma correcta de se restringir ou compatibilizar tais direitos, em termos de salvaguarda do núcleo essencial dos direitos e de respeito do princípio da proibição do excesso.
70.º - As normas contidas nos artigos 102.º, n.º 2, e 388.º, n.º 1, al. b), ambos do Código de Processo Civil, quando interpretadas, singular ou conjugadamente, como o foram no douto Acórdão recorrido, são materialmente inconstitucionais por violação do direito ao recurso, do acesso à Justiça, à celeridade processual e à exigência constitucional de um processo equitativo, previstos no artigo 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, da CRP, direitos que foram desnecessariamente e desproporcionalmente restringidos pela norma aplicada no douto Acórdão sob recurso (art.º 18.º, n.º 2, da CRP).
V – PEDIDO:
Termos em que, deve o presente recurso, apreciado que seja nos termos dos artigos 70º n.º 1, alíneas a) e b) e 78.º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional, relativamente a todas as normas a que se reporta o requerimento de interposição de recurso, ser julgado procedente, por provado, e, consequentemente:
1 – Declarada materialmente constitucional a norma contida no artigo 77.º, n.º 1, do CSC, a cuja recusa de aplicação se procedeu, interpretada no sentido de o ex-accionista após nacionalização não ter legitimidade activa para intentar ou requerer acções, ou procedimento cautelares, no interesse da sociedade nacionalizada, por não violar o artigo 20.º da CRP, ou qualquer outra norma ou princípio constitucional, não havendo fundamento para a recusa da sua aplicação, ordenando-se a baixa dos autos ao Venerando Tribunal da Relação para que se proceda à alteração do douto Acórdão recorrido em função do referido juízo de constitucionalidade.
Se assim não se entender, subsidiariamente ao pedido 1:
1.1 - Declarada materialmente inconstitucional a norma, resultante do processo de integração da alegada lacuna contida no artigo 77.º, n.º 1, do CSC, interpretada no sentido de conceder legitimidade ao ex-accionista de uma sociedade nacionalizada para requerer, no interesse da mesma, procedimento cautelar, mesmo após a nacionalização em benefício da sociedade nacionalizada, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, 20.º, 26.º, n.º 1, 81.º, als. b) e d), e 82.º, n.º 1 e n.º 2, todos da CRP, do princípio da salvaguarda da gestão e iniciativa empresarial pública, do princípio da segurança e da confiança jurídica, do princípio da boa administração da Justiça, do princípio da proibição do excesso, e o direito a um processo equitativo (art.ºs 20.º, n.º 4, in fine, da CRP).
Independentemente da procedência do pedido 1 ou 1.1:
2 - Declarada materialmente inconstitucional a norma contida no n.º 4 do artigo 77.º, do CSC, quando interpretada, singular ou conjugadamente com a norma resultante da integração do n.º 1 deste artigo (identificada no número anterior do pedido), no sentido de conceder legitimidade ao ex-accionista de uma sociedade nacionalizada para requerer e ver decretado, mesmo após a nacionalização, no interesse da sociedade nacionalizada, procedimento cautelar sem que seja necessário que a sociedade beneficiária intervenha nos autos em data anterior à decisão que decrete a providência (ou seja, sem que se exija a verificação de um litisconsórcio activo inicial ou, “ad minimo”, subsequente, que faça intervir no procedimento a sociedade nacionalizada antes da decisão do procedimento), por violação dos artigos 18.º, n.º 2, 20.º, 26.º, n.º 1, 81.º, als. b) e d), 62.º, e 82.º, n.º 1 e n.º 2, todos da CRP, do princípio da salvaguarda da gestão e iniciativa empresarial pública, do princípio da segurança e da confiança jurídica, do princípio da boa administração da Justiça, do princípio da proibição do excesso e do direito a um processo equitativo (art.ºs 20.º, n.º 4, in fine, da CRP).
3.º - Declaradas materialmente inconstitucionais as normas contidas nos artigos 102.º, n.º 2, e 388.º, n.º 1, al. b), ambos do Código de Processo Civil, quando interpretadas, singular ou conjugadamente:
a) no sentido de a incompetência material só poder ser arguida até ao despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência de discussão e julgamento, mesmo em casos de procedimento cautelar decretado sem contraditório prévio, em que tal questão tenha sido invocada imediatamente após a notificação da decisão que decretou sem contraditório a providência à Requerida em sede de recurso, por violação do direito ao recurso, do acesso à Justiça, à celeridade processual e à exigência constitucional de um processo equitativo, previstos no artigo 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, da CRP, direitos que foram desnecessariamente e desproporcionalmente restringidos pela norma em causa (art.º 18.º, n.º 2, da CRP); e
b) no sentido de se impor ao Requerido - em procedimento cautelar decretado sem contraditório prévio – o ónus de deduzir oposição (e não recorrer) para poder invocar tempestivamente a excepção da incompetência material do Tribunal de 1.ª instância, nos casos em que o Tribunal já se tenha declarado, de forma expressa, materialmente competente para julgar a causa, por violação do direito ao recurso, do acesso à Justiça, à celeridade processual, e à exigência constitucional de um processo equitativo, previstos no artigo 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, da CRP, direitos que foram desnecessariamente restringidos pela norma em causa (art.º 18.º, n.º 2, da CRP).»
5. O recorrido B. SGPS, SA, contra-alegou, concluindo o seguinte:
«I - O recurso interposto da decisão que recusou a aplicação da norma do art.° 77.°, n.° 1, do CSC, interpretada no sentido de os ex accionistas não terem legitimidade activa para intentar ou requerer acções ou procedimentos cautelares no interesse da sociedade nacionalizada, ao abrigo do art.° 70.°, n.° 1, alínea a) da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), é inadmissível.
II - Para que o recurso seja admissível, ao abrigo desta alínea, é necessário que o Tribunal tenha desaplicado uma norma com fundamento na sua desconformidade com a Constituição;
III - Conforme se constata da leitura do Acórdão recorrido, o Tribunal não recusou, nem explicita nem implicitamente, a aplicação da norma contida no art.° 77.º, n.° 1, do CSC, nem formulou qualquer juízo sobre a sua inconstitucionalidade;
IV - O que se conclui da análise do Acórdão recorrido é que, constatada a existência de uma lacuna legal, o Tribunal, por via de integração, aplicou o conteúdo e regime jurídico da norma contida no art.° 77.º à situação não prevista legalmente, aplicação essa motivada por se considerar estar em causa uma situação análoga.
V - A integração da referida lacuna não traduz, ao contrário do pretendido pelo Recorrente, uma recusa implícita do art.° 77.º, n.° 1, do CSC, mas a necessidade de acautelar, à luz dos princípios constitucionais do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva, uma situação não prevista na lei, não se podendo entrever aqui qualquer juízo de inconstitucionalidade da norma contida no 77.°, n.° 1, do CSC.
VI - Não se verificam, pois, os pressupostos previstos no art.° 70.°, n.° 1, alínea a), da LTC, pelo que o presente recurso, nesta parte, é inadmissível, como bem notou o Juiz Relator no despacho de 18 de Outubro de 2010.
VII - O recurso de constitucionalidade da decisão do tribunal que aplicou a norma do art. 77.°, n.° 4, do CSC, interpretada no sentido de não ser necessário que a sociedade beneficiária da providência intervenha nos autos em data anterior à decisão que decrete a providência, é igualmente inadmissível;
VIII - O recurso para o Tribunal Constitucional é sempre restrito a uma questão de constitucionalidade;
IX - Não obstante a Recorrente ter suscitado a questão da inconstitucionalidade da norma do art.° 77.º n.° 4, do CSC, quando interpretada no sentido de não ser exigível a presença da sociedade beneficiária em juízo, a questão colocada não é uma questão de constitucionalidade, mas meramente processual — a de saber se, nos termos do referido artigo, resulta a consagração de uma situação de litisconsórcio activo ou não
X - Resulta claro do contexto em que foi arguida a inconstitucionalidade da norma em causa que a Recorrente pretendeu apenas manifestar a sua discordância com a decisão do Tribunal de 1.ª instância sob a veste de pretensa questão de constitucionalidade;
Xl - Atenta a limitação quanto ao objecto do recurso para o Tribunal Constitucional já enunciada, deve o presente recurso, nesta parte, ser julgado inadmissível.
XII - Mesmo que assim não se entenda, a Recorrente não logrou suscitar de forma adequada a inconstitucionalidade da norma em causa interpretada no sentido exposto, incumprindo a exigência do art.° 72.°, n.° 2, da LTC, pois que deveria ter especificado concretamente as razões substanciais da incompatibilidade da interpretação normativa com a Lei Fundamental, de forma a que o Tribunal a quo se pudesse pronunciar sobre a questão da constitucionalidade, - o que não fez - pelo que, também por esta via, o presente recurso seria inadmissível.
XIII - Acresce que a maioria das normas e princípios constitucionais alegadamente violados - direito à tutela jurisdicional efectiva da sociedade beneficiária, as garantias institucionais da propriedade pública e da iniciativa empresarial pública - tem por objecto a tutela de interesses de terceiros, pelo que é ainda manifesta a falta de legitimidade da Recorrente para impugnar a constitucionalidade da interpretação normativa em causa do art.° 77.º n.° 4, do CSC, com aqueles fundamentos.
XIV - O recurso de constitucionalidade da decisão que aplicou as normas contidas no art.° 102.°, n.° 2 e 388.º, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Civil, interpretadas, singular ou conjugadamente, no sentido de a incompetência material só poder ser arguida até ao despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência de discussão e julgamento, mesmo em casos de procedimento cautelar decretado sem contraditório prévio em que tal excepção tenha sido invocada imediatamente após a citação da Requerida em sede de recurso, é também inadmissível;
XV - Nos termos do art.° 70.°, n.º 1, alínea b), da LCT, cabe recurso das decisões dos tribunais que apliquem normas cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada no processo.
XVI - O art.° 72.°, n.° 2, da LTC, concretiza esta alínea estipulando que “só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”’.
XVII - A Recorrente em lado algum no processo, nem mesmo no recurso por si apresentado da sentença que decretou o arresto, alegou a inconstitucionalidade das normas em causa, apenas o tendo feito no recurso que interpõe para o Tribunal Constitucional;
XVIII - Na ausência de cumprimento do ónus imposto pelo art.° 72.º, n.º 2, da LTC, o recurso deve ser julgado inadmissível por falta de preenchimento de um dos pressupostos de que depende a sua admissibilidade;
XIX - A declaração pelo Tribunal a quo da extemporaneidade da arguição da excepção de incompetência absoluta em razão da matéria não configura, sequer, uma “situação absolutamente excepcional ou anómala”, nem “absolutamente imprevisível”, susceptível de configurar uma “decisão-surpresa”, mas antes uma decorrência lógica das regras estabelecidas, nesta matéria, no Código de Processo Civil, nos art.°s 102.º, n.° 2 e 388.º, do CPC;
XX - Consequentemente, o conhecimento da questão da inconstitucionalidade deveria ter sido suscitada perante o Tribunal a quo, nos termos do art.° 72.º, n.° 2, pelo que, não o tendo sido, deve o presente recurso, nesta parte, ser julgado inadmissível.
XXI - Por fim, o recurso interposto da decisão que aplicou a norma criada na sequência do processo de integração da lacuna legal, reputada inconstitucional, a qual atribui legitimidade ao sócio titular único de todas as acções por acto apropriativo e unilateral do Estado, para propor acção social de responsabilidade contra os ex-administradores com vista à reparação a favor da sociedade do prejuízo que esta tenha sofrido, quando a mesma a não haja solicitado, deve ser julgado improcedente.
XXII - Desde logo, a referida norma não viola o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art.° 20.° da CRP, o qual não pode ser entendido como reconhecido apenas a quem tenha um direito próprio e directo no desfecho da causa.
XXIII - Com efeito, não fazendo a lei qualquer distinção entre interesses directos e indirectos, não deve o intérprete distinguir.
XXIV - O direito de acesso à justiça para defesa dos interesses legalmente protegidos de que as Recorridas são titulares impunha que, na integração da lacuna legal, se previsse a atribuição de legitimidade às Recorridas para propor acção social de responsabilidade contra os ex-administradores com vista à reparação a favor da sociedade do prejuízo que esta tenha sofrido.
XXV - Tal solução é imposta ainda pelo princípio da igualdade, que impõe tratar igual o que é igual.
XXVI - Sendo a situação do ex-accionista desapossado das suas acções por acto apropriativo e unilateral do Estado e do sócio ainda titular das acções materialmente idêntica, devem ser sujeitas ao mesmo tratamento jurídico.
XXVII - Acresce que a norma criada também não contende com as normas constitucionais invocadas pela Recorrente, designadamente com o direito de acesso à justiça da sociedade beneficiária.
XXVIII - Em todo o caso, a Recorrente não tem legitimidade para impugnar a constitucionalidade da norma “criada”, com este fundamento, nem com outros por si invocados, pois está em causa a tutela de interesses de terceiros.
XXIX - Por tudo quanto vem exposto, entendem am Recorridam que nenhuma razão assiste ao Recorrente, devendo o presente recurso ser julgado inadmissível em relação à i) decisão que recusou a aplicação norma do art.° 77.º, n.º 1, do CSC, interpretada no sentido de os ex accionistas não terem legitimidade activa para intentar ou requerer acções ou procedimentos cautelares no interesse da sociedade nacionalizada, ao abrigo do art.° 70.º, n.° 1, alínea a) da Lei do Tribunal Constitucional (LTC); à ii) decisão do tribunal que aplicou a norma do art.º 77.º, n.° 4, do CSC, interpretada no sentido de não ser necessário que a sociedade beneficiária da providência intervenha nos autos em data anterior à decisão que decrete a providência; e à iii) decisão que aplicou as normas contidas no art.° 102.°, n.° 2 e 388.º, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Civil, interpretadas, singular ou conjugadamente, no sentido de a incompetência material só poder ser arguida até ao despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência de discussão e julgamento, mesmo em casos de procedimento cautelar decretado sem contraditório prévio em que tal excepção tenha sido invocada imediatamente após a citação da Requerida em sede de recurso; e julgado improcedente o recurso interposto da decisão que aplicou a norma contida no art.° 77.º, n.º 1, quando interpretada no sentido de atribuir legitimidade ao ex-accionista de uma sociedade nacionalizada para requerer, no interesse da mesma, procedimento cautelar, reputada inconstitucional.»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
A) Não conhecimento de parte do objecto do recurso
6. Cumpre decidir, em primeiro lugar, as questões de não conhecimento parcial do objecto do recurso suscitadas no referido despacho de fls. 1726/1727.
6.1. A primeira questão é a de saber se é admissível o recurso de constitucionalidade quanto à norma do artigo 77.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais (CSC), na parte em que vem interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), o que implica saber se a decisão recorrida recusou, ainda que de forma implícita, a aplicação desta norma legal.
A recorrente defende que o tribunal “a quo” recusou implicitamente a norma contida no artigo 77.º, n.º 1, do CSC, «(…) na interpretação que inicialmente lhe conferiu de que “o sócio (,,,) por já não ser titular das suas participações na totalidade do capital social do C., SA, deixa de estar legitimidade para exercer o seu direito de accionar os ex-administradores do C., SA, nos termos do artigo 77.º do CSC”, criando depois, por alegada integração de uma lacuna, a norma aplicada por “imposição constitucional da tutela efectiva pelo julgador intérprete” que julgou necessária para assegurar, no caso, o cumprimento do “princípio constitucional ínsito no artigo 20.º da Constituição (…)”».
A inexistência de uma qualquer recusa “implícita” de aplicação da norma do artigo 77.º, n.º 1, do CSC, afigura-se manifesta. Na verdade, o acórdão recorrido – quanto à questão de saber se a 2.ª Requerente da providência cautelar de arresto, ou seja, a sociedade B. SGPS, SA, tinha, ou não, legitimidade para requerer o arresto – começa por salientar (fls.1665 dos autos) que, à luz do disposto no artigo 77.º do CSC, tal legitimidade não assistiria àquela requerente; faz notar, depois, que «é patente que o legislador não previu a hipótese de o único titular de todas as acções de uma determinada sociedade, lesada reflexa ou indirectamente por actos dos ex-Administradores da mesma sociedade, como é o caso da 2.ª Requerente, se ver desapossada de todas as suas acções por acto unilateral e apropriativo do Estado. Mas ela é em tudo idêntica à do sócio, ainda titular de todas as acções da sociedade que se sinta reflexa e indirectamente lesado pela diminuição dessas participações sociais por actos dos ex-administradores que, atingindo o património social da sociedade, atingem reflexa e indirectamente o valor dessas participações». Dessa identidade de situações retira o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa a conclusão de que «se o legislador tivesse previsto a situação lacunar, não teria deixado de consignar a respectiva situação», decidindo que tal lacuna legal deve ser preenchida, “por imposição constitucional da tutela efectiva”, pela atribuição de legitimidade ao sócio desapossado da titularidade das acções por acto apropriativo e unilateral do Estado.
Resulta do exposto que o tribunal recorrido não recusou a aplicação da norma do artigo 77.º, n.º 1, do CSC, ainda que implicitamente. O alcance prescritivo com apoio directo e literal no enunciado normativo (a legitimidade dos sócios) não foi, por qualquer forma, eliminado, restringido ou corrigido, como seria necessário para que se pudesse equacionar uma situação de recusa implícita de aplicação. Deixando perfeitamente intocado esse alcance, o acórdão recorrido apenas acrescentou, para além dele, uma outra dimensão normativa (a legitimidade dos sujeitos que perderam a qualidade de sócios por acto de nacionalização). Considerando que, em relação a estes sujeitos, procedem as mesmas razões justificativas da solução legal, o intérprete aplicou-a, por analogia. A norma do artigo 77.º, n.º 1, do CSC foi, deste modo, utilizada como referencial normativo, para reconhecer a existência de uma lacuna no sistema e para, num segundo momento, a preencher.
Termos em que se conclui pelo não conhecimento do recurso de constitucionalidade quanto à norma do artigo 77.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais (CSC), na parte em que vem interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC).
6.2. A segunda questão é a de saber se estão verificados os pressupostos para a apreciação da constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, das normas do artigo 77.º, n.ºs 1 e 4, do CSC, interpretadas no sentido de «concederem legitimidade ao ex-accionista de uma sociedade nacionalizada para requerer e ver decretado, mesmo após a nacionalização, no interesse da sociedade, procedimento cautelar sem que seja necessário que a sociedade intervenha nos autos em data anterior à decisão que decrete a providência». Conforme alegação da recorrente (cfr. conclusão 27.ª das alegações apresentadas junto do Tribunal da Relação de Lisboa), tal norma, assim interpretada, é materialmente inconstitucional, por assumir um sentido normativo imprevisível para o destinatário da norma, em violação dos artigos 2.º, 9.º, alínea b), e 20.º, da Constituição.
Sobre esta questão, o acórdão recorrido limita-se a afirmar que “a lei não exige o litisconsórcio necessário dos sócios e da sociedade”, remetendo para jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto no mesmo sentido (cfr. fls. 1666 v. dos autos).
A recorrente foi notificada para se pronunciar sobre eventualidade do não conhecimento desta questão, por se admitir, por um lado, que possa não traduzir uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa e, por outro, por se ponderar que faltaria legitimidade à recorrente para suscitar uma questão de constitucionalidade que se reporta – quanto à dimensão reputada inconstitucional e quanto aos princípios e normas constitucionais invocados – à esfera jurídica de um terceiro.
Em resposta, a recorrente – embora admita que, ao pôr em causa aquela dimensão normativa por não ter “fundamento nem na letra nem no espírito da lei”, pode aparentar uma mera discordância com o sentido da decisão – sustenta a normatividade da questão, uma vez que a inconstitucionalidade é imputada a uma interpretação normativa e não directamente à decisão judicial. Acrescenta que tal interpretação normativa, para além de violar os princípios da certeza e da segurança jurídica e da tutela da confiança, é também atentatória do direito à iniciativa privada (artigo 61.º da Constituição) e da garantia institucional da iniciativa pública, bem como da boa administração da justiça (artigo 202.º, n.º 2, da Constituição), na medida em que as requerentes, que já não têm qualquer vínculo com a sociedade, apenas podem estar a prosseguir interesses próprios através da presente acção e, desta forma, estão a afectar a sociedade de que são ex-sócios e que é agora propriedade pública. A recorrente contrapõe, ainda, que tem legitimidade para impugnar esta norma em sede de recurso de constitucionalidade, pelas seguintes razões: a) a questão da inconstitucionalidade material ou orgânica das normas é de conhecimento oficioso; b) a recorrente invocou na arguição da inconstitucionalidade e no requerimento de interposição do recurso, princípios constitucionais de que é reflexamente beneficiária; c) a recorrente concretiza e alarga nas suas alegações o leque de princípios que considera violados pela norma do n.º 4 do artigo 77.º, tal como foi interpretado, sendo inequivocamente beneficiária directa destes; d) o 1.º requerido tem interesses contratuais directos próprios na aplicação dos princípios constitucionais invocados, interesses que se transmitem à recorrente por o recurso interposto aproveitar sempre aos compartes, tudo se passando como se ocorresse litisconsórcio necessário entre estes.
Cumpre decidir.
Pode admitir-se, não obstante as dúvidas que o modo como a inconstitucionalidade vem alegada suscita, que ela é imputada a uma dada interpretação normativa e não directamente à decisão judicial, em si mesma.
Quanto à outra eventual causa de não conhecimento, nesta parte, do recurso, invocada no despacho em referência, cabe dizer que a recorrente não logra convencer da sua legitimidade para impugnação da interpretação objecto da questão de constitucionalidade. Na verdade, quer no requerimento de interposição do recurso, quer na resposta ao despacho, o essencial das suas considerações vai dirigida à alegação de que o ex-sócio não tem interesse próprio na acção, não à demonstração do seu interesse e da respectiva tutela constitucional, no chamamento à demanda da sociedade (cfr., em particular, os n.ºs 18.º a 20.º do mencionado requerimento). Não por acaso, aliás, a interpretação questionada é reportada não só ao artigo 77.º, n.º 4, do CSC, mas também ao n.º 1 do mesmo artigo. Nessa medida, a questão posta, na parte em que dela há que conhecer, acaba por se confundir com a anteriormente colocada, quanto à interpretação do artigo 77.º, n.º 1, pelo que será apreciada apenas nesse contexto.
6.3. A terceira e última questão prende-se com os pressupostos necessários ao conhecimento do recurso, na parte referente aos artigos 102.º, n.º 2, e 388.º, alínea b), do Código de Processo Civil (CPC), interpretados “no sentido de a incompetência material só poder ser arguida até ao saneador ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência de discussão e julgamento, mesmo em casos de procedimento cautelar decretado sem contraditório prévio do requerido em que tal excepção tenha sido invocada imediatamente após a citação da requerida em sede de recurso”.
Dos autos colhem-se os seguintes elementos relevantes para a decisão desta questão:
- A providência cautelar de arresto, da qual emerge o presente recurso, foi decretada sem prévia audiência dos requeridos;
- A requerida G. interpôs recurso da decisão do tribunal de 1.ª instância, que decretou o arresto, para o Tribunal da Relação de Lisboa;
- Nas alegações do referido recurso invocou, além do mais, a incompetência absoluta do tribunal, defendendo que as Varas Cíveis de Lisboa eram materialmente incompetentes, sendo competente o Tribunal de Comércio de Lisboa;
- O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu não conhecer da excepção de incompetência absoluta, em síntese, com o seguinte fundamento:
«A incompetência absoluta resultante da infracção da competência material decorrente da circunstância de a acção ter sido instaurada num tribunal judicial quando o deveria ter sido perante outro tribunal judicial só pode ser arguida pelas partes e conhecida oficiosamente pelo tribunal até ao despacho saneador ou, se este não tiver lugar, até ao início da audiência final (art. 102.º, n.º 2). (…) No caso concreto o início da audiência de julgamento do arresto há muito que aconteceu. Não se argumente com o facto de ser então impossível arguir essa excepção nos procedimentos cautelares sem contraditório prévio, como é ocaso do arresto, pois se é certo que não houve contraditório prévio, por força da lei, ele não está excluído da tramitação deste procedimento porquanto o arrestado poderia, em alternativa ao recurso que interpôs da decisão, ter deduzido oposição em conformidade com o artigo 338.º/1/b), seguindo-se-lhe a produção de prova em nova audiência já contraditando o princípio de prova anteriormente obtido, circunstância em que até esta nova audiência poderia, se tal mecanismo processual tivesse sido utilizado, arguir a agora, e em sede de recurso e extemporaneamente, a excepção de incompetência em razão da matéria.» (cfr. fls. 1653/1654 dos autos).
- O Tribunal da Relação de Lisboa sustentou, ainda, que, caso não fosse extemporânea tal arguição, sempre seria de indeferir a excepção de incompetência absoluta, concluindo não haver incompetência material do Tribunal Cível de Lisboa, pelas razões que melhor constam da respectiva decisão (cfr. fls. 1655/1657).
Foi suscitado o eventual não conhecimento do recurso, nesta parte, com fundamento, por um lado, na falta de suscitação da questão de constitucionalidade junto do tribunal recorrido e, por outro, por poder revelar-se inútil o conhecimento da questão, visto que o tribunal recorrido tomou posição sobre a questão da competência.
Em resposta, a recorrente sustentou, por um lado, que as circunstâncias particulares do caso impõem a dispensa da prévia arguição da inconstitucionalidade à recorrente, como exigência do direito a um processo equitativo e justo e, por outro lado, que é útil o conhecimento desta questão de constitucionalidade, pois só no caso de o recurso de constitucionalidade ser julgado procedente, nesta parte, é que assistirá à recorrente a possibilidade de interpor recurso, como é sua intenção, para o Plenário das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, para a uniformização da jurisprudência quanto à questão da competência material.
Em relação ao ónus de suscitação prévia, a recorrente reconhece que não o cumpriu, uma vez que colocou esta questão de constitucionalidade, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional. Alegou que o sentido da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa – na parte que julga extemporânea a arguição da incompetência material do tribunal – constituiu uma “decisão surpresa”, ou seja, fundamentou-se numa questão que não tinha sido suscitada nos autos e tomou por base uma interpretação “inédita” ou pelo menos com um sentido normativo que “não é comum”. Na resposta ao despacho que suscitou as questões prévias, a recorrente acrescentou, ainda, que não lhe foi dada oportunidade de suscitar a inconstitucionalidade da interpretação que veio a ser dada aos artigos 102.º, n.º 2, e 388.º, alínea b), do CPC, perante o tribunal recorrido, uma vez que este, apesar de ter decidido não conhecer da questão da incompetência material, omitiu a notificação prevista no artigo 704.º, n.º 1, do CPC.
Para saber se a recorrente pode considerar-se dispensada, no caso concreto, do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido importa ajuizar se a interpretação normativa, cuja inconstitucionalidade se quer ver apreciada, foi de tal forma imprevista ou inusitada, nomeadamente atendendo às circunstâncias do caso, que tornava inexigível à recorrente que a tivesse antecipado e consequentemente arguido a respectiva inconstitucionalidade nas alegações do recurso apresentado junto do Tribunal da Relação de Lisboa.
A resposta tem que ser negativa.
Para sustentar a tese de que, nesta parte, o acórdão recorrido constitui uma “decisão-surpresa”, susceptível, nessa medida, de justificar uma excepção à regra-geral de exigência de suscitação prévia, a recorrente começa por afirmar, no requerimento de recurso, que essa qualificação tem em conta que «a arguição foi feita pela ora Recorrente na sequência da sua citação para o procedimento cautelar e imediatamente após a mesma em sede de recurso».
A afirmação é argumentativamente inócua, pois o que releva, para este efeito, não é o momento em que a recorrente arguiu a excepção da incompetência material, só por si, mas se, ao fazê-lo, lhe era ou não exigível que prognosticasse, nesse momento (o da interposição de recurso para o tribunal recorrido), a aplicação da interpretação cuja conformidade constitucional veio depois a impugnar. E, para isso, o decisivo é atender à natureza, conteúdo e alcance dessa interpretação, bem como à sua conexão com a matéria em juízo.
Deste ponto de vista, há que sublinhar que a interpretação normativa adoptada pelo tribunal a quo, a respeito da oportunidade para a arguição daquela excepção, nada tem de surpreendente, antes se limitando a seguir de perto a letra do artigo 102.º, n.º 2, do CPC, cuja redacção actual foi, há muito, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro. Trata-se de uma norma processual central, com assento no respectivo código, que consagra um regime de excepção (em face do estabelecido no n.º 1 do mesmo artigo), com um âmbito de previsão rigorosamente determinado, quer quanto à forma de incompetência absoluta aqui relevante – apenas a resultante das regras de competência em razão da matéria -, quer quanto à natureza dos tribunais envolvidos – apenas tribunais judiciais.
Ora, à recorrente não podia passar despercebido que a situação dos autos se integrava, sem sombra de dúvida, nesta hipótese normativa, pelo que lhe era exigível que representasse a (forte) possibilidade de o tribunal vir a lançar mão desta norma para decidir a questão da oportunidade da suscitação da incompetência material em sede de recurso, independentemente de, no caso, poder ser necessário conjugar esse regime com a tramitação específica de uma providência cautelar sem contraditório prévio do requerido (como é, por força da lei, o arresto – cfr. artigo 408.º, n.º 1, do CPC), a qual, como é sabido, implica que o requerido, uma vez notificado da decisão que decretou a providência, pode optar por recorrer ou deduzir oposição (artigo 388.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CPC). O que é “menos comum” não é seguramente, a aplicação de uma norma, numa interpretação correspondente ao teor literal do seu enunciado, quando estão preenchidos os elementos da sua previsão. “Menos comum” é o contrário, a não aplicação de uma norma por circunstâncias específicas do caso concreto – independentemente de tal estar ou não justificado.
Sendo este o significado implicado na pretensão da recorrente, ao arguir a incompetência material, num momento processual não admitido em regra geral e abstracta, deveria, por elementar regra de prudência, aduzir razões que convencessem o tribunal a desviar-se dessa regra. Devendo prefigurar como possível uma interpretação conducente à decisão de extemporaneidade, era exigível à recorrente que invocasse então, nas alegações de recurso para o tribunal que a veio a tomar, as razões de constitucionalidade que, em seu entendimento, obstariam a tal interpretação. Não o tendo feito, carece de legitimidade para requerer que este Tribunal se pronuncie sobre a questão, em via de recurso.
Coisa diversa, sobre a qual o Tribunal Constitucional não pode, como é evidente, pronunciar-se, é saber se o tribunal recorrido fez a melhor interpretação do regime legal aplicável, bem como saber se a recorrente podia/devia ter arguido a incompetência do tribunal antes da interposição do recurso para a Relação, em sede de oposição à providência ou em requerimento autónomo.
Em reforço do argumento, constante do requerimento de recurso, de que “a Recorrente não teve qualquer hipótese de contraditório”, quanto à alegada “decisão-surpresa”, vem ela invocar, na sua resposta ao mencionado despacho, que não foi dado cumprimento, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, ao disposto no artigo 704.º do CPC. Todavia, independentemente da questão de saber se tal norma era aplicável ao caso dos autos, cumpre acentuar que a exigibilidade de cumprimento do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade não está dependente da possibilidade de exercício do contraditório. Ao trazer aos autos, por iniciativa própria, a questão da incompetência do tribunal em razão da matéria, a recorrente teve, nesse momento, uma oportunidade efectiva de invocar a inconstitucionalidade da interpretação conducente à extemporaneidade dessa arguição, resultante, pelo menos literalmente (não obstante a tramitação específica da providência do arresto), do disposto no artigo 102.º, n.º 2, do CPC. E, pelos motivos expostos, era-lhe exigível que o fizesse. É quanto basta para se dar como incumprido o referido ónus, pois a eventual efectivação da audição prevista no artigo 704.º do CPC significaria apenas, para o que aqui releva, a concessão de uma outra oportunidade para o satisfazer.
Por tudo, há que concluir que a recorrente podia e devia ter antecipado que o tribunal a quo, face à letra do n.º 2 do artigo 102.º do CPC, poderia vir a julgar extemporânea a arguição da excepção de incompetência absoluta, pelo que devia ter suscitado a questão de constitucionalidade, que agora quer ver apreciada, perante o Tribunal da Relação de Lisboa, nas alegações do recurso aí apresentado.
Não o tendo feito, incumpriu o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade, o que, só por si, obsta ao conhecimento do objecto do recurso, nesta parte (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Em face de tudo quanto fica dito, só se conhecerá da alegada inconstitucionalidade da norma do artigo 77.º, n.º 1, do CSC, interpretada no sentido de que os accionistas que percam essa qualidade por acto de nacionalização têm legitimidade para intentarem a acção social de responsabilidade contra gerentes e administradores, na parte em que o recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC:
B) Apreciação do mérito do recurso
7. O tribunal recorrido entendeu que a extensão aos ex-accionistas, desapropriados da titularidade das participações sociais por transmissão forçada para o Estado, da legitimidade conferida pelo artigo 77.º, n.º 1, da CSC, resultava de uma “imposição constitucional da tutela efectiva”.
Cumpre salientar que, na apreciação da questão de constitucionalidade, não há que decidir se tal imposição resulta ou não da Constituição, como factor determinante da interpretação da referida norma. Na verdade, para que o juízo de inconstitucionalidade seja afastado, basta que se conclua que a Constituição não proíbe tal interpretação, não sendo mister averiguar se ela é constitucionalmente forçosa. Por outras palavras, a constitucionalidade fica salvaguardada se se concluir que a interpretação se situa dentro do espaço de liberdade do legislador / intérprete, não afrontando nenhum ditame constitucional.
Nesta medida, erram o alvo todas as considerações da requerente tendentes a demonstrar que «é manifesto que a Constituição não obriga o legislador à concessão de legitimidade activa a um accionista ou ex-accionista de uma Sociedade para requerer procedimento cautelar caso esta não o faça», como diz a fls. 1774 dos autos. Nada adianta sustentar que «não se vislumbra que seja inconstitucional vedar através do artigo 77.º, n.º 1, do CSC, a legitimidade ao ex-accionista»; apenas releva a argumentação dirigida a fundamentar o contrário, ou seja, que a Constituição obriga a não conceder tal legitimidade a ex-accionistas. Só assim se poderá concluir pela inconstitucionalidade da interpretação aplicada pelo tribunal recorrido.
É, em particular, improdutivo de sentido fundamentador, na direcção exigida, tudo o que a recorrente alega quanto à não abrangência, pela garantia de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, da tutela do interesse do ex-accionista, por se tratar, na sua óptica, de um interesse indirecto e reflexo. Independentemente de se fazer notar que essa garantia, nos termos do n.º 1 do artigo 20.º da CRP, cobre todos os “interesses legalmente protegidos”, a invocação desse parâmetro só poderá relevar para fundamentar que resultou violado o acesso à justiça da sociedade beneficiária.
A recorrente também empreende uma iniciativa de argumentação nesse sentido (fls. 1779). Mas afigura-se claro que esse direito permanece intocado, até porque, não tendo essa sociedade intervenção na causa, o decidido não forma caso julgado em relação a ela. E as alegadas razões de economia processual que imporiam a presença desse sujeito não constituem, só por si, um imperativo constitucional.
Ainda dentro deste quadrante valorativo, quanto à alegada violação de um direito a um processo equitativo por parte do requerido (a não ser demandado em processos eventualmente inúteis ou desnecessários), não se descortina qual o fundamento constitucional desse invocado direito. A decisão a este respeito cabe ao julgador, que goza, nesta matéria, de ampla liberdade apreciativa. E, de qualquer modo, o interesse do réu em impedir, de imediato, o prosseguimento de uma acção que não vise a tutela de interesses protegidos pelo disposto no artigo 77.º está suficientemente acautelado pelo que se estatui no seu n.º 5.
Também não procede a alegação de que a interpretação aplicada viola o princípio da certeza e da confiança jurídica, por ser manifestamente imprevisível para o destinatário. Tal interpretação tem por si suficientes apoios na intencionalidade normativa que presidiu à previsão da acção social ut singuli, no artigo 77.º, do CSC, para que ela possa ser tida como desprovida de qualquer razoabilidade ou qualificável como arbitrária.
Acrescente-se que ficam por enunciar os interesses, constitucionalmente tutelados, situados na esfera da ora recorrente, que resultariam substancialmente afectados pela interpretação questionada, em termos de traduzirem uma frustração do “investimento na confiança” – requisito de todo indispensável para fundar uma violação deste parâmetro. Os interesses referidos, a este propósito (interesses do Estado, da propriedade pública, da garantia institucional do sector público empresarial e da iniciativa empresarial pública), não são titulados pela recorrente, o que torna dispensável apreciar se eles são verdadeiramente atingidos.
Também é despiciendo avaliar da eventual existência, como é apontado, de outros meios processuais para os ex-accionistas se ressarcirem de eventuais danos por força da gestão da sociedade. Esse é um juízo situado no plano infraconstitucional, a emitir, nessa medida, exclusivamente pelas instâncias, e sem projecção imediata na questão de constitucionalidade – a única para a decisão da qual este Tribunal tem competência.
Partindo do pressuposto de que os requerentes da providência cautelar têm um interesse legítimo em “maximizarem a indemnização a receber da Sociedade pública”, para empregarmos a expressão utilizada pela recorrente a fls,. 1779 v., e que a acção em causa era meio adequado a prossegui-lo - o que, em si, não é sindicável por este Tribunal - o tribunal recorrido entendeu ser aplicável ao caso dos autos, por analogia, o disposto no artigo 77.º, n.º 1, do CSC. Nenhuma injunção se colhe da Constituição que possa ser oposta a essa interpretação, pelo que é de rejeitar a imputação de inconstitucionalidade que motivou, nesta parte, o presente recurso.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 77.º, n.º 1, do CSC, interpretada no sentido de atribuir legitimidade a um ex-sócio para instauração da acção social de reparação de danos contra administradores, em caso de transmissão forçada das suas participações sociais, por acto de nacionalização;
b) Consequentemente, negar, nessa parte, provimento ao recurso,
c) Não conhecer, no restante, do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC.
Lisboa, 15 de Fevereiro de 2011
Joaquim de Sousa Ribeiro
Catarina Sarmento e Castro
João Cura Mariano (com a declaração que também não teria conhecido do mérito da questão de constitucionalidade apreciada neste acórdão, por ser meu entendimento que não é admissível recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da competência prevista na alínea b), do nº 1, do artigo 70º, da LTC, questionando a constitucionalidade de norma de direito substantivo aplicada em sentença proferida em procedimento cautelar, atento o cariz provisório desta decisão).
Rui Manuel Moura Ramos