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Processo nº 772/97
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. R..., Ldª, sociedade comercial com sede no Porto, interpôs recurso para este Tribunal Constitucional, 'ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, na redacção resultante da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro', pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo
5º, nº 2, do Diploma Preambular que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano, doravante RAU (o Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro), que expressamente revogou o nº 2 do artigo 1051º, do Código Civil, com a interpretação que lhe foi dada no acórdão ora recorrido do Supremo Tribunal de Justiça, de 4/11/97, e que confirmou, nessa parte, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15/4/97, negando, por consequência, provimento ao recurso de revista por ela interposto. Subjacente à decisão daquele Supremo Tribunal, estão, em síntese, os seguintes factos e considerações: Por escritura de 28/9/78, E..., na qualidade de representante legal da sua filha, menor de 2 anos de idade, C..., deu de arrendamento, à agora recorrente, um prédio urbano, identificado nos autos, destinado à exploração de espectáculos cinematográficos e teatrais, conhecido por 'Cinema J...' Tendo, entretanto, a C... atingido a maioridade (em 12/12/93) e, consequentemente, ficado habilitada a reger a sua pessoa e a dispor dos seus bens, entendeu terem findado os poderes legais de administração com base nos quais a sua mãe celebrou o contrato de locação e, decorrente de tal facto, ter o mesmo caducado. Desse facto informou a sociedade R..., que não aceitou a caducidade do contrato, razão pela qual a C... intentou acção de despejo, na forma sumária, contra a sociedade, pedindo a 'declaração' de caducidade e a condenação da Ré 'a ver julgada válida e eficaz essa caducidade e a despejar e a entregar à Autora até
30 de Setembro de 1996 o arrendado, inteiramente livre de pessoas e de coisas'. A referida sociedade sustentou, porém, a não caducidade, uma vez que deu conhecimento à locadora, através de notificação judicial avulsa, efectuada em tempo, de que pretendia manter a sua posição de locatária. E acrescentou que o exercício de tal direito era-lhe permitido face ao regime legal em vigor à data da celebração do contrato (artigo 1051º nº 1, alínea c) e nº 2 do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro), pelo que, na sua tese, não tem razão a Autora ao apoiar a denúncia com base num preceito que foi alterado após a data da celebração do contrato e que já não permite ao locatário exercer tal direito (o artigo 5º, nº 2, do Diploma Preambular que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano – Decreto-Lei nº
321-B/90, de 15 de Outubro – e que revogou expressamente o nº 2 do artigo 1051º do Código Civil, sendo certo que, por força daquele diploma, o contrato caduca quando findam os poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado – artigo 66º, nº 1 do RAU e artigo 1051º, nº 1, c) do Código Civil). Não tendo logrado êxito na 1ª e 2ª instâncias, da decisão do Tribunal da Relação do Porto veio interpor a Sociedade R..., Ldª, recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo nos seguintes termos as suas alegações perante o Supremo:
'A) Não deve ser declarada a caducidade dos contratos de arrendamento celebrados entre Recorrente e a mãe da Recorrida, enquanto sua representante legal, dado que se aplica o regime legal em vigor à data da celebração do contrato, que permitia à inquilina declarar que pretendia manter a relação locatícia - art.
1051º nº 1 alínea c) e nº 2. B) Uma vez feita por notificação judicial avulsa a declaração de que a Recorrida pretende continuar a manter a sua posição de inquilina, nos termos do nº 2 do art. 1051º do C. Civil, não podia o Mmo Juiz 'a quo' declarar a caducidade dos contratos e decretar o despejo e entrega dos móveis à Recorrente. C) Se os contratos de arrendamento foram celebrados na melhor Boa Fé, como um regular acto de administração, não há razão para que os proprietários possam requerer os despejos em termos que superem os prejuízos daí derivados para os inquilinos. D) A Recorrente ao contratar, teve por certa a doutrina de Ordem Pública subjacente ao artigo 1051º nº 2 e 3 do C. Civil, não vislumbrando sequer a possibilidade de puder ver mais tarde a Recorrida vir declarar a caducidade do contrato de arrendamento, razão pela qual aceitou tomar os contratos de trabalho do pessoal do estabelecimento e levar a cabo inúmeras benfeitorias, necessárias,
úteis e mesmo voluptárias. E) A interpretação da norma revogadora do preceito contida no decreto preambular do RAU, tem de ter em conta a unidade do sistema jurídico e as condições específicas de tempo em que é aplicada F) Uma vez que as partes contrataram na suposição de que a Recorrida não podia declarar a caducidade do contrato sem que a Recorrente se pudesse manifestar no sentido da continuação, estamos em face de um direito adquirido que deve ser considerado incorporado no contrato em apreço. G)A aplicação da Lei Nova ao caso, feriria o equilíbrio contratual existente à data da celebração do contrato e da respectiva formação das vontades, em consonância com o espírito proteccionista do locatário subjacente à legislação de arrendamento: 'O contrato aparece como um acto de previsão em que as partes estabelecem, tendo em conta a lei então vigente, um certo equilíbrio de interesses que será como que a matriz do regime da vida e da economia da relação contratual.. A intervenção do legislador que venha modificar este regime querido pelas partes, afecta as previsões destas, transtorna o equilíbrio por elas arquitectado e afecta, portanto a segurança jurídica.' Baptista Machado in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador pag. 238. H) Estando em causa como no caso interesses de Ordem Pública e princípios Constitucionais que pesaram na determinação do equilíbrio estabelecido pelas partes ao contratar, temos de concluir que o regime em vigor à data da celebração do contrato terá de se aplicar. - Antes defendia-se a estabilidade da relação locatícia e a partir de hoje a sua crescente mobilidade. I) A entender-se ser de aplicar a Lei Nova, o que não se concede, então estamos em presença de uma norma ferida de inconstitucionalidade pela violação frontal dos princípios constitucionais subjacentes, nomeadamente o da estabilidade e da justiça, da igualdade, do direito ao trabalho e à cultura, pelo que está o Tribunal impedido de a aplicar - art. 207º da Const. da República devendo declarar essa inconstltucionalidade. J) É manifesto que a Recorrida ultrapassa claramente os limites impostos pela Boa Fé, pelos bons costumes e especialmente pelo fim económico e social do Direito que se arroga, o que torna o seu exercício ilegítimo por Abuso de Direito - art. 334º do C. Civil. O douto Acórdão recorrido, na linha da douta sentença recorrida, fez errada aplicação da Lei violando as normas acima referidas ao julgar nesta parte procedente a acção, pelo que substituindo por outra que julgue a acção inteiramente improcedente, ou quando menos se ordene o prosseguimento dos autos com a elaboração de quesitos para apuramento das circunstâncias que presidiram à celebração dos contratos, ou, a não se entender assim, declare inconstitucional o art. 5º nº 2 do Decreto Preambular do RAU - Dec-Lei nº 321 -B/90 de 15 de Outubro.'
Naturalmente que a Autora e recorrida entendeu ser de aplicar o regime novo, sem ver que daí se violasse algum princípio ou preceito constitucional. O acórdão recorrido negou a revista, com os seguintes fundamentos e no que aqui importa:
'O princípio da igualdade inculca que seja arguido um tratamento igual a situações de facto iguais e, reversamente, que sejam objecto de tratamento diferenciado situações de facto desiguais. Os interesses subjacentes ao arrendatário habitacional e ao arrendatário comercial nem sempre são iguais. Dessa diversidade resulta uma diversa forma de tratamento pelo legislador: foi o que aconteceu. O artº 1051 nº 1 c) CC - que regula a hipótese em apreço - não foi aplicado relativamente a situação ou facto passado. A sua aplicação emerge directamente do facto de a A. passar a poder legalmente reger a sua pessoa e bens, facto que ocorreu posteriormente à sua entrada em vigor. Como bem observa a recorrida, quanto à alegada ofensa do direito ao trabalho, à educação e à cultura resultante de aplicação do citado preceito legal, basta ler os art 59, 43 e 73 da Lei Fundamental para concluir sem dificuldade que aqueles direitos não são protegidos pela referida Lei no contexto em que a recorrente situa essa protecção. Não se verifica, pois, a invocada inconstitucionalidade'.
2. Mais uma vez inconformada, recorreu para este Tribunal Constitucional a referida sociedade, concluindo assim as suas alegações:
'A - As normas dos artigos 5º/2 do DL 32l-B/90 e 1051º do C. Civil (com a nova redacção) foram interpretadas e aplicadas com o sentido de que esta última norma deve aplicar-se a contratos celebrados na vigência da lei antiga, desde que o facto gerador da caducidade (a maioridade do senhorio) ocorra já no domínio da lei nova. B - A ser assim, ocorre neste caso uma verdadeira aplicação retroactiva da lei nova, na medida em que vem modificar o estatuto de um contrato celebrado anteriormente à sua publicação, privando um dos contraentes de uma prerrogativa que já havia adquirido no momento da celebração (a faculdade de obstar à caducidade decorrente da maioridade do senhorio). C - Ao desprezar desta forma as legítimas expectativas dos arrendatários comerciais que - ao abrigo de um quadro contratual claro, que lhes conferia protecção - decidiram tomar de arrendamento prédios pertencentes a menores, a criticado interpretação dos arts. 5º/2 e 1051º afronta diversos comandos constitucionais, ou constitucionalmente protegidos. D - Desde logo, viola os princípios da Segurança Jurídica e da não retroactividade, direitos fundamentais tutelados constitucionalmente (arts. 2º e
16º da CRP), afrontando também o princípio do Estado de Direito Democrático
(art. 2º) e seus corolários. E - Além disso, o princípio da igualdade (art. 13º/2 CRP) impede que o legislador possa estabelecer uma situação nova de desigualdade entre o inquilino habitacional e o comercial, no caso de caducidade do contrato. F - Se a lei nova restringe um direito fundamental (de exercício de uma actividade económica), a sua aplicação imediata determina a retroactividade de um preceito restritivo de direitos fundamentais, o que colide com o disposto no art. 18º do texto constitucional. G - Demais, tratando-se de arrendamento comercial com inúmeros postos de trabalho, ao serviço da cultura, são ainda feridos o direito ao trabalho e à cultura. Nestes termos, deverão os arts. 5º/2 do DL .321-B/90 e 1051º do C. Civil (com a nova redacção) ser julgados inconstitucionais - quando interpretados no sentido de que esta última norma deve aplicar-se a contratos celebrados na vigência da lei antiga, desde que o facto gerador da caducidade (a maioridade do senhorio) ocorra já no domínio da lei nova - deste modo se fazendo JUSTIÇA.' Por sua vez, a recorrida contra-alegou, a sustentar o julgado, e afirmando que, tendo caducado o contrato de locação, por força da revogação operada pelo RAU, essa caducidade não representa uma afronta ao princípio da irrectroactividade das leis. Depois de enunciar os vários sentidos possíveis atribuídos à expressão
'retroactividade ou efeito retroactivo das leis', conclui:
'Atendendo a que a Recorrida só atingiu a maioridade em plena vigência do artigo
66º, nº 1, do RAU, só nessa altura se produziram todos os efeitos do contrato de locação ajuizado, pois só então findaram os poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado. Por outro lado, apenas com a maioridade da Recorrida, também ocorreu a situação prevista no artigo l 051º, nº 1, alínea c), do Código Civil, o que, obviamente, faz com que as consequências dessa maioridade, no plano em apreço, só agora se tenham verificado e, portanto, sejam disciplinadas pela lei vigente. Por fim, aquela mesma maioridade não está relacionada com quaisquer factos anteriores verificados no domínio do artigo 1051º nº 1, alínea c). O que tudo vale por dizer que está totalmente respeitado o princípio da irrectroactividade da lei' Mais à frente, a propósito da interpretação dada ao artigo 12º do Código Civil
(que, como se sabe, trata da questão da aplicação das leis no tempo), e transcrevendo-se Mário de Brito (Código Civil Anotado, págs. 28 a 30), pode ler-se: a 'ideia de que a lei rege apenas para o futuro tem, no entanto, um alcance diferente conforme se trate de uma lei que dispõe sobre os efeitos de determinados factos ou de uma lei que dispõe directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem. Por outras palavras, quando a nova lei se refira a determinada relação jurídica, há que distinguir: a) a nova regulamentação prende-se directamente com qualquer facto que tenha produzido determinados efeitos; b) a nova regulamentação refere-se imediatamente ao direito, sem qualquer conexão directa com o facto que lhe deu origem. No primeiro caso, a lei só visa os factos novos, isto é, só podem servir de pressupostos à aplicação da nova lei os factos posteriores à sua entrada em vigor; no segundo caso, a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
É o que nos diz o nº 2 do artigo, seguindo a formulação dada por Enneccerus à referida doutrina do facto passado.
(...) Aplicando estes princípios ao caso dos autos temos que o artigo 66, nº 1, do RAU, refere-se imediatamente ao direito de caducidade do contrato de locação, sem qualquer conexão directa com o facto que lhe deu origem: a cessação dos poderes de administração com base nos quais o contrato de locação foi celebrado. Consequentemente, aquele artigo abrange o sobredito contrato de locação. O problema reconduz-se, portanto, à questão de saber qual a lei a aplicar á relação contratual estabelecida entre a Apelada (ora Recorrida), ao tempo representada por sua mãe, e a Apelante (ora Recorrente)'. Depois de, também, citar Baptista Machado (Aplicação das Leis no Tempo), o qual estabelece uma distinção entre a 'aplicação ou não aplicação imediata das disposições da lei nova ao conteúdo e efeitos dos contratos anteriores baseada fundamentalmente numa qualificação dessas disposições (referirem-se elas a um estatuto legal ou a um estatuto contratual)', afirma, utilizando as palavras daquele Autor:
'Para que a LN fique vedada a aplicação imediata, é necessário que ela se refira a matéria contratual, se ela regula o estatuto legal tem efeito imediato sobre todas as situações jurídicas pendentes, ainda que se trate de situações jurídicas modeladas por cláusulas contratuais ... Por outras palavras: a disposição legislativa qualificar-se-á como pertinente a um 'estatuto legal', ou
- o que é o mesmo, segundo a terminologia do Art. 12, nº 2 - abstrairá aos factos constitutivos da situação jurídica contratual, quando for dirigida à tutela dos interesses duma generalidade de pessoas que se achem ou possam vir a achar ligadas por uma certa relação jurídica (p. ex., por uma relação jurídica de arrendamento) - de modo a poder dizer-se que tal disposição atinge essas pessoas, não enquanto contratantes, mas enquanto pessoas ligadas por certo tipo de vínculo (enquanto senhorios e inquilinos)'. E a recorrida conclui que 'a disposição que estabelece sobre a caducidade do contrato e suas consequências, insere-se manifestamente naquele estatuto legal: ela nasce fora do contrato, de qualquer contrato de arrendamento, e independentemente da sua conformação inicial. Assim, o RAU é de aplicação imediata, mormente no caso dos autos visto que a caducidade do contrato de locação ocorre na vigência daquele diploma e à caducidade do contrato de locação aplica-se a lei vigente no momento em que ela opera'. A recorrida acaba por terminar as suas alegações negando que a interpretação dada ao artigo 5º nº 2, do Diploma Preâmbular que aprovou o RAU, e ao artigo
1051º, do Código Civil, viole o princípio da igualdade, da não retroactividade, ou do Estado de direito democrático. Convém referir mais uma vez que, nas palavras do acórdão recorrido: 'O artº 1051 nº 1 c) CC - que regula a hipótese em apreço - não foi aplicado relativamente a situação ou facto passado. A sua aplicação emerge directamente do facto de a A. passar a poder legalmente reger a sua pessoa e bens, facto que ocorreu posteriormente à sua entrada em vigor'. Ora, sendo essa a interpretação dada pelo acórdão recorrido, não cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre qual a interpretação que melhor se coaduna com as regras de aplicação da lei no tempo. Ao Tribunal Constitucional cabe, sim, e apenas, apreciar a constitucionalidade da norma citada do artigo 5º, nº 2, tendo em conta aquela interpretação que foi dada pelo Supremo e que é a que acaba de se transcrever. Objecto, portanto, do presente recurso de constitucionalidade é só aquela norma do artigo 5º, nº 2, a única identificada no requerimento de interposição do recurso, não podendo estender-se o seu objecto à norma do artigo '1051º do C. Civil (com a nova redacção)', que é mencionada nas conclusões das alegações da recorrente.
3. Convirá, preambularmente, ainda que em linhas gerais, fazer uma breve resenha sobre o modo como o legislador encarou o regime do arrendamento urbano, pelo menos no que respeita aos principais diplomas que dispuseram sobre a matéria. O Código Civil de 1867, no seu artigo 1600º, estabelecia a regra de a locação poder fazer-se pelo tempo que às partes aprouvesse (salvo o caso de algumas excepções que não vêm ao caso) As partes podiam estabelecer um contrato temporário com um prazo supletivo de 6 meses. Findo o prazo, o contrato presumia-se renovado se o arrendatário se não tivesse despedido, ou se o senhorio o não despedisse no tempo e pela forma costumadas na terra (artigo 1624º). Durante a 1ª guerra mundial e enquanto esta durasse, era proibido aos senhorios intentar acções de despejo, chegando mesmo a prolongar-se essa proibição até 1 ano depois de assinado o tratado de paz (Decreto nº 4499, de 27/6/918). Depois de uma certa abertura no que toca à possibilidade do despejo por parte do senhorio (embora com restrições), feita pela Lei nº 1662, de 4 de Setembro de
1924, e da possibilidade de os contratos poderem cessar por conveniência daquele, permitida pelo Decreto nº 15315, de 4 de Abril de 1928, havia de ser com a Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948, que se procedeu a uma grande reforma no domínio do arrendamento.
À parte das disposições que tratavam da caducidade (artigos 41º e segs.), manteve-se a regra da renovação automática.
'A Lei nº 2030 (...) não é isenta de reparos, pois regulou o caso da caducidade pelo termo do usufruto (art. 41º), aplicando esse princípio a todos os casos em que o prédio tenha sido dado de arrendamento por administradores legais de bens alheios ou pelo fiduciário (nº 1), referindo-se depois aos arrendamentos feitos pelo cônjuge administrador dos bens do casal (nº 2). Temos agora um preceito geral consagrando o que já era intuitivo – que a locação cessa com o termo da administração com base no qual o contrato foi feito' (V. J.G. de Sá Carneiro – Alguns Problemas Suscitados pela Caducidade do Arrendamento – Revista dos Tribunais, 87-88, 1969-1979, pág. 436). Também nas palavras de Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado (Manual do Arrendamento Urbano, 1966, pág. 116) e agora no que respeita ao Código de 1966, este diploma 'tinha estabelecido, na primitiva versão do seu art. 1015º, para a locação, em geral, a ‘caducidade’ do contrato, entre outros casos, em virtude da cessação do direito ou dos poderes legais de administração com base nos quais tinha ela sido concedida – sem que ao locatário se reconhecesse a oposição do locador, por mais de 1 ano, nos termos do art. 1056 do CC. Este princípio, que vinha aliás, na nossa tradução jurídico-positiva, tinha uma justificação inegável: quando um contrato é de execução continuada e, sobretudo, quando, como o arrendamento (art. 1054 CC), está sujeito a ‘renovação’ no termo da duração respectiva, faltará fundamento doutrinal para, contra a vontade do novo titular, se admitir a continuidade contratual após a cessação do direito ou dos poderes legais da administração com base nos quais ele foi celebrado'. E, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 321-B/90 escreveu-se, no seu ponto 11:
'Em Portugal, por vezes, tem havido a tendência para abordar a problemática do arrendamento como se de uma luta de interesses se tratasse entre proprietários e inquilinos, quando, de facto, se está perante uma situação totalmente inversa. Não há interesses antagónicos, antes pelo contrário: trata-se, para todos os efeitos, de procurar a sua saudável conjugação, em benefício da sociedade e do País. Cabe ao Governo, quando necessário e as circunstâncias o exijam, encontrar o equilíbrio socialmente justo, sem defender qualquer das partes, mas por forma a garantir as melhores condições para o cumprimento de um preceito constitucional
- o direito à habitação'.
4. As condições e o regime do arrendamento urbano constituem, pois, um instrumento de política social visando intervir essencialmente na definição da política habitacional do País, sacrificando, muitas vezes, o interesse individual ao social, respeitados que sejam os direitos fundamentais. Ora, na globalidade da ordem jurídica respeitante ao arrendamento urbano, e como atrás se transcreveu, muita tem sido a prolixidade legislativa acerca do arrendamento urbano, tentando o Estado sopesar em cada momento as interesses em questão. E, como também se referiu, desde o estabelecimento, na primeira versão do Código Civil, da caducidade do contrato, em virtude da cessação do direito ou dos poderes legais de administração com base nos quais tinha sido concedida, sem que ao locatário, em princípio, se reconhecesse o direito de a afastar, situação que vinha da tradição jurídico-positiva, passando pelas épocas de guerra neste século XX, em que os interesses do senhorio foram fortemente sacrificados, desde a proibição pura simples de denúncia do contrato ao congelamento de rendas, ou pelos anos após a Revolução de Abril de 1974, em que a regra era manter-se a posição do locatário, com actualização da renda, se assim fosse requerido
(relativamente ao arrendamento urbano, no caso de cessação do direito ou dos poderes legais de administração, o locatário e, no caso de morte deste, os seus sucessores, podiam continuar no gozo da coisa, desde que o quisesse e exercessem esse direito, através da notificação avulsa), até ao Decreto-Lei nº 321-B/90, nos termos do qual o arrendatário tem direito a um novo arrendamento (artigo
66º, nº 2, RAU),se não tiver já residência na respectiva área (artigo 91º, RAU), sendo este novo arrendamento de duração limitada e de renda condicionada (artigo
92º, nº 1, RAU), assistimos a toda uma actuação governativa de tentar em cada momento equilibrar os interesses de senhorios e arrendatários. Ora, face, designadamente, às criticas que era objecto na doutrina esse ponto, quando se trata de arrendamentos urbanos, com situações gritante de injustiça social para senhorios e arrendatários, não se estranha que o Estado, numa busca do tal equilíbrio entre as partes envolventes e o sopesamento dos interesses em questão em cada momento, procure, numa 'clara dialética' (cfr. o acórdão do Tribunal Constitucional nº 11/83, no Diário da República, I Série, de 20 de Outubro de 1983) que subjaz ao princípio do Estado de Direito, tomar medidas que se possam sobrepor aos interesses de uns em detrimento dos interesses de outros. E isso acontecerá se razões imperiosas de interesse público se sobrepuserem visivelmente à tutela dos valores de segurança e de certeza jurídicas. Como se afirmou já no Parecer nº 14/82, da Comissão Constitucional (Pareceres, volume 19, pág. 183), a propósito do princípio do Estado de direito democrático:
'Um tal princípio garante seguramente um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas suas expectativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica [...]. Daí não deriva que toda a norma retroactiva deva reputar-se inconstitucional, mas só aquela que viola de forma intolerável a segurança jurídica e a confiança que as pessoas e a comunidade têm obrigação (e também o direito) de depositar na ordem jurídica que as rege'. Por sua vez, o acórdão nº 437, também da Comissão Constitucional (Apêndice ao Diário da República de 18 de Janeiro de 1983), refere que 'o princípio da confiança não pode haver-se por intoleravelmente ofendido – não havendo assim uma retroactividade constitucional ilegítima – quando, entre outras hipóteses
(...) a confiança (do cidadão) no reconhecimento da situação jurídica ou das suas consequências se revele materialmente ‘injustificada’, sempre que a situação jurídica ‘não era clara ou inequívoca’, de tal modo que o cidadão poderia e deveria contar com a eventualidade do seu posterior esclarecimento num ou noutro sentido ou, de uma maneira geral, quando razões imperiosas de ‘ interesse público – e nomeadamente, nas palavras de Gomes Canotilho, a adopção de medidas positivas de conformação social – se sobrepõem visivelmente à tutela dos valores da segurança e da certeza jurídicas'. Como o Tribunal Constitucional por diversas vezes tem acentuado, só uma retroactividade que importe um sacrifício incomportável e desproporcionado para o cidadão, na medida em que afecte por forma excessivamente gravosa as suas legítimas expectativas, viola o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático (cfr., entre outros, o acórdão nº 1011/96, no Diário da República, II Série, de 13 de Dezembro de 1996). Ou seja, só quando a retroactividade não for arbitrária ou opressiva e a nova situação jurídica não for de todo imprevisível ou improvável, se poderá dizer não sairem aqueles princípios violados Tal como se pode ler no recente acórdão nº 559/98, inédito:
'No entanto, pouco importa que a norma sub iudicio, com a interpretação apontada, seja retroactiva ou apenas retrospectiva. Tratando-se de um domínio em que a retroactividade da lei não está constitucionalmente vedada (ela é apenas proibida no domínio penal, e, ainda assim se a retroactividade não for in melius; no domínio fiscal e no das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias), quer a lei seja retroactiva, quer seja retrospectiva, ela só é inconstitucional, se violar princípios constitucionais autónomos. E isso é o que sucede, quando a lei afecta, de forma ‘inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa’, direitos ou expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos. Num tal caso, com efeito, a lei viola aquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito. A este impõe-se, na verdade, que organize a ’protecção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida’ (cf. o acórdão nº
330/90, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 17º, páginas
277 e seguintes). Por conseguinte, apenas uma retroactividade intolerável, que afecte, de forma inadmissível e arbitrária, os direitos ou as expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos, viola o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Constituição da República (cf., entre outros, os acórdãos nºs 11/83 e 287/90, publicados nos Acórdãos citados, volumes
1º, páginas 11 e seguintes, e l7º, páginas 159 e seguintes; e o acórdão n.º
486/96, publicado no Diário da República, II série, de 17 de Outubro de 1997)'.
5. Ora, face a tudo que atrás de escreveu, não estamos perante uma dessas situações de todo improváveis, tal tem sido a fluidez legislativa em que o Governo se tem movido e se bem que, como afirma António Paes de Sousa (Anotações ao Regime do ARRENDAMENTO URBANO, 5ª ed., pág. 221), '[E]sses casos de caducidade constituíram no passado surpresas desagradáveis para os inquilinos' e que 'para prevenir estas situações, o RAU, através da alínea b), do nº 2, do artigo 8º, manda esclarecer obrigatoriamente nos contratos de arrendamento, a natureza do direito do locador, sempre que o contrato seja celebrado com base num direito temporário ou em poderes de administração de bens alheios', o certo
é que, no caso concreto dos autos, não só já se fazia constar do contrato a qualidade em que intervinha o locador, como não seria de todo imprevisível a evolução da legislação respeitante ao arrendamento urbano, tendo em conta a necessidade de tal equilíbrio entre os interesses dos senhorios e inquilinos. Tudo isto são razões que não se ignoram e que justificam, por parte do Estado, medidas tomadas com base na tal dialéctica que determina que, em certos momentos, os interesses de uns surjam sobrepostos relativamente aos interesses de outros (ou pelo menos não tão desnivelados), ou que produzam, senão um equilíbrio, pelo menos, um menor desequilíbrio, entre as partes envolventes. Citando M. Januário C. Gomes (Arrendamento para Habitação - 2ª ed., pág. 266):
'A eliminação do nº 2 do artigo 1051º constitui, parece-nos, um marco importante na evolução da legislação do arrendamento, repondo-se o regime inicial do Cód. Civil. A revogação do nº 2 do artigo 1051º vem reavivar a importância das situações de ilegitimidade do locador ou deficiências do seu direito (artº 1034º), para efeitos de responsabilidade civil ou de anulação'. Como se lê no acórdão nº 658/98, inédito, para uma situação de arrendamento celebrado por usufrutuário:
'Eliminou-se, assim, a solução segundo a qual o arrendamento celebrado pelo usufrutuário poderia manter-se inalterado, depois da sua morte, onerando o proprietário, medida, esta, considerada na doutrina como
'disfuncional e, provavelmente, inconstitucional. Disfuncional, por permitir que alguém possa onerar o que não lhe pertence; inconstitucional por conduzir a uma autêntica expropriação por utilidade particular sem qualquer indemnização'
(assim, A. Menezes Cordeiro/Castro Fraga, O novo regime do arrendamento urbano, cit., pág. 41)'. Ora bem, tudo quanto se acabou de escrever demonstra, mesmo admitindo, por mera hipótese, que estávamos perante uma situação de retroactividade, que uma modificação legislativa deste tipo não seria de todo imprevisível e inesperada, nem demasiado arbitrária, face à evolução de que a legislação respeitante ao arrendamento urbano tem sido alvo e à tentativa de equilíbrio entre os interesses em causa. Mas há ainda que ter em conta que, sabendo a locatária a qualidade em que a mãe da menor interveio na realização do contrato, não devia ignorar que os seus poderes de administração viriam a cessar com o alcance da maioridade da filha, sendo certo que '[Q]uando a lei se refere aos poderes de administração com base nos quais o contrato foi celebrado quer-se referir àqueles que em geral a lei confere em determinada situação e são esses os poderes, não subjectivados, com base nos quais se celebra o contrato. É pois a administração e não o administrador que se tem em consideração no aludido preceito da lei. Quer dizer, o regime de caducidade opera não a partir da cessação dos poderes daquele que, em concreto, no uso desses poderes, deu o prédio de arrendamento, mas quando cessa, em geral, o regime de administração a que o prédio está sujeito e com base no qual se atribuíram esses poderes' (cfr. Jorge Alberto Aragão Seia, Arrendamento Urbano, Anotado e Comentado, 3ª ed., pág. 369). Ora, se, e mesmo admitindo, por mera hipótese, que, face a uma aplicação retroactiva da norma em causa, esta não seria inconstitucional, há a considerar que o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que – mais uma vez se repete -: 'O artigo 1051º, nº 1, c) CC – que regula a hipótese em apreço – não foi aplicado retroactivamente a situação ou facto passado. A sua aplicação emerge directamente do facto de a A. passar a poder legalmente reger a sua pessoa e bens, facto que ocorre posteriormente à sua entrada em vigor'. Quer isto dizer que aquele Supremo Tribunal entendeu que o contrato se extinguiu automaticamente, com a assunção da maioridade da proprietária, por força da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 321-B/90.
'A caducidade é a extinção automática do contrato como mera consequência de algum evento a que a lei atribui esse efeito. O contrato extingue-se
‘ope-legis’, sem necessidade de qualquer manifestação de vontade, jurisdicional ou privada, tendente a extingui-lo' (cfr. António Paes de Sousa, Ob. Cit., págs.
147 e 148). Tal como se refere no acórdão 381/93 do Tribunal Constitucional (Diário da República, II Série, de 6 de Outubro de 1993), embora para um caso em que o transmitente do gozo do prédio para outrém era um usufrutuário, o proprietário é estranho a tal transferência, sendo certo que essa transferência constitui uma
'oneração' obrigacional sobre o prédio, que justifica a caducidade do contrato
(cfr. o citado acórdão nº 658/98). Ora, tendo sido entendimento do Supremo Tribunal de Justiça não haver retroactividade (e só essa interpretação aqui importa), dado o contrato se ter extinto, por força da caducidade, com a assunção da maioridade da proprietária, e na sequência da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 321-B/90, não se pode considerar ser a norma questionada inconstitucional quando, mesmo a admitir que essa retroactividade existisse, ainda assim não o seria.
6. No que respeita ao princípio da igualdade, o Tribunal Constitucional já repetiu em inúmeros acórdãos que aquele princípio só sai violado quando o legislador trata diferentemente situações que são essencialmente iguais, mas não proíbe diferenciações de tratamento quando essas diferenciações sejam materialmente fundadas. Tal princípio exige um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes. Ora, diferentes são as situações do arrendatário habitacional e comercial, dado que diferentes são também os interesses que se colocam numa e noutra forma de arrendamento (os valores subjacentes a tais situações não são os mesmos, apontando até, no caso de arrendamento para habitação, para um tratamento de excepção, como é a regra nova do artigo 66º, nº 2, da RAU). O legislador tratou de forma igual o arrendamento habitacional para todos os arrendatários habitacionais colocados na mesma situação e, também de forma igual, o arrendamento para o comércio ou indústria para todos os interessados colocados em idêntica situação. Não há, pois, qualquer reparo a fazer, sob este ponto de vista, à norma em questão. Relativamente ao direito ao trabalho e à cultura, por se tratar de 'arrendamento comercial com inúmeros postos de trabalho', como bem refere o acórdão recorrido, basta ler os preceitos constitucionais que dispõem sobre aqueles direitos
(artigos 58º e 73º da Constituição) para se perceber que a sua protecção se insere num contexto diferente daquele em que a recorrente situa a sua alegação. Por último, a invocada colisão 'com o disposto no art. 18º do texto constitucional' não tem razão de ser, desde logo, por não se estar aqui propriamente em face de uma restrição de direitos fundamentais. Com o que não se demonstra a violação de normas ou princípios constitucionais de que se serve a recorrente ou de quaisquer outros emergentes da Lei Fundamental
(também no citado acórdão nº 658/98 decidiu-se que a mesma norma do artigo 5º, nº 2, não é inconstitucional, no plano da (in)constitucionalidade orgânica).
7. Termos em que, DECIDINDO, nega-se provimento ao recurso. Lisboa, 10 de Março de 1999- Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Bravo Serra Maria Fernanda Palma (vencida quanto à questão de inconstitucionalidade orgânica, de acordo com as razões invocadas para o voto de vencida emitido no Acórdão nº 658/98). José Manuel Cardoso da Costa