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Proc. n.º1132/98
1ª Secção Cons. Vítor Nunes de Almeida ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
1. – M. C. intentou junto do Tribunal Administrativo de Círculo do Porto (TACP) um recurso contencioso e, como meio processual acessório veio, em procedimento de acção popular, requerer a suspensão de eficácia das deliberações de 16 de Março de 1998 e de 4 de Maio de 1998, da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão.
O TACP, por decisão de 2 de Julho de 1998, entendeu que
'por não se mostrarem verificados todos os pressupostos de que a lei faz depender a suspensão de eficácia dos actos administrativos, em referência, se indefere a requerida providência'.
2. - Não se conformando com o assim decidido, M. C. interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo (TCA).
Neste Tribunal, o Ministério Público suscitou a questão de o tribunal não poder conhecer do recurso por não ter sido dado cumprimento ao artigo 15º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, 'que impõe a citação dos cotitulares dos direitos e interesses legítimos violados e que foram invocados na petição'.
A falta de citação determinaria a anulação do processado a seguir à petição.
Notificadas as partes para, querendo, se pronunciarem sobre esta matéria, o recorrente veio dizer que não se verifica qualquer omissão e muito menos uma que produza nulidade com tais efeitos.
Entretanto, o relator suscitou a questão da inadmissibilidade do pedido de suspensão de eficácia como meio processual acessório de uma acção popular, nos termos do artigo 54º, n.º2 da LPTA – Lei do Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais – Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho.
Notificado o recorrente e o Ministério Público para se pronunciarem sobre a questão suscitada, o primeiro veio defender o entendimento de que uma interpretação da Lei 83/95, de 31 de Agosto que excluir do âmbito da acção popular os procedimentos cautelares independentes, designadamente a suspensão de eficácia do acto recorrido, é inconstitucional, por violação dos artigos 2º, 20º, n.º5, 52º, n.º3 e 268º, n.º4, da CRP.
Ao invés, o Ministério Público entendeu que em acção popular é admissível o meio processual acessório da suspensão de eficácia do acto recorrido.
O Tribunal Central Administrativo (TCA), por acórdão de
26 de Novembro de 1998, entendeu que: 'Existindo um meio processual, adequado para obter a providência cautelar, pretendida pelo requerente, neste processo, que é o próprio recurso contencioso previsto na Lei n.º 83/95 e no qual é possível conferir efeito suspensivo às deliberações, em causa, para evitar dano irreparável ou de difícil reparação, não é legítimo ao requerente escolher outro meio processual, que não o mais adequado, mais rápido e expedito, optando, antes, pelo pedido de suspensão de eficácia. (...) E se não o fizer, pelo facto de não escolher o meio mais adequado para a tutela judicial pretendida, acaba por não ter interesse processual no meio utilizado. Tal falta de interesse processual, consistente em não se socorrer do meio mais adequado, para se atingir os fins em vista é de conhecimento oficioso do tribunal (artºs 489º-1 e
2, 493º-2, ambos do CPC, e artº 1º da LPTA) e leva, no contencioso administrativo, à rejeição do pedido de suspensão de eficácia, dada a sua inadmissibilidade, como foi referido no douto Ac. do STA, de 9-7-96, no Rec.
40430-A, acima mencionado)'.
Assim, o acórdão do TCA rejeitou o pedido de suspensão de eficácia das deliberações de 16-3-98 e 4-5-98, da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão.
3. - M. C. interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, pretendendo que se aprecie a norma do artigo 18º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, enquanto interpretada no sentido de que 'não concede e exclue ao recorrente de deliberações camarárias legitimidade para o autónomo uso do meio processual acessório de suspensão da eficácia do acto recorrido', por entender que tal interpretação viola os artigos 2º, 20º, n.º5, 52º, n.º3 e
268º, n.º4, da Constituição da República Portuguesa.
Após convite do relator para que o recorrente indicasse os elementos constantes do artigo 75º-A, da Lei do Tribunal Constitucional, estes elementos vieram a ser indicados, ficando claro que se pretende que o Tribunal aprecie a conformidade constitucional da interpretação do artigo 18º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, que, em recurso de acção popular de deliberações de uma Câmara Municipal, em matérias abrangidas pelo artigo 52º da Constituição, entende não ser admissível o uso judicial do meio processual acessório da suspensão de eficácia do acto recorrido.
Quer o recorrente quer a Câmara recorrida apresentaram alegações, mas apenas o recorrente formulou conclusões, como se segue:
'1º - Em acção popular, nomeadamente para defesa do ambiente e qualidade de vida recorreu o A. de deliberações camarárias, e simultaneamente usou de meio cautelar acessório da suspensão preventiva da sua executoriedade, dado que da execução das ditas deliberações se causará dano em área do domínio público, integrando zona verde pública. E, como tal, consubstanciando o direito a um correcto ordenamento territorial, ocupação de solo e defesa da qualidade de vida dos centros urbanos: como direito consolidado ao ambiente, dos cidadãos. Direito esse, aí consubstanciado - que constitui reserva constitucional para todos
(particulares, Administração e Tribunais), na dupla dimensão de direito-dever a não perturbar e direito-dever a preservar e potenciar (artº. 66º da Const., anot. Vital Moreira e J.Gomes Canotilho).
2º - Entende o douto Acórdão recorrido que basta e é mais adequado ao recorrente, para efeitos de prevenção, a instituição, pelo art. 18º,da Lei 83/95 da faculdade de, nos 'recursos', o julgador lhes poder atribuir eficácia suspensiva para evitar dano irreparável ou de difícil reparação. Pelo que, assim, há falta de interesse processual da parte, se recorre ao meio acessório da suspensão; E, como tal, este exercício é, afinal, ilegítimo, conduzindo, como resultado, à absolvição da instância.
3º - Mas, a faculdade do cit. Artº. 18º da Lei 83/95, consubstancia, tão só, um
'poder', do julgador, em atribuir efeito suspensivo ao recurso. Ao passo que o meio cautelar dos artºs. 76 e sgts da L. 83/95 concede ao requerente um 'direito' e um 'dever' (por obediência à Lei) do Tribunal efectivamente, no caso, decretar a suspensão: se os respectivos requisitos legais se preencherem. E, também se ao abrigo do artº.18º o M. Juiz não confere ao recurso efeitos suspensivos - dessa decisão não pode recorrer a parte: ao passo que já o pode, se o Tribunal não concede a suspensão da eficácia; e no caso havia o 'direito', por preenchimento dos requisitos legais. E, o uso do meio cautelar da suspensão de eficácia - pode ser, até, usado antes da instauração do recurso.
É óbvio, é certo, que se o Tribunal atribui eficácia suspensiva ao recurso, então, a partir daí, o pedido de suspensão do meio processual acessório (antes ou concomitantemente instaurado) deixará de ter interesse, haverá superveniente falta de interesse. Mas tal é outra questão.
4º ORA, a referida disposição, do art.18º, integradora do regime do 'direito de acção', em 'acção popular' e, como mera questão de alargamento de legitimidade de parte processual, só pode e deve ser concebida como 'um mais', no sistema preventivo da lesão. E não como 'um menos' e 'restritivo' dos' meios processuais, no sistema jurídico anterior e preexistente, já concebidos e mais consistentes como 'direito' e sindicáveis em recurso.
5º ASSIM, o art. 18º da Lei 83/95 ao não consubstanciar um 'alargamento' dos meios preventivos da lesão - e, antes, ao consubstanciar uma restrição e uma eliminação, ao fim e ao cabo, nos casos concretos e da vida real, de meios processuais já existentes, mais consistentes (como 'direito' e sindicáveis em recurso) e já concedidos ao cidadão para prevenir a lesão: Então, viola a norma, os juízos de valor legais e a vivência deles na vida real - dos preceitos constitucionais dos artºs. 2º, 20º,nº 5, 52º, 3, a) e 268º, 3. No direito processual consubstanciados no meio processual acessório dos artºs. 76 e sgts do D.L. 267/85.
Pelo seu lado, a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão apresentou alegações mas sem qualquer conclusão, defendendo a solução propugnada no acórdão.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTAÇÃO:
4. – Vem, assim, questionada nos autos, a possibilidade de, em sede de acção popular para defesa dos interesses referidos no artigo 52º, n.º3, da Constituição, se utilizar autonomamente o meio processual acessório de suspensão da eficácia do acto recorrido, apesar do estabelecido no artigo 18º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto.
Esta norma tem o seguinte teor:
'Artigo 18º
(Regime especial de eficácia dos recursos)
Mesmo que determinado recurso não tenha efeito suspensivo, nos termos gerais, pode o julgador, em acção popular, conferir-lhe esse efeito, para evitar dano irreparável ou de difícil reparação.'
Segundo o recorrente, esta norma não pode ter como efeito a eliminação, no caso, da opção pelo pedido de suspensão de eficácia previsto no artigo 76º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais (LPTA): a norma do artigo 18º só pode ser concebida como um «mais» e não como norma restritiva dos meios processuais já existentes. Qualquer outra interpretação como a que foi feita no acórdão recorrido, torna a norma inconstitucional por violação dos artigos 2º, 20º, n.º5, 52º, n.º3, alínea a) e
268º, n.º3, todos da Constituição.
Vejamos se será assim.
5. – A Constituição, na sua versão original, veio consagrar no artigo 49º e no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, a figura da acção popular, remetendo para a lei ordinária a regulação do seu exercício.
Com a revisão de 1997, atribuiu-se a todos os cidadãos o direito de acção popular, por si ou através de associação de defesa dos interesses em causa; os interesses indicados no preceito tanto podem ser a saúde pública como os direitos do consumidor, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural(n.º3, alínea a), do artigo 52º).
Entretanto, em 31 de Agosto de 1995, foi publicada a Lei n.º 83/95, pela qual se regulou o exercício do 'direito de participação procedimental e de acção popular', na qual se insere a norma questionada. A acção popular, na vertente que agora interessa, traduz uma forma de participação do cidadão na vida política do Estado, consubstanciando um meio de fiscalização da legalidade de actuação dos órgãos da Administração em sectores tão sensíveis como os atrás referidos. A lei, para além de regular a questão da titularidade do direito de participação e do direito de acção popular, estabelece os requisitos de legitimidade das associações e fundações, o exercício da acção popular e a responsabilidade civil e penal. O legislador no artigo 18º da Lei 83/95 estabeleceu um regime especial de eficácia dos recursos permitindo que, em acção popular, mesmo aos recursos que, segundo o regime geral, não tenham efeito suspensivo, o juiz possa conferir-lhes tal efeito, desde que seja para evitar dano irreparável ou de difícil reparação. Trata-se, portanto, de um regime muito favorável para o recorrente, dependendo tal decisão unicamente da alegação (e, demonstração prima facie) do dano irreparável ou de difícil reparação dos actos ou deliberação impugnados. Não pode deixar de acentuar-se que esta acção popular 'especial' regulada pela Lei n.º 83/95 visa a tutela dos chamados interesses difusos, que se apresentam como fundamento suficiente de «um direito de defesa» com o correspondente direito de acção judicial. O direito de acção popular, na perspectiva de tutela de interesses difusos, admite, na sua consagração constitucional, a utilização dos meios processuais necessários à plena e efectiva tutela das posições jurídicas particulares (artigo 20º, nº5, da Constituição). Em matéria de direito administrativo, a Constituição reconhece e garante aos administrados 'tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos', incluindo nomeadamente a 'adopção de medidas cautelares adequadas' (artigo 268º, n.º 4, da Constituição).
No caso dos autos, do que se trata é de saber se a norma do artigo 18º da Lei n.º 83/95, se interpretada em termos de excluir o recurso autónomo à suspensão de eficácia prevista nos artigos 76º e seguintes da LPTA é ou não inconstitucional, como alega o recorrente.
6. – A resposta não pode deixar de ser negativa.
Com efeito, a Constituição assegura aos cidadãos para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais procedimentos judiciais céleres, por forma a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos (n.º5 do artigo 20º); assegura-lhes também a tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos por formas diversas (reconhecimento judicial, impugnação contenciosa dos actos administrativos que os lesem, etc.), entre elas a adopção de medidas cautelares adequadas (n.º 4 do artigo 268º).
Porém, existindo diversos meios processuais para acesso ao direito e ao tribunal, o princípio da tipicidade das formas, que também vigora no direito processual administrativo, impõe que os interessados utilizem o meio adequado para obterem a protecção judicial que pretendem: caso incorram em impropriedade do meio processual deverá concluir-se pela rejeição do pedido formulado.
Ora, no caso em apreço, o acórdão recorrido concluiu que se estava perante um caso de impropriedade do meio processual. Entendeu-se que a opção pelo exercício da acção popular nos termos previstos pela Lei n.º 83/95 tem como consequência que naquela lei se deverão procurar os termos processuais para a tutela dos interesses nela referidos, designadamente nela se devendo procurar «se na mesma estão previstas ou não 'medidas cautelares adequadas' a evitar as referidas infracções...». Nessa perspectiva, considerou-se que essas medidas cautelares seriam precisamente as facultadas pelo artigo 18º agora em apreciação. Em apoio da posição adoptada a decisão indicou o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 9 de Julho de 1996, recurso n.º 40 030-A, «que se pronunciou no sentido da inadmissibilidade do pedido de suspensão de eficácia, quando a declaração de ilegalidade é pedida através de acção popular».
Apurar se é esta a interpretação que melhor corresponde
à razão de ser do regime aplicável não cabe nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional, que tem de debruçar-se tão só sobre a respectiva conformidade à Constituição.
Sendo assim, releva para a apreciação da questão de constitucionalidade suscitada o sentido da decisão, claramente ilucidado pela seguinte passagem: «Existindo um meio processual adequado, para obter a providência cautelar, pretendida pelo requerente, neste processo, que é o próprio recurso contencioso previsto na Lei n.º 83/95 e no qual é possível conferir efeito suspensivo às deliberações, em causa, não é legítimo ao requerente escolher outro meio processual, que não o mais adequado, mais rápido e expedito, optando, antes, pelo pedido de suspensão de eficácia». E mais à frente: «[...] não é inconstitucional [...] que a Lei n.º 83/95, no seu artº
18º, estabeleça que o meio mais adequado para obter efeito suspensivo seja alcançado através do pedido de suspensão formulado no próprio recurso contencioso, em que se pede a anulação do acto recorrido», com o que, efectivamente, se excluiu a admissibilidade do pedido de suspensão de eficácia deduzido por apenso ao recurso contencioso simultaneamente instaurado.
Segundo Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa,
(Lições), Coimbra, 1998, pág. 108), 'O tribunal rejeita a acção ou providência, porque e na medida em que a tutela efectiva pode ser conseguida através de outro meio, que tem preferência legal sobre o meio escolhido.' A adequação do meio processual escolhido constitui, assim, um pressuposto processual 'decorrente de a lei só admitir o uso de um certo meio subsidiariamente, isto é, se não for possível utilizar no caso outros ou um outro' (Vieira de Andrade, ibidem, pág.
173). É um pressuposto processual negativo que, segundo o mesmo autor também pode designar-se como 'previsão legal de meio preferencial' ou 'impropriedade relativa do meio utilizado'.
Uma norma como o artigo 18º, da Lei n.º 83/95, que estabelece um regime especial de eficácia dos recursos, acaba por criar um meio processual especial, dentro do processo administrativo existente; ora, como se escreveu no Acórdão n.º 105/99 (ainda inédito), relativamente a uma outra norma do processo administrativo, uma tal norma '(...) só seria inconstitucional, se, com o estabelecimento desse pressuposto, tornasse impossível ou particularmente onerosa a defesa contenciosa dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares.' Em tal caso, violar-se-ia o direito de acesso à via judiciária, no caso, à justiça administrativa.
A norma em questão, ao consagrar um regime especial de eficácia dos recursos não impede nem torna particularmente onerosa a defesa dos direitos e interesses em causa nos autos: muito ao contrário visa facilitar e simplificar tal defesa, pelo que não é inconstitucional. De facto, não viola o princípio do Estado de direito, antes visa realizá-lo; não viola o direito de acesso, antes o realiza mais prontamente, na medida em que o efeito da suspensão de eficácia pode ser conseguido, no caso de acção popular, mesmo em recursos que, no regime geral não podiam ter tal efeito, realizando assim mais proficientemente a tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados.
Inexistindo qualquer inconstitucionalidade na interpretação do artigo 18º feita na decisão recorrida, tem de negar-se provimento ao presente recurso. III – DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 UC’s.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2000 Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida