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Proc. nº 808/95
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, A... propôs, em 4 de Janeiro de
1990, contra AD... e mulher, J..., acção para execução de sentença proferida pelo mesmo tribunal, em que os executados tinham sido condenados a pagar à exequente a quantia de 351 840$50, acrescida de juros à taxa legal desde a data da citação. A exequente nomeou à penhora o direito dos executados a metade indivisa de uma fracção autónoma de determinado imóvel, em regime de propriedade horizontal, sito na freguesia de Palmela, identificado nos autos. Em 12 de Maio de 1993 – data fixada para a arrematação –, A... veio aos autos fazer prova de que tinha recebido a quantia exequenda (dívida principal e juros). O Juiz da Comarca de Setúbal proferiu despacho, em que declarou sem efeito a arrematação, determinou a suspensão da execução e mandou o processo à conta, condenando em custas os executados (despacho de 12 de Maio de 1993, fls.
71). Não tendo sido pagas as custas do processo, o Ministério Público promoveu, em 30 de Maio de 1994, 'o prosseguimento da execução, até se mostrarem pagas as custas em dívida, nomeadamente designando-se dia para arrematação em hasta pública
(artºs 883º, nº 1, e 889º e seguintes do Cód. Proc. Civil)'. Fixada, por despacho do Juiz, de 9 de Junho seguinte, a data da arrematação em hasta pública, realizou-se a mesma em 30 de Setembro daquele ano, tendo sido adjudicado ao arrematante o direito dos executados a metade indivisa do prédio em causa. J... veio então arguir a nulidade da venda judicial (requerimento de 10 de Outubro de 1994, fls. 104). Invocando a falta de notificação para pagar as custas em dívida, pediu ao tribunal a anulação de todos os termos do processo posteriores à conta de custas, ou, no mínimo, a anulação de todos os termos subsequentes à 'vista' de 30 de Maio de 1994, 'porque também o despacho então proferido não foi notificado'.
2. Por despacho de 20 de Abril de 1995 (fls. 124 ss), o Juiz do processo indeferiu o requerimento, com base na seguinte argumentação:
– ficou demonstrado nos autos que a executada não foi notificada da conta de custas;
– a omissão dessa notificação teve como consequência o prosseguimento da execução e a consequente venda;
– a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreve só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a nulidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa (artigo 201º, nº 1, do Código de Processo Civil);
– a falta de notificação da conta de custas seria susceptível de determinar a nulidade do despacho de 9 de Junho de 1994 que mandou prosseguir a execução para pagamento da dívida de custas;
– todavia, dos autos resulta que a executada foi devidamente notificada do despacho que ordenou a venda (por carta expedida em 21 de Junho de 1994, não devolvida), o que justificaria que a executada se informasse sobre a marcação de nova hasta pública;
– apesar disso, só em 10 de Outubro de 1994, muito mais de cinco dias após tal notificação, veio a executada arguir a respectiva nulidade, excedendo o prazo fixado nos artigos 205º, nº 1, e 153º do Código de Processo Civil;
– ultrapassado o prazo legal para arguição da nulidade, ficou esta sanada.
3. Notificada de tal despacho, J... veio arguir a respectiva nulidade, nos termos do artigo 668º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil (fls. 128). Suscitou no seu requerimento a inconstitucionalidade da interpretação conjugada dos artigos 143º do Código das Custas Judiciais e dos artigos 201º, nº 1, 205º, nº 1 e 153º do Código de Processo Civil, por violação dos artigos 14º, 20º e 44º da Constituição da República Portuguesa. O Juiz da Comarca de Setúbal indeferiu a arguição de nulidade (despacho de 5 de Junho de 1995, fls. 146), nos seguintes termos:
'Apreciando a questão da invocada nulidade, temos de dizer que a requerente se
«esqueceu» de referir que no aludido despacho se entendeu ter ocorrido a sanação da nulidade por falta da sua arguição no prazo legal. Daí que obviamente não haja contradição entre os fundamentos e a decisão.'
A propósito da desconformidade constitucional alegada pela executada, lê-se no mesmo despacho:
'Após termos compulsado essas normas da Lei Fundamental não descortinamos a invocada inconstitucionalidade. Diremos antes que inconstitucional seria uma decisão que concedesse à executada um tratamento privilegiado, no caso das custas, pelo facto de ser emigrante.'
4. J... interpôs recurso para o Tribunal Constitucional 'do despacho de fls. 145 e 146', ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, pedindo a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 201º, nº 1, 205º, nº 1 e 153º do Código de Processo Civil e 143º do Código das Custas Judiciais, em confronto com os artigos 14º, 20º e 44º da Constituição da República Portuguesa
(requerimento apresentado em 28 de Junho de 1995, fls. 150). O recurso foi admitido por despacho de fls. 151.
5. No Tribunal Constitucional foi proferido despacho para a produção de alegações. A recorrente concluiu assim as suas alegações:
'[...]
5. A interpretação conjugada dos referidos artigos do C.C.J. [o artigo 143º] e do C.P.C. [os artigos 201º, nº 1, 205º, nº 1 e 153º] é inconstitucional, por violar o disposto no artigo 14º da Constituição, na medida em que responsabiliza a executada pelo sucedido, fazendo passar para segundo plano a falta de diligência do Tribunal, o que é uma manifesta violação do princípio da protecção do Estado para o exercício dos direitos dos cidadãos portugueses que residem no estrangeiro;
6. Tal interpretação é também inconstitucional, por violar o disposto no artigo
20º da Constituição, na medida em que pelas razões já expostas na conclusão anterior, não permitiu à executada que fossem tiradas todas as devidas consequências da falta de diligência do Tribunal, facto que teve a consequência de atingir o seu património, o que viola o princípio do acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legítimos, que a todos é assegurado por aquele artigo.
7. A interpretação conjugada a que se vem fazendo referência é igualmente inconstitucional, por violar o disposto no nº 2 do artigo 44º da Constituição, na medida em que originou uma lesão dos interesses patrimoniais da executada em virtude de exigir da parte desta uma diligência injustificável, face aos antecedentes do caso (ausência de notificação para pagamento das custas) e, sobretudo, à condição de emigrante da executada, à distância em que se encontrava, ao envolvimento social e linguístico, ao facto de não ter advogado constituído no processo e de não poder facilmente recorrer a quem lhe pudesse explicar o sentido da notificação que lhe foi feita relativamente à arrematação em hasta pública, traduzindo-se, por estas razões, num tratamento menos favorável relativamente à executada, por virtude do facto de ser emigrante.'
Por sua vez, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional apresentou as seguintes conclusões:
'1º. Não viola os princípios da igualdade e do contraditório, ínsitos no direito de acesso aos tribunais, proclamado pelo artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação e aplicação do regime de sanação das nulidades secundárias, constante da parte final do nº 1 do artigo 205º do Código de Processo Civil, em termos de se considerar sanada a nulidade decorrente da falta de notificação da conta de custas ao executado quando este, apesar de residente no estrangeiro, foi regular e oportunamente notificado, com cerca de 3 meses de antecedência, do prosseguimento da execução com a realização da venda judicial – apenas curando de arguir a referida nulidade após a consumação da arrematação em hasta pública.
2º. Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente recurso.'
6. Em consequência da alteração na composição do Tribunal Constitucional, houve mudança de relator. Completados os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.
II
7. O recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a alínea invocada pela recorrente – é o recurso que cabe das decisões dos tribunais 'que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'. Tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º, constituem seus pressupostos: que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma que pretende que este Tribunal aprecie; que tal norma tenha sido aplicada no julgamento da causa, como ratio decidendi, não obstante essa acusação de inconstitucionalidade.
8. Ora, deixando de lado a questão de saber se a inconstitucionalidade foi suscitada 'durante o processo' (no sentido 'funcional' que o Tribunal Constitucional tem atribuído a esta exigência legal), certo é que as normas que, no presente recurso, são submetidas à apreciação deste Tribunal – as normas constantes dos artigos 201º, nº 1, 205º, nº 1 e 153º do Código de Processo Civil e 143º do Código das Custas Judiciais – não foram aplicadas, como fundamento da decisão, no despacho recorrido. Com efeito, a recorrente interpôs o presente recurso 'do despacho de fls. 145 e
146' [assim, expressamente, no requerimento apresentado em 28 de Junho de 1995, fls. 150]. A decisão sob recurso é portanto o despacho do Juiz da Comarca de Setúbal, de 5 de Junho de 1995, que indeferiu a arguição de nulidade suscitada pela ora recorrente relativamente ao despacho proferido pelo mesmo Juiz em 20 de Abril anterior. O despacho recorrido limitou-se a aplicar as normas do Código de Processo Civil sobre as nulidades – no caso, a norma do artigo 668º, nº 1, alínea c), invocada pela ora recorrente para fundamentar a alegada nulidade daquele primeiro despacho (nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão). Através desse despacho de 20 de Abril, o Tribunal da Comarca de Setúbal tinha decidido não atender o pedido formulado por Jeanne Augusta Vegat no sentido de serem anulados os termos do processo posteriores à conta de custas que não lhe havia sido notificada, designadamente a venda judicial efectuada. Só o despacho de 20 de Abril se fundou nas normas dos artigos 201º, nº 1, 205º, nº 1 e 153º do Código de Processo Civil e 143º do Código de Custas Judiciais: embora aceitando que a falta de notificação da conta de custas seria susceptível de determinar a nulidade do despacho que mandou prosseguir a execução para pagamento da dívida de custas, o tribunal entendeu que tinha sido excedido o prazo legal para arguição da nulidade, ficando esta sanada. Porém, as normas aplicadas em tal decisão não podem aqui ser sindicadas, pois que a recorrente afirma de modo expresso recorrer do despacho que se pronunciou sobre a arguição de nulidades.
9. Conclui-se assim que não estão verificados, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta.
Lisboa, 28 de Abril de 1999- Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Artur Maurício Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa