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Processo nº 455/97
2ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. P... foi condenado, no Tribunal Judicial da Comarca de S. Vicente, pela prática de um crime de ofensas corporais, previsto e punido pelo artigo 142º do Código Penal de 1982, na pena de 7 meses de prisão, a qual foi declarada totalmente perdoada, ao abrigo do disposto na alínea c) do nº 1 do art. 8º da Lei nº 15/94, de 11 de Maio.
Inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo, por entre o mais, ser manifesta a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida. Acrescentou que, 'quando assim não se entenda,
g) Além dos meios de prova que serviram de base para formar a sua convicção o tribunal deve fazer consignar os elementos que à formação da mesma conduziram.
h) A decisão recorrida não expõe de forma completa, ainda que concisa, as razões de facto e de direito que esclareçam o processo lógico-racional que levou à formação da sua convicção.
i) A decisão recorrida é nula por violação do disposto no artº 374, nº 2 do C.P.P.'.
O Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, apesar de considerar ter sido cometido pelo arguido o crime previsto e punido pelo artigo 144º do Código Penal de 1982. Alterou, assim, a sentença nesse ponto, mantendo-a embora quanto ao mais, em obediência ao princípio da proibição da reformatio in peius, previsto no artigo 409º do Código de Processo Penal.
O recorrente pediu então a aclaração deste acórdão, solicitando que
'aclare qual a fundamentação fáctica da decisão recorrida que permite concluir que o ora recorrente agrediu a soco e a pontapé o arguido Pereira'.
O Tribunal, porém, indeferiu o requerimento, afirmando, por um lado, não se verificar qualquer obscuridade e, por outro, aderindo à doutrina exposta num Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16/11/95 (Boletim do Ministério da Justiça, 451, pág. 279), do qual transcreveu a seguinte parte:
'– A lei não exige que na sentença, na exposição dos motivos de facto que a fundamentaram, seja explicado o processo lógico ou racional que conduziu o tribunal à convicção subjacente à descrição fáctica que faz.
– Os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, referidos no artº 374º, nº 2 do C.P.P, são apenas os factos e as razões de direito que constituem a base da decisão ou o seu fundamento.
– Exigir, para além disso, que os julgadores tivessem de explicar qual o ‘processo lógico ou racional’ que os conduziu à convicção subjacente à descrição fáctica, é um preciosismo que a lei de processo não impõe nem se vê como poderia razoavelmente ser imposto...'.
2. Deste último acórdão veio o arguido recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, afirmando que a interpretação adoptada pelo Tribunal da Relação de Lisboa relativamente ao nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal 'não se conforma com os princípios informadores do Estado de Direito Democrático e no respeito pelo efectivo direito de defesa consagrado no artº 32º, nº 1 e artº 208º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa'.
O Tribunal da Relação de Lisboa admitiu o recurso, em decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo 76º da Lei do Tribunal Constitucional).
Convidado a indicar os elementos em falta no requerimento de interposição de recurso (a norma cuja inconstitucionalidade invoca, a decisão judicial de que recorre e a peça processual em que suscitou a questão de constitucionalidade), o recorrente esclareceu, em primeiro lugar, que pretendia a apreciação da constitucionalidade da interpretação que o Tribunal da Relação de Lisboa fez do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, 'nomeadamente do entendimento constante da resposta dada ao pedido de aclaração'; em segundo lugar, que recorria da 'decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa com o aclaramento que fez'; e, por último, justificou a circunstância de não ter suscitado a questão de constitucionalidade senão no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional por não ter havido aplicação directa, na 1ª instância, da norma ora impugnada, e por 'ser de todo imprevisível que tal questão viesse a colocar-se nesse acórdão'.
Nas alegações, o recorrente desenvolveu as razões que o levaram a interpor o recurso. Nas contra-alegações, porém, o representante do Ministério Público neste Tribunal veio sustentar que
'Por não ter sido suscitada durante o processo a questão de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, na interpretação acolhida na decisão recorrida, não poderá conhecer-se do objecto do presente recurso'.
Chamado a pronunciar-se sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, o recorrente afirmou, no essencial, o seguinte:
'8) A questão do entendimento do disposto no nº 2 do artº 374º do C.P.P. surge apenas porque o ora recorrente suscita o aclaramento do Acórdão proferido pela Relação.
9) E é na resposta ao referido pedido de aclaramento que surge pela primeira vez a questão da interpretação daquela norma e da posição aí defendida ser contrária ao direito de defesa consagrado na Constituição da República Portuguesa.
10) Não tendo a 1ª instância tomado posição – nem tinha que a tomar – quanto à questão da necessidade de explicar o processo lógico-racional que levou
à formação da sua convicção, no recurso que dela foi interposto não se podia por a questão da constitucionalidade do entendimento da norma; é que o que está em causa no presente recurso é a constitucionalidade de um determinado entendimento de uma norma e não da própria norma.
11) Tal questão só vem assim a surgir de forma imprevista quando o Tribunal da Relação julga procedente o recurso ao fazer uma interpretação da norma que é manifestamente inconstitucional'.
3. A verdade é que o Tribunal Constitucional não pode conhecer do objecto do presente recurso. Conforme sustenta o Ministério Público nas suas contra-alegações, não foi suscitada durante o processo a inconstitucionalidade de qualquer norma, nos termos exigidos pela al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Este Tribunal tem reiteradamente afirmado que o requisito da invocação da inconstitucionalidade de uma norma ou de uma sua interpretação durante o processo se traduz na necessidade de que tal questão seja colocada perante o tribunal recorrido, proporcionando-lhe desta forma a oportunidade de a apreciar. Só em casos excepcionais e anómalos, em que o recorrente não dispôs processualmente dessa possibilidade, ou em que não era de todo previsível a aplicação de uma norma (ou dessa norma, com o sentido que lhe foi dado na decisão recorrida), é que será admissível a arguição em momento subsequente
(cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e
160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994). Tal excepcionalidade manifestamente não ocorre neste caso. Não pode invocar-se falta de oportunidade processual para invocar a inconstitucionalidade durante o processo. E de modo algum pode afirmar-se que era imprevisível a interpretação que o Tribunal da Relação de Lisboa aceitou do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal. Tal interpretação – de acordo com a qual não se exige que, na fundamentação da sentença condenatória, 'na exposição dos motivos de facto que a fundamentaram, seja explicado o processo lógico racional que conduziu o Tribunal
à convicção subjacente à descrição fáctica que faz' – é, ao invés, aceite em numerosas decisões jurisprudenciais, muitas das quais se encontram publicadas. Tinha assim o recorrente o ónus de prever a possibilidade de o Tribunal da Relação adoptar um entendimento que era corrente, embora não unânime, da norma cuja constitucionalidade impugna. Note-se, aliás, que, ao invocar a nulidade do acórdão da primeira instância, no recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de Lisboa, o recorrente o baseou
(embora não apenas) na violação do disposto no nº 2 do artigo 374º em causa pelas razões que, posteriormente, veio a questionar a respectiva constitucionalidade: confronte-se as suas alegações de fls. 426, maxime os pontos 3.1 a 3.4, com as alegações de fls. 504.
Nestes termos, decide-se não conhecer-se do presente recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6__ ucs. Lisboa, 28 de Abril de 1999 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa