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Proc. nº 293/99
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Na Comarca de Setúbal, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos F. G., L. C. e S.–Sociedade Agro-Pecuária da Q. do A., Lda., por existirem nos autos indícios da prática:
– pelos dois primeiros arguidos,
a) de um crime de abate clandestino, previsto e punível pelo artigo
22º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 28/84, de 29 de Janeiro;
b) de um crime de corrupção de substâncias alimentares, previsto e punível pelo artigo 282º, nº 1, alíneas a) e b), do Código Penal;
c) de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios, previsto e punível pelo artigo 24º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 28/84;
d) de uma contra-ordenação, prevista e punível pelo artigo 58º, nº
1, alínea c), do mesmo Decreto-Lei nº 28/84, com referência aos artigos 3º, nº
2, alínea f), e nº 1, alínea e), 55º e 56º do Regulamento das Condições Sanitárias da Produção de Carnes Frescas e sua Colocação no Mercado, aprovado pela Portaria nº 971/94, de 29 de Outubro;
– pela arguida S.,
a) de um crime previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, 7º, 8º e artigo 22º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 28/84;
b) de um crime previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, 7º, 8º e artigo 24º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 28/84;
c) de uma contra-ordenação, prevista e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 54º, nº 2, e 58º, nº 2, alínea c), do mesmo Decreto-Lei nº 28/84, com referência aos citados artigos 3º, nº 2, alínea f), e nº 1, alínea e), 55º e 56º do referido Regulamento.
Notificados da acusação, os arguidos S. e F. G. requereram a abertura de instrução, arguindo, entre o mais, a nulidade decorrente da alegada inobservância do disposto no artigo 46º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, quanto à contra-ordenação que lhes era imputada.
No despacho instrutório, o Juiz pronunciou os arguidos pela prática dos ilícitos de que vinham acusados, com excepção do crime de abate clandestino. Na mesma decisão, foi indeferida a mencionada arguição de nulidade processual
(fls. 10 e seguintes dos presentes autos).
2. Inconformados com a decisão, na parte em que indeferiu a nulidade e na parte em que impôs aos arguidos medidas de coacção, dela interpuseram recurso os arguidos S. e F. G.. Na respectiva motivação, apresentaram as seguintes conclusões, com relevância para o que agora interessa considerar:
'[...] b) a decisão recorrida em sede de arguição de nulidade por falta de comunicação aos arguidos das decisões proferidas em sede contra- -ordenacional, viola o disposto nos arts. 46º, nº 1 do DLCO e 32º, nº 8, da CRP, na medida em que, ao fazer decorrer dos arts. 38º, nº 1 e 57º do DLCO que, ao atribuírem competência para o processamento da contra-ordenação à entidade competente para a parte criminal, tal preclude a obrigação de comunicação aos arguidos das decisões proferidas no processo de contra-ordenação, limitam a possibilidade de cabal exercício do direito de defesa dos arguidos; c) que, pelo simples facto funcional de ser o processo de contra- -ordenação da competência de outra entidade, passam a estar inibidos de conhecer as decisões que ocorreria se a competência fosse da entidade administrativa; d) sendo que, só através do conhecimento integral e cabal dos elementos nos autos podem os arguidos exercer, na sua plenitude, os seus direitos de defesa, os quais envolvem, naturalmente, um acompanhamento dos elementos carreados para os autos; e) aliás, tal interpretação e consequências que a decisão recorrida faz derivar dos arts. 38º, nº 1, e 57º do DLCO envolvem a sua inconstitucionalidade em face do art. 32º, nº8, da Constituição da República Portuguesa [...]'.
3. O Tribunal da Relação de Évora concedeu parcial provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido na parte em que determinou aos arguidos a prestação de caução carcerária e de caução económica (acórdão de 26 de Janeiro de 1999, fls. 98 e seguintes).
Relativamente à alegada inobservância, durante a fase de inquérito, da regra do artigo 46º do regime jurídico das contra-ordenações (Decreto-Lei nº
433/82), o Tribunal da Relação considerou não merecer censura a decisão recorrida, com os seguintes fundamentos:
'[...] no domínio das contra-ordenações, o processamento das mesmas, e a aplicação das coimas e eventuais sanções acessórias é, em regra, da competência das autoridades administrativas determinadas pela lei – arts. 33º e 34º do referido Dec.-Lei. Mas se houver concurso de um crime e de uma contra-ordenação, ou quando, pelo mesmo facto, uma pessoa deva responder a título de crime e outra a título de contra-ordenação, então já o processamento da contra-ordenação cabe às autoridades competentes para o processo criminal, maxime o M.P., cabendo então ao juiz competente para o julgamento do crime a aplicação da coima e eventuais sanções acessórias – arts. 38º, e 39º, nº 1, do aludido regime jurídico. Foi o que sucedeu na hipótese dos autos, em que, findo o inquérito a que se procedeu, nos serviços do M.P. na comarca de Setúbal, foi pelo respectivo magistrado deduzida acusação contra os arguidos, imputando-lhes os ilícitos criminais e contra-ordenacionais que se apontaram. Ora, quando assim acontece, a um mesmo processo deverá ser um único o regime processual aplicável, que é o do processo criminal, e não o do processo por contra-ordenação, de que aliás aquele é subsidiário (cfr. art.41º, nº 1, citado Dec.-Lei nº 433/82).
É essa a solução para que, sem margem para dúvidas, aponta toda a lógica do sistema. Sendo o inquérito uma fase processual de natureza investigatória, com as finalidades previstas no art. 262º do C.P.P., seria absurdo que, findo o mesmo, a existência de indícios quanto à existência, em concurso, de um crime e de uma contra-ordenação, implicasse a acusação do M.P. apenas quanto ao primeiro, e a comunicação da segunda a uma autoridade administrativa para, então, aí ser organizado e instruído o correspondente processo. Por isso, o art. 57º do referido Dec.-Lei determina a extensão da acusação, pelo crime, à contra-ordenação. E essa é também a solução que resulta de referências existentes no próprio texto da lei, como por exemplo a epígrafe do aludido art. 38º ('autoridades competentes em processo criminal'). Daí que não faça qualquer sentido vir defender, como na motivação, que mesmo em tais casos há lugar ao cumprimento do preceituado naquele art. 46º. Desde logo, pela simples razão de, por não haver então uma autoridade administrativa a tomar decisões no processo, não haver também obviamente decisões, abrangidas por tal disposição legal, que devam ser objecto de comunicação às pessoas a quem supostamente se dirigiriam. Depois, porque, ao invés do afirmado pelos recorrentes, o método seguido no caso dos autos não se traduziu em qualquer limitação dos seus interesses e legítimos direitos de defesa. Pelo contrário. Dispuseram eles de todos os meios de defesa previstos no processo penal, necessariamente mais amplos e solenes que no processo de contra-ordenação, e de que aliás se valeram quando, também quanto a tal ilícito, não deixaram de requerer a instrução. Esta fase processual, dominada pelo princípio do contraditório, não encontra de resto paralelo no regime processual das contra- -ordenações. Por isso, e muito embora o processo penal, no inquérito, seja também temperado pelo segredo de justiça (cfr. art. 86º do código), a possibilidade de, na instrução, todos os meios de prova serem reapreciados e contraditados claramente demonstra que estão aí asseguradas todas as garantias de defesa dos acusados.
É assim ilegítimo vir dizer-se, como fazem os recorrentes, que a interpretação seguida no despacho recorrido é inconstitucional, por violadora do art. 32º, nº
8, da Constituição (onde se preceitua: 'Nos processos por contra-ordenação são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa'). Tal disposição da lei fundamental não representa qualquer aumento de garantias de defesa, não é um mais relativamente ao processo penal. É tão só uma salvaguarda dos arguidos em processo de contra--ordenação, por forma a garantir-lhes um mínimo de direitos. Pode por isso dizer-se, não sem alguma ironia, que mesmo que se tivesse por violado o citado princípio constitucional, nem assim os arguidos teriam ficado desfavorecidos porque, em contrapartida, dispuseram eles de todas as garantias previstas nos nºs. 1 a 7 do mesmo art. 32º.'
4. S.–Sociedade Agro-Pecuária da Q. do A., Lda., veio então interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, através de requerimento assim redigido:
'[...] tendo sido notificada do acórdão proferido nos autos e não se conformando com o mesmo na parte em que se indeferiu a arguição de inconstitucionalidade dos arts. 38º, nº 1 e 57º do DLCO (Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, com a redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei nº 244/95), dele vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, recurso esse que é interposto nos termos do art. 75º-A da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional e que se baseia na previsão contida no art. 70º, nº 1. al. b) daquela Lei Orgânica, sendo a norma violada o art. 32º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa, tendo tal questão sido suscitada, desde logo, no requerimento de abertura de instrução e represtinada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal da Relação de Évora.'
O recurso foi admitido por despacho de fls. 123.
5. No Tribunal Constitucional, a relatora, considerando que das peças processuais indicadas no requerimento de interposição do recurso decorre que se pretende questionar a conformidade constitucional de uma certa interpretação das normas dos artigos 38º, nº 1, e 57º do Decreto-Lei nº 433/82, determinou a notificação da recorrente para explicitar qual o sentido atribuído às mencionadas normas que considera inconstitucional.
A recorrente respondeu:
'1 – Conforme decorre do próprio requerimento de interposição de recurso, a questão suscitada pelo recorrente e determinante da interposição do presente recurso foi, nos autos, equacionada e suscitada logo no seu requerimento de abertura de instrução, tendo sido represtinada ao longo do processo, nas diferentes intervenções processuais da recorrente.
2 – Com efeito, toda a questão que levou a concluir nos termos constantes das conclusões de recurso para o Tribunal da Relação de Évora, desencadeou-se com a preclusão da possibilidade da recorrente de ter acesso e conhecimento das decisões, despachos e demais medidas tomadas a propósito das imputações contra-
-ordenacionais que lhe são dirigidas em sede de acusação pelo facto, ou melhor, pelo simples facto, de o processo contra-ordenacional ter corrido conjunta e paralelamente, sendo assimilado, pelo processo criminal. Ao ponto de terem ocorrido peritagens realizadas à revelia da recorrente (com a agravante de as mesmas peritagens incidirem sobre produtos perecíveis, sendo que a contra-peritagem se revelou, nas palavras do Magistrado que conduziu a fase de instrução, insusceptível de ser realizada exactamente por esse facto) as quais são invocadas elementos de sustentação primordial das imputações contra-ordenacionais vertidas nos autos.
3 – [...]
4 – Ora, daqueles dois preceitos, nos termos da decisão recorrida, decorre uma exclusão da regra contida no art. 46º do DLCO, o qual determina a obrigatoriedade de conhecimento por parte dos visados de todas as decisões, despachos e actos que lhes digam respeito proferidos no âmbito do processo de contra-ordenação, a qual, contudo, apenas pende sobre as autoridades administrativas. Ora, atentos os preceitos acima vazados, e no entendimento vertido no Acórdão recorrido proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, o processamento da contra-ordenação passa a caber às autoridades competentes para o processo criminal, maxime ao Ministério Público. E, como, ainda no entendimento do Acórdão determinante do recurso em causa, não impende sobre o Ministério Público a obrigação de comunicação vazada no art. 46º do DLCO, ficam os visados, no caso a recorrente, privada de conhecer os passos processuais que, contra si, em sede de contra-ordenação, são direccionados, obliterando-se a sua possibilidade de, designadamente, exercer o contraditório.
5 – Tal entendimento dos arts. 38º, nº 1 e 57º do DLCO colide frontalmente, nos termos supra-expostos, com o art. 32º, nº 8 da Constituição da República Portuguesa, pois que, no entendimento da decisão recorrida, a atribuição ao Ministério Público de competência para a matéria contra-ordenacional envolve o ostracismo cognoscitivo em relação ao processo por parte do arguido, contrariamente ao que ocorreria se a instrução do processo fosse da competência da entidade administrativa.'
6. Notificada para produzir alegações, a recorrente S.– Sociedade Agro-Pecuária da Q. do A., Lda., apresentou as seguintes conclusões: a) a conexão determinada pelos arts. 38º, nº 1, e 57º do DLCO do processo contra-ordenacional com o processo criminal, se entendida, como envolvendo uma dispensa de comunicação aos interessados das decisões, despachos e medidas tomadas em sede de fase de inquérito envolve uma efectiva limitação dos direitos de audição e de defesa dos arguidos; b) a qual é incompatível e violadora do art. 32º, nº 10, da Constituição da República Portuguesa; c) sendo que, a não ocorrer aquela adesão, os destinatários da imputação contra-ordenacional passam a poder intervir, em termos esclarecidos, no processo, de forma a ter conhecimento dos elementos que contra si são reunidos em termos de justificar a dedução de acusação; d) obrigatoriedade essa que, afirmando-se, como afirma o Acórdão recorrido, não impender sobre o Ministério Público, determina a preclusão do conhecimento por parte dos arguidos de elementos essenciais à viabilidade de contraditar e impugnar; e) inviabilidade essa que não é superada em momento ulterior do processo, dada a perda de oportunidade e de justificação de que a mesma revela depois de efectivada a medida, decisão ou despacho; f) fazendo perigar decisivamente a efectiva presunção de inocência e a possibilidade de intervenção probatória ou contra-probatória do arguido; g) como os presentes autos revelaram notoriamente no caso dos exames laboratoriais e biológicos realizados à revelia da recorrente, que se viu efectivamente impedida de ver realizada a contra-analise e de conhecer em concreto os resultados da mesma; h) vendo-se, para mais, os acusados confrontados com a dedução da acusação sem que hajam sido previamente ouvidos quanto à matéria contra-ordenacional; i) revelando-se, assim, violado o art. 32º, nº 10 da Constituição da República Portuguesa pela interpretação conferida aos mencionados arts. 38º, nº 1, e 57º do DLCO.'
Por sua vez, o Ministério Público concluiu assim as suas alegações:
1º– Não viola qualquer preceito ou princípio constitucional a vigência, no caso de concurso entre responsabilidade criminal e contra-ordenacional, do princípio da adesão e da subordinação desta às regras procedimentais do processo penal.
2º– A plenitude das garantias de defesa do arguido que caracteriza o processo criminal integra e consome naturalmente o estrito direito de audiência e defesa, só ele assegurado constitucionalmente no âmbito do processo contra-ordenacional.
3º– Termos em que deverá ser julgado manifestamente improcedente o recurso interposto.'
II
7. A recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade das normas dos artigos 38º, nº 1, e 57º do regime jurídico das contra-ordenações (Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, com a redacção resultante do Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro), na interpretação segundo a qual delas decorre a 'exclusão da regra contida no art. 46º do DLCO, o qual determina a obrigatoriedade de conhecimento por parte dos visados de todas as decisões, despachos e actos que lhes digam respeito proferidos no âmbito do processo de contra-ordenação' e a 'preclusão da possibilidade da recorrente de ter acesso e conhecimento das decisões, despachos e demais medidas tomadas a propósito das imputações contra-ordenacionais que lhe são dirigidas em sede de acusação pelo facto, ou melhor, pelo simples facto, de o processo contra-ordenacional ter corrido conjunta e paralelamente, sendo assimilado, pelo processo criminal'.
Na perspectiva da recorrente, tal interpretação das normas em causa, ao excluir a aplicação da regra contida no artigo 46º do regime jurídico das contra-ordenações, violaria o artigo 32º, nº 10, da Constituição da República Portuguesa (artigo 32º, nº 8, na versão de 1992, a norma constitucional invocada nos articulados).
8. É o seguinte o teor das normas impugnadas: Artigo 38º
(Autoridades competentes em processo criminal)
'1. Quando se verifique concurso de crime e contra-ordenação, ou quando, pelo mesmo facto, uma pessoa deva responder a título de crime e outra a título de contra-ordenação, o processamento da contra-ordenação cabe às autoridades competentes para o processo criminal.
[...]'
Artigo 57º
(Extensão da acusação e da contra-ordenação)
'Quando, nos casos previstos no artigo 38º, o Ministério Público acusar pelo crime, a acusação abrangerá também a contra-ordenação.'
Por sua vez, dispõe o artigo 46º do referido Decreto-Lei nº 433/82:
(Comunicação de decisão)
'1. Todas as decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas serão comunicadas às pessoas a quem se dirigem.
2. Tratando-se de medida que admita impugnação sujeita a prazo, a comunicação revestirá a forma de notificação sobre admissibilidade, prazo e forma de impugnação.'
9. No caso dos autos, a circunstância de os arguidos terem sido acusados da prática de crime e de contra-ordenação determinou que o processamento da contra-ordenação passou a caber às autoridades competentes para o processo criminal (artigo 38º do Decreto-Lei nº 433/82) e que a acusação do Ministério Público tendo como objecto a prática de um crime abrangeu igualmente a contra-ordenação (artigo 57º do mesmo Decreto-Lei).
O regime descrito implicaria, no entender da recorrente, a não aplicação da norma do artigo 46º do mencionado Decreto-Lei nº 433/82 – a norma que impõe que todas as decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas sejam comunicadas às pessoas a quem se dirigem.
10. O preceito do artigo 46º do Decreto-Lei nº 433/82, ao determinar que, nos processos de contra-ordenação, as decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas competentes devem ser comunicadas às pessoas a quem digam respeito, tem em vista assegurar aos arguidos o exercício dos direitos de defesa.
A regra – que concretiza a imposição constitucional contida no artigo 32º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa (na versão de 1992, invocada pela recorrente, a que actualmente corresponde o artigo 32º, nº 10) – aplica-se aos processos de contra-ordenação sujeitos à regra geral de competência das autoridades administrativas (fixada no artigo 33º do Decreto-Lei nº 433/82).
A inclusão de uma norma como a do artigo 46º no diploma que institui o ilícito de mera ordenação social e que regula o respectivo processo encontra o seu fundamento na necessidade de garantir os direitos de audiência e de defesa aos arguidos em processo contra-ordenacional, atenta a natureza dos factos sobre que incide o processo, a natureza de tal processo e ainda a natureza das sanções aplicáveis. Tem-se em conta principalmente a circunstância de a direcção e decisão do processo contra-ordenacional competir a uma entidade administrativa.
Assim sendo, não se justifica que essa norma seja aplicável como tal nos processos em que, por existir concurso de crime e contra-ordenação (ou por, em consequência do mesmo facto, uma pessoa dever responder a título de crime e outra a título de contra-ordenação), o processamento da contra-ordenação cabe às autoridades competentes para o processo criminal. É que, em tais processos, aos arguidos são assegurados todos os meios de defesa previstos no processo criminal, necessariamente mais amplos e solenes que no processo de contra-ordenação
Por outras palavras, nos processos em que, pelos fundamentos previstos na lei, o processamento da contra-ordenação cabe às autoridades competentes para o processo criminal, a regra do artigo 46º do Decreto-Lei nº
433/82 é consumida pelas regras mais exigentes consagradas no Código de Processo Penal.
11. No presente processo, não tendo havido uma autoridade administrativa com competência para tomar decisões no processo, não houve também naturalmente decisões, abrangidas pelo disposto no artigo 46º do Decreto-Lei nº 433/82, que devam ser objecto de comunicação às pessoas a quem supostamente se dirigiriam.
Tal conclusão não significou no caso qualquer diminuição dos direitos de defesa dos arguidos no processo contra-ordenacional. Como aliás é sublinhado na decisão aqui sob recurso, dispuseram os arguidos de todos os meios de defesa previstos no processo penal, e deles 'se valeram quando, também quanto a tal ilícito, não deixaram de requerer a instrução'.
Na verdade, como refere o Ministério Público nas suas alegações, existindo concurso de infracções de natureza criminal e contra-ordenacional, 'o princípio da adesão e subordinação do ilícito menos grave à disciplina instituída para o procedimento previsto para o ilícito mais grave (o criminal, obviamente) não representa qualquer limitação do direito de defesa do arguido'. Embora o arguido não possa, nesse circunstancialismo processual, exercitar tal direito nos quadros do processo contra-ordenacional, tem oportunidade para o realizar através das normas típicas do processo penal, que até o asseguram de forma mais completa e intensa.
Em conclusão, e como é evidente, a apreciação da responsabilidade contra-ordenacional do arguido a quem simultaneamente é imputada responsabilidade criminal segundo as normas que regem o processo penal é insusceptível de violar os direitos de audiência e de defesa constitucionalmente garantidos no âmbito do direito contra-ordenacional.
12. Não tem assim qualquer fundamento a argumentação utilizada pela recorrente para sustentar a inconstitucionalidade das normas impugnadas. Tal argumentação assenta no pressuposto absurdo de que seriam mais amplas as garantias conferidas em processo contra-ordenacional do que as que são asseguradas no âmbito do processo penal e esquece que as garantias conferidas em processo contra-ordenacional resultam da circunstância de a direcção e decisão do processo contra-ordenacional competir a uma entidade administrativa.
III
13. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2000 Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida