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Proc. nº 147/95
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 7 de Maio de 1990, M... propôs acção de despejo, com processo sumário, contra J... e mulher, MM..., pedindo a resolução de contrato de arrendamento para habitação celebrado entre a autora e os réus. Alegou que os réus, após terem adquirido um prédio para habitação própria, deixaram de ter residência permanente na fracção autónoma que ela lhes havia dado em locação, e que cederam a terceiros a fracção autónoma arrendada, sem autorização da senhoria.
Contestaram os réus que, encontrando-se em situação de separação de facto, o réu marido continua a residir na fracção autónoma arrendada e que não cederam a outrem a fracção arrendada, pois o réu marido apenas convidou um casal amigo para com ele viver. Os réus deduziram reconvenção, pedindo a condenação da autora a pagar a importância de 955 000$00, correspondente a despesas que alegam ter efectuado no prédio arrendado.
O Tribunal Cível da Comarca de Lisboa (17º Juízo) decretou a resolução do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 1093º, nº 1, alínea i), do Código Civil, condenando os réus a despejar o prédio arrendado e a entregá-lo à autora, livre e desocupado, e condenou a autora a pagar aos réus a quantia de 955 000$00, correspondente às despesas por estes efectuadas (sentença de 1 de Abril de 1992, fls. 114).
2. M.... interpôs recurso de apelação, relativamente à parte da sentença que a condenou. Por sua vez, J... e mulher recorreram, subordinadamente, da sentença, na parte em que decretou a resolução do contrato de arrendamento.
Nas suas alegações de recurso, J... e mulher sustentaram que os factos dados como provados não demonstram a verificação da falta de residência permanente, 'pois não esclarecem desde quando é que tal situação se verifica ou se foi uma situação duradoura ou, pelo contrário, uma situação pontual e transitória'. Afirmaram que a não exigência do decurso de mais de um ano para a falta de residência permanente criaria uma situação de manifesta desigualdade entre os arrendatários habitacionais e as restantes categorias de arrendatários não habitacionais. Concluíram que 'a sentença recorrida, ao decretar a resolução do contrato de arrendamento com base nos factos resultantes da resposta ao quesito 1º, violou as normas constantes quer da 2ª parte da alínea i) do nº 1 do artº 1093º do Código Civil, quer do artº 13º da Constituição da República' (fls.
142 das alegações apresentadas no recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa e conclusão 6ª das mesmas alegações).
3. Por acórdão de 29 de Novembro de 1994 (fls. 158), o Tribunal da Relação de Lisboa, considerando que os réus não provaram quaisquer factos que permitam qualificar as benfeitorias por eles efectuadas como necessárias, úteis ou voluptuárias, e tendo também em conta que o contrato de arrendamento não permitia a realização de obras pelos inquilinos sem autorização escrita da senhoria (assim, necessariamente, as benfeitorias úteis ou voluptuárias), decidiu pelo provimento do recurso principal (apenas condenando a autora a pagar aos réus a quantia de 60 000$00, correspondente a despesas que a autora não impugnou nas conclusões das suas alegações). A Relação negou provimento ao recurso subordinado, confirmando integralmente a sentença da 1ª instância, por entender que nos autos ficou provada a falta de residência permanente dos réus no andar arrendado, tanto bastando para que seja resolvido o contrato de arrendamento, nos termos do artigo 1093º, nº 1, alínea i), 2ª parte, do Código Civil.
Quanto à alegada violação do princípio da igualdade, lê-se no acórdão da Relação de Lisboa:
'[...] aos RR. apelantes não assiste qualquer razão quando alegam que a não exigência do decurso do prazo de mais de um ano para a falta de residência permanente criaria uma situação de manifesta desigualdade entre os arrendatários habitacionais e as restantes espécies de arrendatários não habitacionais. Desconforme ao princípio da igualdade, por eles referido, seria sim permitir a manutenção de um arrendamento destinado a habitação permanente do inquilino, quando este tivesse deixado de ter, no local arrendado, a sua residência permanente [...] e obrigar, do mesmo passo, o senhorio a aguardar pelo decurso do prazo de mais de um ano, indo contra o próprio fim social do contrato.
[...] Quando o prédio seja arrendado para residência permanente, não se tornou necessário estabelecer, na 2ª parte da citada alínea i), qualquer limite temporal, já que é possível, independentemente dele, concluir pela não utilização do prédio em conformidade com o fim para que foi arrendado.'
4. Do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa vieram J... e mulher interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo
70º, nº 1, b), da Lei nº 28/82, 'por o acórdão recorrido ter aplicado a alínea i) do nº 1 do artigo 1093º do Código Civil, com o sentido de que a falta de residência permanente nele referida não ter que se verificar, pelo menos, durante um ano, o que redunda numa interpretação desconforme com a Constituição, violadora do princípio da igualdade consagrado no seu artº 13º, pois cria uma situação de desigualdade entre o locatário habitacional, por um lado, e o locatário comercial ou locatário de arrendamento para outros fins que não o comercial ou o habitacional, por outro'.
No Tribunal Constitucional, os recorrentes concluíram assim as suas alegações:
'1ª- A decisão recorrida interpretou e aplicou a norma constante da segunda parte da alínea i) do nº 1 do art. 1093º do Código Civil, no sentido de que a falta de residência permanente no locado para fins habitacionais não tem que se verificar, por mais de um ano, consecutivamente.
2ª- Esse sentido com que o segmento da referida norma foi interpretado e aplicado cria uma situação de desigualdade entre os inquilinos habitacionais e os inquilinos não habitacionais que é materialmente inconstitucional, pois contraria o princípio da igualdade consagrado no art. 13º da Constituição.
3ª- Na verdade, enquanto que para os inquilinos não habitacionais a não utilização do arrendado só constitui causa de resolução do contrato de arrendamento se tiver perdurado por mais de um ano, consecutivamente.
4ª- Já para os inquilinos habitacionais tal não utilização de locado, consubstanciada na falta de residência permanente, seria motivo de despejo, ainda quando não tivesse perdurado por mais de um ano consecutivamente.
5ª- E tal diferença de tratamento não encontra um fundamento material bastante,
à luz de valores constitucionalmente relevantes.
6ª- Conduzindo até a uma tutela mais diminuída do inquilino habitacional, por confronto com a correspondente tutela normativa dispensada aos inquilinos não habitacionais.
7ª- Sendo certo que na posição locatícia do primeiro também está em causa um direito fundamental que é o direito à habitação, o que já não acontece com relação aos últimos.'
A recorrida formulou as seguintes conclusões:
'1ª- Os recorrentes não demonstraram que se verifique uma situação de desigualdade entre os inquilinos de prédios arrendados para habitação e os inquilinos de prédios arrendados para outros fins.
2ª- A não fixação pela Lei de um prazo de verificação da não residência permanente superior a um ano, como condição para esta fundamentar a Resolução do contrato, resulta de a noção de 'não manutenção da residência permanente' já conter em si uma componente temporal.
3ª- Pelo contrário, a previsão correspondente para os contratos de arrendamento para outros fins, formulada em termos de o inquilino '... conservar desocupado...' ou '... conservar desabitado...' o prédio arrendado, exige que se fixe um prazo de duração da situação prevista, como condição para ela fundamentar a Resolução do contrato.
4ª- O legislador deixa ao critério do Julgador o prazo de duração da situação de facto, para que este, em cada caso, dê como verificada a situação de não residência permanente.
5ª- Em consequência, o prazo de duração da situação de facto, donde o julgador infere a verificação da não residência permanente, pode ser superior a um ano.
6ª- A diferença entre as normas, por um lado constantes da alínea h) e 1ª parte da alínea i) do nº 1 do art. 1093º CC, e por outro lado da norma da 2ª parte da mesma alínea i), é justificada pela diferente natureza das situações de facto a que elas se aplicam.
7ª- O inquilino de prédio arrendado para habitação não é tratado pela Lei de forma desigual em relação aos inquilinos de prédios arrendados para outros fins.'
5. Em consequência da alteração na composição do Tribunal Constitucional, houve mudança de relator.
Completados os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.
II
6. O presente recurso tem por objecto a questão da constitucionalidade da norma constante do artigo 1093º, nº 1, alínea i), 2ª parte, do Código Civil, hoje revogada, e substituída pela norma correspondente (apenas com uma alteração de pormenor) do Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro.
Dispunha o artigo 1093º do Código Civil, na parte que interessa considerar:
'Artigo 1093º
(Casos de resolução)
1. O senhorio só pode resolver o contrato:
[...]
h) Se conservar encerrado por mais de um ano, consecutivamente, o prédio arrendado para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, salvo caso de força maior ou ausência forçada do arrendatário, que não se prolongue por mais de dois anos;
i) Se conservar o prédio desabitado por mais de um ano, consecutivamente, ou, sendo o prédio destinado a habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia.'
Os recorrentes consideram inconstitucional, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição, a interpretação segundo a qual a falta de residência permanente exigida na parte final da disposição transcrita não tem que se verificar, pelo menos, durante um ano. Na perspectiva dos recorrentes esse sentido da norma criaria uma situação de desigualdade entre, por um lado, o locatário habitacional e, por outro lado, o locatário comercial ou o locatário de arrendamento para outros fins que não o comercial ou o habitacional.
7. A norma questionada pelos recorrentes fixa o regime de resolução do contrato de arrendamento nos casos em que o prédio se destina a habitação do arrendatário.
7.1. Em termos gerais, a resolução é uma modalidade de extinção de uma relação contratual validamente constituída, operada por acto posterior de um dos contraentes. Os seus fundamentos são fixados na lei ou em convenção das partes
(artigo 432º, nº 1, do Código Civil). A resolução assenta sempre num poder vinculado, competindo à parte que pretende exercer esse direito alegar e provar o fundamento previsto na lei ou na convenção das partes que justifica a extinção unilateral do contrato.
Analisando as causas típicas de resolução do contrato de arrendamento por parte do senhorio, fixadas nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 1093º do Código Civil – constantes, actualmente, do artigo 64º do R.A.U.
– conclui-se que o fundamento legal da resolução se encontra no incumprimento do contrato pelo arrendatário.
Ora, o contrato de arrendamento – de um modo mais geral, o contrato de locação – configura um tipo contratual que tem como elemento essencial o fim ou a finalidade a que se destina o uso do bem locado. A afectação do objecto constitui o critério de distinção entre as diversas modalidades de locação e, concretamente, entre as diversas modalidades de arrendamento.
Por essa razão, as causas legais de resolução do contrato de arrendamento previstas nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 1093º do Código Civil – para além da causa comum de não pagamento da renda, prevista na alínea a) – traduzem sempre incumprimento do fim específico em atenção ao qual o contrato foi celebrado.
No caso do contrato de arrendamento para habitação, o incumprimento do fim específico em atenção ao qual o contrato foi celebrado revela-se na falta de residência permanente. A residência permanente pode definir-se como o local onde a pessoa tem o centro ou sede da sua vida familiar e social e da sua economia doméstica.
O especial regime a que se encontra submetido no direito português o contrato de arrendamento para habitação – a protecção vinculística – justifica-se precisamente em atenção à necessidade de preservar o 'direito à habitação' no local onde o arrendatário tem organizada a sua vida familiar e a sua economia doméstica. Daí que essa protecção deva cessar quando o arrendatário deixe de ter a sua residência permanente no imóvel arrendado, nos termos do artigo 1093º, nº 1, alínea i), 2ª parte, do Código Civil (actualmente, nos termos do artigo 64º, nº 1, alínea i), 2ª parte, do R.A.U.).
O Tribunal Constitucional teve já a oportunidade de se pronunciar sobre este fundamento de resolução do contrato de arrendamento, embora em dimensões diferentes da que vem questionada no presente recurso, tendo em todos os casos concluído no sentido da não inconstitucionalidade da norma impugnada (o artigo 64º, nº 1, alínea i), 2ª parte, do R.A.U.) – assim, no acórdão nº 575/95
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 32º, p. 395 ss), nos acórdãos nºs
952/96 e 32/97 (inéditos) e no acórdão nº 633/95 (Diário da República, II, nº
94, de 20 de Abril de 1996, p. 5439 ss).
Seguindo a posição adoptada nos acórdãos citados, reafirma-se que a solução consagrada na lei quanto a esta causa de resolução do contrato de arrendamento aparece justificada dentro de um critério de justiça material e de equilíbrio entre as posições do locador e do locatário, não contendo qualquer violação do 'direito à habitação' consagrado constitucionalmente, seja qual for o sentido que se atribua a tal direito.
7.2. Sustenta o recorrente que a circunstância de a norma em apreço não exigir que a falta de residência permanente se prolongue por mais de um ano constitui violação do princípio da igualdade, tendo em conta a exigência contida na alínea h) do mesmo preceito e até a exigência contida na 1ª parte da própria alínea i), quanto a outras modalidades de arrendamento.
No caso do arrendamento para comércio, indústria e exercício de profissão liberal (previsto na alínea h)) e no caso do arrendamento para outros fins (previsto na 1ª parte da alínea i)), a lei indicou expressamente o critério ou elemento revelador do incumprimento contratual que justifica a resolução do contrato por parte do senhorio. Esse critério é o 'encerramento' ou a
'desocupação' do prédio arrendado 'por mais de um ano'. Trata-se de critério ou elemento puramente fáctico, a que a lei associa necessariamente o não exercício do comércio, indústria ou profissão liberal. O prazo – de um ano – surge neste contexto como instrumental na demonstração do 'não uso' relevante para efeitos de verificação do incumprimento contratual.
No caso do arrendamento para habitação (previsto na 2ª parte da alínea i)), a causa de resolução é, como se verificou, a 'falta de residência permanente', considerado o fim específico em atenção ao qual o contrato foi celebrado. Sendo a residência permanente um conceito técnico-jurídico cujo conteúdo deve aferir-se em função de vários elementos, a lei optou por não indicar um qualquer índice ou critério ao qual fosse inevitavelmente ligada a falta de residência permanente, porventura por se entender que qualquer um dos
índices ou critérios eventualmente utilizáveis – ainda que permanecendo durante um certo período de tempo – seria por si só desadequado ou insuficiente para demonstrar a falta de residência permanente.
Daqui resulta que para a resolução do contrato de arrendamento que tenha como fim a habitação a lei não considerou adequado ou suficiente o 'não uso' do imóvel durante um certo período de tempo, tendo exigido a 'falta de residência permanente', isto é, a demonstração de que o arrendatário deixou de ter no imóvel arrendado 'o centro ou sede da sua vida familiar e social e da sua economia doméstica'.
Pretende-se precisamente impedir que simples situações de 'não uso' do imóvel – ainda que prolongadas no tempo – sejam utilizadas pelo senhorio para fazer cessar o contrato de arrendamento que tenha como fim a habitação do arrendatário.
No caso dos autos, tanto o Tribunal de 1ª instância como a Relação de Lisboa consideraram que os factos dados como provados eram suficientes para concluir que os réus, ora recorrentes, deixaram de ter no imóvel arrendado a sua residência permanente. A apreciação dessa prova está obviamente fora do controlo do Tribunal Constitucional.
8. O princípio da igualdade exige o tratamento igual de situações iguais, admitindo o tratamento diferenciado de situações diferentes. O princípio da igualdade implica tão só a proibição de distinções arbitrárias ou injustificadas.
Na matéria em discussão no presente processo, a lei fixa critérios diferentes para situações diferentes, tendo em vista um determinado escopo – a verificação do incumprimento do contrato de arrendamento por parte do arrendatário. A diferença de critérios tem um fundamento material que se relaciona com a finalidade própria do tipo (ou subtipo) contratual em causa, como ficou demonstrado.
Não há portanto nas normas em apreço qualquer diferença de regime que possa considerar-se arbitrária ou injustificada. Em consequência não existe violação do princípio da igualdade constitucionalmente censurável.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo
1093º, nº 1, alínea i), 2ª parte, do Código Civil;
b) negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que diz respeito à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 28 de Abril de 1999- Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa