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Processo nº 86/99
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A. G. propôs no Tribunal Cível da Comarca do Porto, contra A. P. S., LDA., uma acção ordinária na qual pediu que fosse julgado resolvido o contrato de empreitada entre ambos celebrado e condenada a ré no pagamento de uma indemnização, acrescida de juros de mora. Em síntese, alegou que a obra apresentava defeitos imputáveis à ré, empreiteira, e que, portanto, o contrato se deveria considerar resolvido conforme declaração que lhe dirigira nesse sentido. No que agora releva, o pedido foi julgado improcedente, fundamentalmente porque o tribunal entendeu que o dono da obra 'não pode, sem mais, e verificados vícios ou defeitos na obra, resolver o contrato de empreitada', como resulta do regime previsto no nº 1 do artigo 1222º do Código Civil. Para ter esse direito,
'impõe-se que os vícios constatados na obra sejam de tal monta que comprometam o fim a que estava destinada a obra', o que não ficou provado nos autos (sentença de fls. 648). Também foi julgado infundado o pedido de indemnização. Diferentemente, foi concedido provimento parcial ao pedido deduzido pela ré em via de reconvenção. Não interessa, todavia, no contexto deste recurso de constitucionalidade, a análise deste ponto da acção. Inconformado, o autor interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que, porém, confirmou a decisão da 1ª instância (pelo acórdão de fls. 704). Sempre considerando, apenas, o que agora releva, o Tribunal da Relação do Porto entendeu não ser fundada a resolução do contrato pretendida pelo autor porque
'nos termos do art. 1222º, Nº 1 o dono da obra só pode exigir a redução do preço ou a resolução do contrato se os defeitos não forem eliminados, ou construída de novo a obra ‘se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina’. Não logrou o autor provar que os defeitos verificados eram impossíveis de eliminar ou que tornavam a obra inadequada ao fim a que se destinou (...). Podendo ser rectificados os vícios detectados no prosseguimento da obra, tanto mais que ainda ia na 1ª fase. Não havendo impossibilidade de os sanar. Não assiste, pois, ao apelante o direito de rescindir o contrato de empreitada
(...). Não viola o nº 1 do art. 1222º qualquer preceito constitucional, designadamente os citados por este Apelante (...). Não há, pois, em tal preceito qualquer violação da liberdade contratual, ao direito de propriedade ou à igualdade dos cidadãos perante a lei'. Nas alegações da apelação, A. G. invocara a inconstitucionalidade da parte final do artigo 1222º do Código Civil. Sustentara que 'entender-se que apenas há lugar a redução do preço e só depois a resolução, se houver inadequação, é uma solução manifestamente inconstitucional. Pois que obrigar alguém a aceitar, mesmo reduzindo o preço, algo que não quer, ofende não só a liberdade contratual (art. 405º C.C.), como os direitos de propriedade e o direito à habitação, consignados nos artºs 62º, nº 1 e 65º, nº
1, ambos da C.R.P., ao mesmo tempo que desequilibra gravemente a igualdade entre as partes, favorecendo manifestamente, sem qualquer motivo, uma delas, violando deste modo o artº 13º C.R.P. Pelo que deve declarar-se a inconstitucionalidade da última parte do artº 1222º C.C.'. O Supremo Tribunal de Justiça (acórdão de fls.748), julgando o recurso de revista interposto por A. G., 'de harmonia com o disposto no artº 713º, nº 1 e
726º do C.P.C. e artº 25 do D.L. 329-A/95 de 12/12, pelos fundamentos daquela decisão recorrida para que se remete e pelos aqui acrescidos (...)', confirmou o julgamento das instâncias. Quanto à questão da inconstitucionalidade do nº 1 do artigo 1222º do Código Civil, o Supremo Tribunal de Justiça, tal como havia julgado o Tribunal da Relação do Porto, considerou-a infundada. Pedida a aclaração deste acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça considerou não haver fundamento para a deferir.
2. Inconformado, A. G. recorreu para o Tribunal Constitucional, solicitando a apreciação da constitucionalidade do artigo 1222º. Completando o requerimento de interposição de recurso, na sequência do convite formulado pelo despacho de fls.
787, veio esclarecer, não só onde tinha invocado a inconstitucionalidade, mas também que a norma impugnada era aquela segundo a qual 'em caso de defeitos da obra, ‘in casu’ a construção de uma moradia para habitação, se eles não forem rectificados, há primeiro direito à redução do preço e só depois direito de resolução, mas só em caso de inadequação da obra ao fim a que se destina;
6º- Entendimento este que resulta da interpretação feita àquele nº 1 do art.
1222º C.C.;
7º- E que, no entender do recorrente, viola os artºs 62º, nº 1, 65º, nº 1 e 13º da C.R.P., ao pôr em crise o direito de propriedade e à habitação, bem como assim por tratar de modo desigual o empreiteiro e o dono da obra'.
3. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as suas alegações. O recorrente, em síntese, sustentou que 'deve declarar-se inconstitucional a interpretação do artº 1.222º, nº 1 do Cód. Civil que obrigue o dono da obra que foi levada a cabo com defeitos, e, pois, contra o contratado, a aceitar esta com redução do preço e só depois, se ela for inadequada ao fim a que se destina, ter direito à resolução do contrato, e, em consequência, ser o douto acórdão recorrido revogado (...)' por infracção do princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição), pois que 'favorece uma parte em detrimento da outra, beneficiando quem não cumpriu (...), do direito de propriedade, direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, 'porque se priva o dono da coisa da sua propriedade plena, que é assim restringida'(artigos 17º e 62º, nº 1), do direito à habitação e do princípio da protecção constitucional da família (nº 1 do artigo 65º e nº 1 do artigo 67º) porque 'obrigar alguém a aceitar a construção de uma habitação com defeitos que não quis nem provocou viola do direito à habitação, que é instrumental em relação à garantia constitucional da família'. Nas contra-alegações, a recorrida veio sustentar ser 'completamente destituída de fundamento' a pretensão da recorrente de ver julgado 'inconstitucional o artigo 1222º do Código Civil. (...) Não beneficia o empreiteiro em detrimento do dono da obra', não atinge, nem a plenitude, nem a exclusividade da propriedade do dono da obra, não põe em causa o direito à habitação, nem afecta por forma alguma a protecção constitucional da família.
4. Cumpre começar por definir o objecto do recurso. Como resulta da resposta transcrita, consiste na norma contida no nº 1 do artigo 1222º do Código Civil segundo a qual, em caso de defeito na obra realizada no âmbito de um contrato de empreitada, o dono da obra só pode resolver o contrato com fundamento no defeito não eliminado se ele tornar inadequada a obra ao fim a que se destina.
5. Em primeiro lugar, o recorrente sustenta que a norma impugnada viola o princípio da igualdade, favorecendo injustificadamente o contraente que deu causa aos defeitos e, assim, não cumpriu o contrato, em prejuízo da contraparte, que se vê obrigada a aceitar a obra defeituosa. Não tem, porém, manifestamente razão. Com efeito, não se verifica qualquer violação do princípio da igualdade, cujas exigências se podem condensar na ideia de proibição do arbítrio (ver, por exemplo, de entre a abundante jurisprudência deste Tribunal, o acórdão nº
563/96, in Diário da República, I-A , de 16 de Maio de 1996). Ora a norma impugnada não é arbitrária na definição dos direitos dos contraentes, em caso de existência de defeito na obra. Apenas se limita a definir um mecanismo que permita o respectivo equilíbrio, sendo a obra realizada com defeito. Na verdade, se, por um lado, exclui o direito de resolução por parte do senhorio se o defeito, não eliminado, não torna a obra inadequada ao fim a que se destina, por outro, impõe ao empreiteiro a redução correspondente do preço devido. No fundo, encontramos neste regime uma manifestação do princípio que informa o regime geral de resolução por incumprimento, decorrente da conjugação do disposto no artigo 808º e no nº 1 do artigo 801º do Código Civil, equivalendo a aptidão da obra para o fim a que se destina à satisfação do interesse do credor, prevista no citado artigo 808º. Repare-se que a norma em apreciação prevê a hipótese de a obra ter sido realizada; se o interesse do credor fica, no essencial, satisfeito, não há realmente justificação para que igual satisfação se não dê ao empreiteiro, mantendo o contrato, embora com a redução correspondente da contraprestação a que ele tem direito. Em segundo lugar, não atenta contra o direito de propriedade do dono da obra, nem se vê como se possa afirmar que o priva 'da sua propriedade plena, que é assim restringida', pois que em nada é afectado o seu conteúdo. Em terceiro lugar, não se alcança como pode invocar-se violação do direito à habitação. Sejam quais forem as implicações da consagração constitucional deste direito, a verdade é que é pressuposto da exclusão do direito de resolução a exigência de que a obra se não mostre inadequada ao fim a que se destina – à habitação, no caso. A mesma consideração se pode utilizar, finalmente, para refutar o argumento de que a norma impugnada é inconstitucional por infringir a protecção constitucional da família, no âmbito em que a questão se pode colocar.
Assim, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que toca à questão de constitucionalidade. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 12 de Janeiro de 2000 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa L uís Nunes de Almeida