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Processo nº 621/97 Plenário Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
(Cons. Ribeiro Mendes)
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional: I
1. Nos termos do artigo 278º, nºs. 1 e 3, da Constituição e dos artigos 51º, nº 1, e 57º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, o Presidente da República veio requerer a apreciação da constitucionalidade de todas as normas do Decreto nº 196/VII da Assembleia da República, recebido na Presidência da República em 17 de Novembro de 1997 para ser promulgado como lei. O pedido de fiscalização preventiva deu entrada na secretaria do Tribunal Constitucional em
24 daquele mesmo mês de Novembro.
2. O Presidente da República fundamentou do seguinte modo as dúvidas de constitucionalidade suscitadas quanto as normas do identificado diploma que visa a 'reposição do IC 1 entre Torres Vedras e Leiria e do IP 6 entre Peniche e Santarém como vias sem portagens' (a epígrafe do Decreto) :
'A- O lanço Torres Vedras (Sul) - Bombarral da AE 8 CRIL - Leiria foi integrado transitoriamente, por força do disposto no art. 1º do Decreto-Lei nº 208/97, de
13 de Agosto, na concessão da BRISA - Auto-Estradas de Portugal, S.A.
(abreviadamente referida como BRISA), para efeitos de conservação e exploração, enquanto não viesse a ser atribuída a concessão Oeste, prevista no Decreto-Lei nº 9/97, de 10 de Janeiro. De harmonia com aquele diploma legal (art. 3º, nº 2), as taxas de portagem a praticar nesse lanço seriam fixadas por regulamento ministerial (portaria conjunta dos Ministros das Finanças e do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território). O art. 1º do Decreto-Lei nº 294/97, de 24 de Outubro, aprovou modificações às Bases do contrato de concessão da construção, conservação e exploração de auto-estradas outorgado com a BRISA, de forma a que o referido lanço de auto-estrada do Oeste passasse a integrar o objecto da concessão para efeitos de conservação e exploração, sujeito ao regime de portagem, a reverter para a concessionária. O art. 2º deste diploma autorizou os Ministros das Finanças e do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território a subscreverem, em nome e representação do Estado, as alterações ao contrato de concessão, nos termos indicados. De harmonia com tais disposições legais, o Estado e a BRISA acordaram as alterações ao contrato de concessão, havendo entretanto sido publicada a Portaria nº 693-A/97, de 14 de Agosto, a qual fixou as taxas de portagem que passaram a ser cobradas naquele lanço. Deste modo, por força das normas legais e dos actos administrativos referidos, a BRISA 'viu perfeita e validamente consolidado na sua esfera jurídica o direito subjectivo à exploração, com cobrança de portagens, do lanço Torres Vedras (Sul)
- Bombarral' da AE 8. O Decreto nº 196/VII, se vier a concretizar-se em lei, extinguirá este direito subjectivo, embora se mantenha o aludido lanço, transitoriamente, na concessão da BRISA, mas só para efeitos de conservação, sendo retirado o anterior direito
à exploração do concessionário (arts. 1º e 4º, nº 1) e abolido, com carácter definitivo e imediato, o regime de taxas de portagem em todo o lanço (art. 2º). Ainda por força do mesmo Decreto é alterada a Base I do contrato de concessão referido, sendo retirado do objecto da concessão o identificado lanço (art. 4º, nº 2). Assim:
1- a)- Com tal conteúdo, o Decreto nº 196/VII da Assembleia da República, designadamente as normas referidas, tem o carácter de lei restritiva do direito
à propriedade da BRISA, na medida em que tais normas afectam decisivamente a própria existência do direito da BRISA à exploração, com cobrança de portagem, do lanço Torres Vedras (Sul) - Bombarral da AE 8, sendo certo que é pacificamente reconhecido na doutrina e na jurisprudência dos Estados membros da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Primeiro Protocolo adicional à CEDH) que o direito de propriedade constitucionalmente reconhecido não se restringe à protecção do direito real de propriedade, mas abrange, seguramente, os restantes direitos de conteúdo patrimonial que, na esfera de titularidade do particular, forem susceptíveis de avaliação pecuniária. Os direitos patrimoniais de natureza real ou creditícia podem ser afectados, restringidos ou suprimidos, mas tão-só nos termos da Constituição. A BRISA, enquanto concessionária da construção, conservação e exploração de auto-estradas, é titular de direitos patrimoniais, nomeadamente havendo exploração com o direito de cobrar portagens, que 'devem ser integrados no
âmbito de protecção que, por força do art. 12º, nº 2, da Constituição, lhe é garantido pelo art. 62º, nº 1, da Constituição. E, pelo menos na sua dimensão de garantia de não poder ser privada desses direitos patrimoniais a não ser nos termos e segundo as formas constitucionalmente previstas, a BRISA titula essa garantia enquanto direito fundamental análogo a direitos, liberdades e garantias'.
'Nada permite, na ordem jurídica portuguesa, excluir do âmbito de protecção do art. 62º da Constituição os direitos subjectivos patrimoniais adquiridos com base em norma jurídico-pública ou relativos a bens do domínio público, sobretudo quando ao direito de exploração adquirido por concessão é imanente uma exigência de segurança de existência em tudo idêntica à situação típica de propriedade'. A circunstância de a BRISA, sociedade anónima, ter uma larga participação de capitais públicos, e deter poderes de natureza pública, enquanto concessionária, não cria 'quaisquer obstáculos à sua qualificação como pessoa jurídica com capacidade de titular direitos fundamentais e direitos subjectivos públicos contra o Estado, aos quais deve ser reconhecida, até por exigências próprias da racionalidade de funcionamento do mercado, tutela jurídico-constitucional idêntica à dos direitos de propriedade de qualquer outra entidade privada'. O direito subjectivo da BRISA à exploração do referido lanço goza da protecção do art. 62º, nº 1, da Constituição e, pelo menos, a garantia de não poder essa concessionária ser privada daquele direito, a não ser nos termos constitucionalmente previstos, 'beneficia do regime especial de protecção que, por força do art. 17º da Constituição, lhe é garantido pelo art. 18º, nº 3. Assim, a lei só poderia restringir esse direito e, designadamente, aquela garantia, caso preenchesse os restantes requisitos constitucionais e, para o que agora nos interessa, revestisse carácter geral e abstracto'. Na falta desse carácter geral e abstracto, tais normas podem ser consideradas inconstitucionais por violação do art. 18º, nº 3, da Constituição.
1- b)- Não pode sustentar-se que as referidas normas constituem normas conformadoras do conteúdo e limites desse direito, em vez de normas restritivas do direito garantido no art. 62º, nº 1, da Constituição. De facto, por um lado, tais normas têm 'uma natureza material claramente ablativa de um direito e não determinadora do seu conteúdo, e, por outro, mesmo que se situassem, o que não é o caso, numa zona de fronteira, só poderiam ser consideradas conformadoras do conteúdo e limites caso revestissem, também, uma natureza geral e abstracta, ou quando muito fossem, o que não é manifestamente o caso, meras concretizações de anteriores limites de conformação expressos ou implícitos'. Não se trata in casu de lei que determinasse, com carácter geral e abstracto, as condições de resgate de uma concessão, nem sequer se está perante uma medida, ainda que tomada sob a forma de lei, que determinasse o resgate de uma concessão concreta com fundamento no preenchimento daquelas condições. Assim, 'é restritiva a lei que,
à margem da previsão contratual ou da genérica previsão legal existente, e exclusivamente com base em razões de mérito político - por mais relevantes que elas sejam para o interesse público - opostas às razões que haviam fundamentado a anterior concessão legal e contratual de um direito de exploração de um lanço de auto-estrada com cobrança de portagem, extinga esse direito sem prévio acordo do concessionário'.
2- Considere-se agora um entendimento que postule que a medida constante do Decreto nº 196/ /VII escapa ao regime constitucional exigido para as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (nomeadamente, ao disposto no art. 18º, nº 3, da Constituição), 'na medida em que, constituindo uma intervenção concretizadora do estabelecimento implícito, por parte do legislador, de uma preferência do interesse público sobre um interesse patrimonial concreto, essa intervenção reveste, por definição, um carácter não geral e abstracto e se destina funcionalmente, não a restringir um direito, mas a extingui-lo'. Em tal caso, a medida legal de privação do direito patrimonial da BRISA teria um carácter materialmente expropriatório, que implicaria que não lhe seria exigido o cumprimento de todos os requisitos constitucionais das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, designadamente o requisito da generalidade e abstracção. 'Independentemente da designação utilizada (expropriação material, expropriação de sacrifício, quase - expropriação, intervenção equivalente a expropriação), é também expropriação, e necessariamente sujeita ao mesmo regime constitucional, qualquer «acto de império» do poder público dirigido à ablação de posições jurídicas integradas no âmbito de protecção do direito fundamental à propriedade e que se traduza numa intromissão onerosa e especial do Estado na esfera jurídico-patrimonial do seu titular, independentemente de produzir, ou não, alterações na titularidade de um bem e de se fundar na declaração ou invocação prévias de utilidade pública'. Entre os requisitos constitucionais específicos de um acto materialmente expropriatório, ainda que praticado sob a forma de lei, 'e não apenas por força do art. 62º, nº 2, da Constituição, mas também como garantia ínsita no âmbito de protecção do nº 1 do mesmo artigo, e ainda como exigência decorrente do princípio do Estado de Direito do art. 2º e do princípio da igualdade do art.
13º, encontra-se o requisito da simultânea concessão de uma indemnização compensatória do sacrifício imposto. Significa isto que, independentemente do momento em que o pagamento venha a ser feito, a lei expropriatória só é conforme
à Constituição se contiver, como condição de licitude do acto, uma cláusula explícita de concessão de indemnização pelo sacrifício que simultaneamente impõe, de acordo com o princípio ubi expropriatio ibi indemnitas'. A indemnização seria uma condição de licitude do acto expropriatório 'e não um posterius relativamente ao dano'. Se 'a lei que expropria não indemniza conjuntamente, então não observa a garantia constitucional da propriedade, o princípio do Estado de Direito e da proibição do arbítrio, o princípio da igualdade perante os encargos estatais, nem, por último, as regras constitucionais específicas da expropriação'. Não pode, por outro lado, duvidar-se de que o acto ablativo do direito subjectivo da BRISA é a lei em que se virá a converter o Decreto nº 196/VII e não uma eventual alteração posterior do contrato administrativo de concessão
(sendo certo que, nessa eventual e incerta alteração ao contrato administrativo, as partes não disporiam de qualquer autonomia contratual relativamente à alteração em causa). A ausência de qualquer cláusula de concessão de indemnização pelos sacrifícios que impõe à BRISA acarretará eventualmente a inconstitucionalidade das indicadas normas do Decreto nº 196/VII, por violação da garantia constante do art. 62º, nºs. 1 e 2, do principio do Estado de direito e do princípio da igualdade.
3. Sucede que, estando consolidado na esfera jurídica da BRISA o direito a cobrar portagens, decorrente da concessão da exploração, ainda que a título transitório, a própria Assembleia da República 'poderá ter contribuído, por omissão, para consolidar as expectativas da BRISA quanto à manutenção daquele direito, na medida em que, podendo tê-lo feito, não recorreu ao instituto da recusa de ratificação do Decreto- -Lei nº 208/97, de 13 de Agosto, que integrava aquele lanço na concessão da BRISA e previa, expressamente, o pagamento de portagens'. Acresce que, nos termos do nº 2 da Base II do contrato de concessão, o objecto desta só poderia ser alterado por acordo entre a BRISA e o Estado. Dada a sucessão de legislação publicada (Decretos-Leis nºs. 208/97 e 294/97) e as alterações formalmente introduzidos no contrato de concessão, a BRISA 'podia legitimamente planificar as suas actividades no pressuposto da manutenção do direito à exploração daquele lanço'. Mostrar-se-ia, assim, violado pelo Decreto nº 196/VII, aprovado sem prévia obtenção do acordo da BRISA, o princípio de protecção de confiança, corolário do princípio do Estado de direito acolhido no art. 2º da Constituição, dada a frustração de direitos subjectivos e legítimas expectativas da concessionária, sem previsão de quaisquer normas transitórias ou compensatórias. B- Através do Decreto-Lei nº 9/97, de 10 de Janeiro, o Governo estabeleceu o regime de realização do concurso internacional de concessão de lanços de auto-estradas da chamada concessão Oeste, aí integrando os lanços Torres Vedras
(Sul) - Bombarral - Óbidos - Caldas da Rainha, Caldas da Rainha - Marinha Grande
- Leiria e os lanços Caldas da Rainha - Rio Maior - Santarém; dispôs ainda, expressamente que as condições de exploração e manutenção dos lanços Torres Vedras (Sul) - Bombarral - Óbidos - Caldas da Rainha seriam estabelecidos nas bases dos respectivos contratos e que as dos restantes seriam em regime de portagem. Foi, assim, publicado pelos Ministros das Finanças e do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território um Despacho Conjunto que aprovou o programa do concurso e o caderno de encargos e onde se previa, expressamente, que a concessão de todos aqueles lanços seria em regime de portagem. A este concurso apresentaram-se quatro consórcios internacionais. Por força da isenção do regime de portagem de todos aqueles lanços decorrentes do art. 2º do Decreto nº 196/VII, o referido concurso internacional perde praticamente o seu objecto. Embora não sendo titulares de qualquer direito subjectivo fundado numa hipotética vitória naquele concurso, os consórcios concorrentes têm 'legítimas expectativas em aceder àquele resultado em função do preenchimento dos critérios de decisão nele fixados e, no mínimo, a que as suas candidaturas sejam apreciadas e decididas com base nas regras originariamente fixadas no Despacho que aprovou o regime de concurso'. Para participarem no mesmo, esses consórcios terão incorrido em custos 'da ordem das centenas de milhares de contos', dada a necessidade de proceder a estudos de tráfego, estudos de impacto ambiental, projectos rodoviários e análises financeiras. Outros agentes económicos que se dedicam a uma obra pública desta natureza terão feito legitimamente 'os seus planos de vida em ordem a poder responder às solicitações associadas a um empreendimento que, independentemente do resultado do concurso, se realizasse no curto prazo'. Importa notar que tendo sido publicado em Janeiro de 1997 o Decreto-Lei nº 9/97 citado (criando a concessão Oeste em regime de portagem), 'a Assembleia da República não suscitou o processo de recusa de ratificação, nem manifestou publicamente qualquer oposição ao respectivo conteúdo, tal como não o fez relativamente ao Despacho Conjunto, de 7 de Fevereiro, que aprovou o concurso'. Estão, assim, afectadas drasticamente pelo Decreto nº 196/VII 'as expectativas legitimamente criadas das entidades envolvidas e, particularmente no que se refere aos consórcios concorrentes, põe em causa as exigências mínimas de segurança jurídica a que todos têm direito na conformação dos seus planos de vida' (cita-se, em abono deste juízo, uma passagem do acórdão nº 1/97 do Tribunal Constitucional). Os arts. 2º, nºs. 1 e 2, do Decreto nº 196/VII violarão, assim, os princípios de protecção da confiança e da segurança jurídica
(corolários do princípio do Estado de Direito - art. 2º da Constituição). C- 'Por último, e na medida em que afecta decisivamente as competências políticas e administrativas que o Governo havia legitimamente exercido na sua qualidade constitucional de «o órgão de condução da política geral do país e o
órgão superior da administração pública», sem que, para isso, a Assembleia da República dispusesse de fundamento constitucional bastante, pode ainda considerar-se que o Decreto nº 196/ /VII da Assembleia da República invade ilegitimamente o âmbito nuclear do Executivo', o que acarretaria inconstitucionalidade por violação do princípio de separação e interdependência dos órgãos de soberania (art. 111º, nº 1, da Constituição) e do estatuto constitucional do Governo (art. 182º da Constituição)'.
O Presidente da República conclui o seu requerimento pedindo a apreciação da constitucionalidade - com base nas dúvidas de constitucionalidade formuladas - das seguintes normas do Decreto nº 196/VII:
'1. Das normas constantes do art. 1º, do 1º segmento do nº 1 do art. 2º, do nº 2 do art. 2º e dos nºs. 1 e 2 do art. 4º, por: a) violação do art. 18º, nº 3, da Constituição, na medida em que, podendo ser consideradas normas restritivas de direitos análogos a direitos, liberdades e garantias, não revestem, todavia, carácter geral e abstracto; b) violação da garantia constitucional da propriedade do art. 62º, nºs 1 e 2, violação do princípio da necessária compensação, por parte do Estado, dos actos lesivos dos direitos dos particulares próprio do princípio do Estado de Direito do art. 2º, violação do princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos face ao Estado ínsito no princípio da igualdade do art. 13º, todos da Constituição, na medida em que, podendo ser consideradas normas materialmente expropriatórias, não são acompanhadas da necessária previsão da indemnização correspondente; c) violação do princípio da protecção da confiança próprio do princípio do Estado de Direito do art. 2º da Constituição, na medida em que afectam, de forma imprevisível, relevante e decisiva, as posições jurídicas de particulares resultantes de direitos e expectativas legitimamente constituídas.
2. Das normas constantes do art. 2º, por violação do princípio da protecção da confiança e da segurança jurídica próprios do princípio do Estado de Direito do art. 2º da Constituição, na medida em que frustram, de forma imprevisível, relevante e decisiva, expectativas legítimas e dignas de tutela de particulares.
3. Das normas referidas em 1 e 2, por violação do princípio da separação e interdependência dos poderes dos órgãos de soberania do art. 111º, nº 1, e do estatuto constitucional do Governo do art. 182º da Constituição, na medida em que invadem o âmbito nuclear do Executivo.
4. Das restantes normas do Decreto nº 196/VII da Assembleia da República, por inconstitucionalidade consequente.'
3. Notificada a Assembleia da República, na pessoa do seu Presidente, para, querendo, se pronunciar sobre os pedidos de apreciação de constitucionalidade, nos termos do artigo 54º da Lei do Tribunal Constitucional, foi recebida resposta, subscrita pelo Presidente da Assembleia da República, a oferecer o merecimento dos autos. Com a resposta foram juntos vários exemplares do Diário da Assembleia da República (II Série-A, nº 1, de 9 de Outubro; I Série, nº 4, de 17 de Outubro; I Série, nº 12, de 7 de Novembro; e II Série-A, nº 10, também de 7 de Novembro de 1997), de onde constam os trabalhos preparatórios do Decreto nº 196/VII e o relatório do debate de urgência sobre a transformação do IC 1 em A 8 e a criação e instalação de portagens. Foi ainda junta cópia deste Decreto.
Entretanto o então relator ordenou a notificação do Ministro do Equipamento, Planeamento e Administração do Território para que este informasse o Tribunal Constitucional sobre se tinha sido assinado já o contrato remodelado de concessão entre o Estado e a BRISA e, em caso de resposta afirmativa, em que data, pedindo-se o envio de cópia do mesmo. Em 28 de Novembro foi recebida resposta do Ministro referido a informar que o contrato havia sido assinado e não carecia de visto do Tribunal de Contas, embora o mesmo houvesse sido pedido por cautela. Juntou cópia do contrato, datado de 27 de Outubro de 1997.
Posteriormente, em 9 de Dezembro de 1997, foi recebido novo ofício do Chefe de Gabinete do mesmo membro do Governo a enviar cópia de comunicação do Tribunal de Contas de 13 de Novembro do mesmo ano a devolver o processo referente ao contrato de concessão da BRISA, 'por não estar sujeito a visto'.
Foram ainda recebidos no Tribunal Constitucional, em 16 e 17 de Dezembro de 1997, dois documentos e ordenada a sua apensação por linha ao processo: um parecer dos Professores Diogo Freitas do Amaral e João Caupers, remetido pelo Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, e um ofício do Grupo Parlamentar do PSD a enviar 'algumas considerações' elaboradas no âmbito desse Grupo Parlamentar pelo Deputado Luís Marques Guedes ('Apreciação da Constitucionalidade do Decreto nº 196/VII' - é o título do documento).
4. Discutido o memorando, houve mudança do relator.
Cumpre agora decidir. II
5. Porque se afigura de relevância significativa, importará situar a génese do Decreto nº 196/VII, nomeadamente tendo em conta a anterior publicação de legislação e de actos administrativos respeitantes, por um lado, à concessão de exploração e manutenção do troço Torres Vedras (Sul) - Bombarral da A-8 e, por outro, à realização de concursos com vista à concessão de lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados nas zonas norte e oeste, incluindo aquele lanço.
Igualmente se fará referência ao processo de privatização em curso da BRISA - Auto-Estradas de Portugal, S.A. (abreviadamente e doravante referida como BRISA), nos termos do Decreto-Lei nº 294/97, de 24 de Outubro.
6. De um ponto de vista cronológico, remontar-se-á ao Decreto-Lei nº
9/97, de 10 de Janeiro, várias vezes referido no requerimento subscrito pelo Presidente da República.
De harmonia com o preâmbulo deste diploma, o Governo pretende aumentar a oferta de infra-estruturas rodoviárias, atendendo ao 'crescimento significativo da taxa de motorização, do número de viagens empreendidas e da extensão dos percursos realizados' pela população portuguesa e à pressão crescente sobre as estradas nacionais. E, depois de se dar nota de que, para a consecução desse objectivo, o Estado tem vindo a recorrer quer à Junta Autónoma de Estradas (abreviadamente, JAE), quer à BRISA, afirma-se que, para se
'acelerar o programa de execução do Plano Rodoviário Nacional por forma a concluir, até ao ano 2000, a construção da rede fundamental e de grande parte da rede complementar', se entendeu ser 'solução (parcelar) adequada o apelo à iniciativa privada para construção e exploração de novas auto-estradas nas zonas do litoral norte e oeste, mediante concurso público'.
Tal solução - lê-se ainda no mesmo preâmbulo - passará, assim, pela constituição de duas novas empresas concessionárias que, a par da BRISA, deverão garantir a exploração da rede de auto-estradas no continente do País, cabendo
àquelas duas novas concessionárias assegurar 'novas frentes de projecto e de obra', mobilizando novas iniciativas e capitais.
De harmonia com o diploma em apreciação, prevêem-se no seu artigo 1º duas concessões, designadas como concessão norte e concessão oeste respectivamente, atribuídas mediante concursos públicos internacionais. Relativamente à concessão oeste, 'serão objecto de contrato de concessão em regime de portagem, a celebrar entre o Estado e a empresa concessionária a constituir para o efeito, a concepção, o projecto, a construção, o financiamento e a exploração' dos lanços A8 - IC1 - Caldas da Rainha - Marinha Grande, A8 - IC19 - Marinha Grande - Leiria, A13 - IP6 - Caldas da Rainha - Rio Maior e A13 - IP6 - Rio Maior - Santarém (artigo 2º, nº 1, alínea b), e anexo I, parte 2, do Decreto-Lei nº 9/97). Segundo o nº 2 do mesmo artigo 2º, integrarão 'ainda o objecto das concessões, nas condições concretas a definir pelas bases dos respectivos contratos, a exploração e manutenção' dos lanços já construidos e, na parte que aqui interessa, o lanço A8 - IC1 - Torres Vedras (Norte) - Bombarral.
Enquanto o nº 1 daquele artigo 2º, para lanços a construir, expressamente refere o regime de portagem, o nº 2, para lanços já construidos, referencia apenas as 'condições concretas a definir pelas bases dos respectivos contratos', o que não é a mesma coisa.
Haverá concursos públicos internacionais para atribuição das concessões norte e oeste, prevendo-se que o Estado se reserva o direito de não atribuição da concessão, podendo interromper as negociações ou dá-las por concluídas com qualquer dos concorrentes escolhidos, 'caso, de acordo com a sua livre apreciação dos objectivos a prosseguir, os resultados até então obtidos não se mostrem satisfatórios para o interesse público ou se as respostas ou as contrapropostas desses concorrentes forem manifestamente insuficientes ou evasivas ou não forem prestadas nos prazos fixados' (artigos 3º, nº 1, e 10º do citado Decreto-Lei nº 9/97).
Em execução deste diploma legal, foi publicado o Despacho Conjunto dos Ministros das Finanças e do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território, assinado em 5 de Fevereiro de 1997 (publicado no Diário da República, II Série, nº 32, de 7 de Fevereiro de 1997, págs. 1672-(16) a
1672-(31)) a aprovar o programa de concurso e o caderno de encargos relativo ao concurso público internacional para a concessão de lanços de auto-estrada na zona oeste de Portugal.
De harmonia com o programa do concurso e o caderno de encargos anexos a esse Despacho, ficarão sujeitos a regime de portagem, que reverterá para a concessionária, os lanços já construidos A8/IC1 - Loures - Malveira, Malveira - Torres Vedras (Sul) e Torres Vedras (Norte) - Bombarral (registe-se, a propósito, que a Resolução do Conselho de Ministros nº 46/93, de 13 de Maio, publicada no Diário da República, I Série-B, de 15 do mesmo mês, havia já ampliado a concessão outorgada à BRISA 'pela integração no seu objecto da construção, conservação e exploração do lanço Malveira - Torres Vedras da A8, auto-estrada Loures-Torres Vedras'), não ficando sujeitos a portagem, o lanço CRIL - Loures, de forma genérica, e, apenas quanto ao tráfego local, as variantes de Torres Vedras e do Bombarral, o lanço Bombarral - Óbidos, e as variantes de Óbidos e Caldas da Rainha.
Este concurso público internacional foi aberto, referindo o Presidente da República que se apresentaram ao mesmo quatro consórcios (e estava
'em fase de apreciação das propostas concorrentes' em Julho de 1997, como decorre do preâmbulo do Decreto-Lei nº 208/97, de 13 de Agosto, a seguir referenciado). De harmonia com o disposto no artigo 13º do Decreto--Lei nº 9/97, de 10 de Janeiro, nenhum concorrente pode ser obrigado a manter válida a sua proposta por período superior a 18 meses, contados da data do acto público de recepção e admissão das propostas, referido no artigo 3º, nº 3, do mesmo diploma
(cfr. igualmente a intervenção do Ministro João Cravinho, in Diário da Assembleia da República, I Série, nº 4, de 17 de Outubro de 1997, pág. 12).
7. Em 13 de Agosto de 1997 foi publicado o Decreto-Lei nº 208/97 que integrou transitoriamente o lanço Torres Vedras (Sul) - Bombarral da A8 (CRIL - Leiria) na BRISA, 'para efeitos de conservação e exploração, enquanto não for atribuída a concessão Oeste, prevista no Decreto-Lei nº 9/97, de 10 de Janeiro, nas condições definidas no presente diploma'. Consta do preâmbulo deste diploma que a solução encontrada para pôr ao imediato serviço dos utentes o lanço Torres Vedras (Norte) - Bombarral, em vias de conclusão, foi a de integrar transitoriamente, para efeitos da conservação e exploração, esse lanço na BRISA,
'tendo para o efeito sido obtida a concordância' da mesma BRISA.
Segundo o artigo 3º,nº 1, do Decreto-Lei nº 208/ /97,'à conservação e exploração do lanço referido no artigo 1º, aplicam-se as bases anexas ao Decreto-Lei nº 315/91, de 20 de Agosto, devendo as respectivas condições financeiras ser objecto de acordo entre a BRISA - Auto-Estradas de Portugal, S.A., e a Junta Autónoma de Estradas'.
Na sequência deste diploma, a Portaria nº 693-A/ /97, de 14 de Agosto, fixou as taxas de portagem a cobrar pela BRISA na exploração do novo sublanço Torres Vedras - Bombarral, a vigorar 'a partir da data de abertura ao tráfego do referido sublanço' (nº 2 da Portaria).
8. Em 24 de Outubro de 1997, foi publicado o Decreto-Lei nº 294/97 que aprova as 'modificações ao contrato de concessão da construção, conservação e exploração de auto-estradas outorgado à BRISA - Auto-Estradas de Portugal, S.A.', constantes das bases anexas ao mesmo diploma, e que dele fazem parte integrante (artigo 1º).
No preâmbulo deste diploma historiam-se as vicissitudes do contrato de concessão da construção, conservação e exploração de auto-estradas outorgado
à BRISA, desde o primitivo Decreto nº 467/72, de 22 de Novembro, referindo-se que as bases desse contrato foram sucessivamente alteradas pelo Decreto Regulamentar nº 5/81, de 23 de Janeiro, pelo Decreto-Lei nº 458/85, de 30 de Outubro, e pelo Decreto-Lei nº 315/91, de 20 de Agosto, indicando-se que as mesmas Bases careciam de nova revisão, 'não apenas em virtude da necessidade de promover a sua adaptação às novas prioridades em matéria de execução das auto-estradas estabelecidas pelo Governo mas também porque importa clarificar e estabilizar as relações da concessionária com o Estado, tendo em vista a privatização da empresa'. O prazo de concessão foi alargado até ao ano de 2030, sendo introduzidas alterações no plano financeiro e em matéria de benefícios fiscais. Explicita-se no preâmbulo do diploma que 'as bases anexas consubstanciam o resultado da negociação mantida com a concessionária. O carácter contratual da concessão não é prejudicado pela integração no presente diploma das bases anexas, cuja necessidade resulta da circunstância de alguma dessas bases apresentarem eficácia externa relativamente às partes no contrato'.
Da Base I, nº 2, a), da concessão (Bases anexas ao Decreto-Lei e que
'dele fazem parte integrante') consta que integram o objecto da concessão, para efeitos de conservação e exploração, as auto-estradas construídas pelo Estado e que ficam sujeitos ao regime de portagem, entre outros, o lanço Torres Vedras
(Sul) - Bombarral, com a extensão de 24 Km, da auto--estrada do Oeste, 'nos termos do Decreto-Lei nº 208/97, de 13 de Agosto'. As Bases XLIV e XLV regulam o resgate da concessão (permitido nos últimos cinco anos da concessão) e a rescisão da concessão.
Dispõe a Base LII deste contrato de concessão:
'1- A auto-estrada mencionada na alínea g) do nº 1 e os lanços da Auto-Estrada do Oeste referidos na alínea h) do nº 1 e na alínea a) do nº 2 da base I serão retiradas da concessão na data em que os contratos de concessão previstos no Decreto-Lei nº 9/97 produzirem efei-tos.[anote-se que é nesta alínea a) do nº 2 da Base I que se alude, além de outros, ao lanço Torres Vedras (Sul) - Bombarral]
2- Pela cedência das auto-estradas referidas no número anterior, a concessionária receberá do Estado uma importância correspondente ao valor contabilístico líquido desses activos, reportado ao final do mês anterior ao da respectiva cedência e confirmada pela Inspecção-Geral de Finanças.
3- Os lanços referidos no número antecedente serão entregues ao Estado, no estado em que se encontrarem.
4- Ao auto de entrega das auto-estradas referidas na presente base aplica-se o disposto no nº 3 da base VIII.'
Registe-se, por fim, e com interesse para a causa, que na data de 29 de Outubro de 1997 foi requerida por nove deputados do Grupo Parlamentar do Partido Social-Democrata 'a apreciação para efeitos de ratificação, do Decreto-Lei nº 294/ /97, que revê o contrato de concessão da BRISA - Auto Estradas de Portugal S.A., publicado no Diário da República, nº 247, de 14 de Outubro de 1997', 'ao abrigo do disposto nos artigos 162º e 169º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 201º do Regimento da Assembleia da República', com este fundamento:
'A revisão da concessão da construção, conservação e exploração de auto-estradas outorgada à BRISA - Auto Estradas de Portugal S.A., operada pelo Decreto-Lei nº
294/97, de 14 de Outubro, aprova modificações ao respectivo contrato que consubstanciam uma medida claramente injusta e discriminatória do Governo em relação aos cidadãos do distrito de Leiria e Oeste. Efectivamente, a alínea a) do nº 2 da base I constante das bases anexas ao Decreto-Lei nº 294/97, que dele fazem parte integrante, inclui, nomeadamente, no objecto da concessão para efeitos de conservação e exploração, o lanço Torres Vedras (Sul)-Bombarral, da Auto- -Estrada do Oeste, com a extensão de 24 Km, nos termos do Decreto-Lei nº 208/97, de 13 de Agosto. Trata-se de uma via construída pelo Estado que tinha sido projectada, financiada, construída e, em parte, aberta ao trânsito enquanto via rápida sem portagens e que fica agora, nos termos da revisão da concessão, sujeita ao regime de portagem, que reverterá para a concessionária. A esta decisão incompreensível do Governo, tomada ao arrepio de todos os antecendentes e contra a opinião dos principais representantes associativos e autárquicos dos concelhos do distrito de Leiria e Oeste, de mudar o nome ao IC 1 para A 8 e o IP 6 para A 13, para, assim, portajar estas vias, já se opuseram não só os cidadãos da região como o próprio Provedor de Justiça, que se pronunciou no sentido de considerar injusta a colocação de portagens nesses troços' (Apreciação Parlamentar nº 40/VII, publicada no Diário da Assembleia da República, II Série-B, nº 4, de 13 de Novembro de 1997).
9. Como atrás se referiu, far-se-á uma referência ao processo de privatização da BRISA.
O Decreto-Lei nº 253/97, de 26 de Setembro, aprovou a 1ª fase do processo de privatização do capital social da BRISA - Auto-Estradas de Portugal, S.A., sendo a operação de privatização 'regulada pelo presente decreto-lei e pelas resoluções do Conselho de Ministros que estabelecerem as condições finais e concretas das operações necessárias à sua execução' (artigo 1º).
Do preâmbulo deste decreto-lei consta o relato das vicissitudes da vida societária da BRISA:
'A BRISA - Auto-Estradas de Portugal, S.A., foi constituída como sociedade anónima de responsabilidade limitada, com capitais exclusivamente privados, na sequência da adjudicação da concessão para a construção e exploração de auto-estradas, outorgada ao abrigo do disposto no Decreto-Lei nº 49 319, de 25 de Outubro de 1969, e no Decreto nº 467/72, de 22 de Novembro. A nacionalização da banca, ocorrida em Maio de 1975, determinou a nacionalização indirecta de participações sociais correspondentes a 27,5% do capital social da BRISA. Contudo, tais participações, hoje reduzidas a uma percentagem mínima do capital da sociedade, foram entretanto indirectamente reprivatizadas com a reprivatização do Banco Pinto & Sotto Mayor S.A. - no qual havia sido integrado o Banco Intercontinental Português -, e do Banco Fonsecas & Burnay, S.A. A aquisição da posição hoje detida pelo Estado faz-se por meio do comércio jurídico privado, através de subscrição de acções em sucessivos aumentos de capital desde 1976. No presente, a participação do Estado corresponde a cerca de
89,7% do capital da sociedade, a que acresce uma participação de 5% detida pelo IPE - Investimentos e Participações Empresariais, S.A., e outro de 5% pela Caixa Geral de Depósitos, S.A., ambas adquiridas por compra'.
Resulta, assim, que a BRISA é uma empresa mista de capitais quase exclusivamente públicos. Como se refere no preâmbulo do diploma, 'o quadro jurídico básico de alienação da participação detida pelo Estado, a qual constitui uma privatização em sentido não constitucional', poderia levar a admitir que tal alienação se fizesse ao abrigo da Lei nº 71/88, de 24 de Maio. Todavia, o legislador inclinou-se para outra opção, indicando que será
'compreensível, tendo presente o conjunto de aspectos em questão e a experiência já existente neste domínio que, no contexto em apreço, se adopte, fundadamente, o modelo que a Lei nº 11/90, de 5 de Abril, consagrou, o qual, de resto, numa perspectiva constitucional, corresponde ao enquadramento mais exigente nesta matéria e é compatível com a Lei nº 71/88'.
Do mesmo preâmbulo do Decreto-Lei nº 253/97, de 26 de Setembro, consta a afirmação de que 'importa ainda ter presente que a privatização se efectuará no contexto de um contrato de concessão remodelada entre o Estado e a BRISA, encontrando-se o respectivo processo em fase de finalização' (já se referiu atrás que a revisão das Bases do contrato de concessão foi aprovada pelo Decreto-Lei nº 294/97, de 24 de Outubro, entretanto objecto do referido pedido de apreciação parlmentar pendente).
De harmonia com o artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 253/97, é autorizada a alienação de acções representativas de uma percentagem não superior a 49% do capital social da BRISA, pela PARTEST - Participações do Estado, SGPS. A alienação deverá realizar-se 'mediante oferta pública de venda no mercado nacional e venda directa a um conjunto de instituições financeiras que ficam obrigadas a proceder à subsequente dispersão das acções, parte da qual em mercados internacionais, com vista a alcançar o desejável grau de internacionalização da BRISA e a afirmar a presença do País e das suas empresas nos mercados internacionais de capitais' (artigo 2º, nº 4). Impõe-se à BRISA que requeira a admissão à cotação da totalidade das acções alienadas no mercado de cotações oficiais da Bolsa de Valores de Lisboa.
Ao abrigo deste Decreto-Lei, a Resolução do Conselho de Ministros nº
191-A/97, de 14 de Outubro, publicada no Diário da República, 1ª Série-B, de 30 de Outubro de 1997, autorizou a alienação das referidas acções e regulamentou a operação da 1ª fase de privatização, publicando em anexo o caderno de encargos da venda directa. Através da Resolução do Conselho de Ministros nº 198/97, de 30 de Outubro, publicada no Diário da República, I Série-B, de 18 de Novembro de
1997, foi estabelecido o intervalo para a fixação do preço de venda das acções da BRISA entre 4.100$00 e 5.000$00. E, por força da Resolução do Conselho de Ministros nº 200-A/97, de 13 de Novembro, publicada no Diário da República, nº
270, de 21 de Novembro de 1997, foi determinado que fossem alienados, através de oferta pública de venda, 11.200.000 acções da BRISA, e, por venda directa, um lote de 6.999.909 acções.
Como foi noticiado na imprensa, sendo de todos sabido, em sessão especial da Bolsa realizada em 24 de Novembro de 1997 foram alienadas pela PARTEST acções representativas do capital social da BRISA correspondente a 35% do mesmo, tendo sido fixado o preço da acção em 4.850$00 (cfr. jornal PÚBLICO, de 25 de Novembro de 1997, fls. 41).
III
10. Antes de analisar as questões de constitucionalidade submetidas
à apreciação do Tribunal Constitucional, importa transcrever as normas do Decreto nº 196/VII e referir brevemente a origem do diploma e o debate parlamentar relativo à sua aprovação.
'Artigo 1º
Os lanços Torres Vedras (Sul) - Bombarral, Torres Vedras (Norte) - Bombarral, bem como o sublanço Torres Vedras (Sul) - Torres Vedras (Norte) - variante de Torres Vedras, da AE 8 - CRIL - Leiria, são integrados transitoriamente na concessão da BRISA - Auto-Estradas de Portugal, S.A., para efeitos de conservação, até à decisão sobre a eventual atribuição da concessão Oeste, prevista no Decreto-Lei nº 9/97, de 10 de Janeiro, nas condições definidas no presente diploma.
Artigo 2º
1- As vias rodoviárias referidas no artigo anterior e o seu prolongamento, já previsto, até Leiria, bem como o troço do IP 6 entre Peniche e Santarém não ficam sujeitas ao regime de taxa de portagem.
2- O disposto no número anterior aplica-se quer no período transitório referido no artigo anterior, quer posteriormente à concessão Oeste aí referida, venham ou não as mencionadas vias rodoviárias a ser integradas nesta concessão.
Artigo 3º As condições financeiras para a conservação dos lanços e sublanços referidos no artigo 1º serão objecto de acordo entre a BRISA - Auto-Estradas de Portugal, S.A., e a Junta Autónoma das Estradas. Artigo 4º
1- É revogado o Decreto-Lei nº 208/97, de 13 de Agosto.
2- A Base I do contrato de concessão para a construção, conservação e exploração de auto-estradas outorgado à BRISA - Auto-Estradas de Portugal, S.A., aprovada em anexo ao Decreto- -Lei nº 294/97, de 24 de Outubro, passa a ter a seguinte redacção:
'BASE I Objecto da concessão
1..........................................
2. Integram também o objecto da concessão para efeitos de conservação e exploração, as seguintes auto-estradas: a) Construídas pelo Estado e ficando sujeitas ao regime de portagem, que reverterá para a concessionária: Auto-Estrada do Norte: lanço Alverca - Vila Franca de Xira, com a extensão de
10,9 KM; Auto-estrada do Oeste: lanço Loures - Malveira, com a extensão de 11,7 KM, nos termos do disposto no anexo II ao Decreto-Lei nº 315/91, de 20 de Agosto: b) ........................................... c) ...........................................
3............................................
4............................................
5............................................
6............................................
7.............................................
3.O presente diploma produz efeitos no dia imediato ao da data de sua publicação, com excepção do artigo 2º que entra em vigor com o Orçamento do Estado para 1998'.
11. O Decreto nº 196/VII teve a sua origem num projecto de lei subscrito em 30 de Setembro de 1997 por Deputados do Partido Popular (CDS-PP), do Partido Social Democrata (PPD/PSD), do Partido 'Os Verdes' e do Partido Comunista Português (PCP) (Projecto de Lei nº 413/VII, publicado no Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 1, de 9 de Outubro de 1997).
Do preâmbulo do projecto constam as razões visadas pelos proponentes, nomeadamente a circunstância de o IC 1 e o IP 6, no distrito de Leiria e Oeste, terem sido projectados, financiados, construidos e, em parte, abertos ao trânsito enquanto vias rápidas sem portagens, com financiamento largamente suportado pela União Europeia, através do FEDER, a circunstância de o Governo ter decidido retirar portagens, ainda em 1995, noutras zonas do País, com o argumento de os cidadãos dessas regiões não disporem de meios alternativos rodoviários e ferroviários e de as características do tráfego serem de âmbito local e inter-regional, características que se verificariam também nas deslocações dos 'cidadãos dos concelhos do distrito de Leiria e Oeste', a reacção das populações desses concelhos, a circunstância da intervenção do Provedor de Justiça no sentido de considerar injusta a sujeição a portagens. Daí que, 'por imperativos de justiça e seriedade política', houvesse que repor 'a situação entretanto desvirtuada'.
O texto do articulado então apresentado coincide com o do Decreto nº
196/VII, salvo no que toca ao nº 2 do artigo 4º deste último. De facto, esse nº
2 do artigo 4º foi introduzido por uma proposta de alteração apresentada por alguns dos Deputados proponentes do Projecto de Lei nº 413/VII, passando o primitivo nº 2 desse Projecto a nº 3 do Decreto nº 196/VII (cfr. o texto da proposta de alteração no Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 10, de 7 de Novembro de 1997).
12. Logo no despacho sobre a admissibilidade do Projecto de Lei nº
413/VII, o Presidente da Assembleia da República suscitou reservas acerca da constitucionalidade daquele Projecto nos seguintes termos:
'Continuo, pois, a entender que abolir portagens é um acto típico da esfera de competência do Executivo. Quanto ao presente projecto, acresce ainda, com realce no plano das minhas reservas, a previsão da integração na concessão da BRISA para efeitos de conservação de determinados lanços da A 8. Isto equivale a uma alteração ex vi legis de um prévio contrato de concessão negociado e firmado pelo Executivo, sem audição de qualquer das partes nele intervenientes. Creio não ser possível impor à BRISA uma obrigação contratual não prevista no contrato anteriormente firmado, no mínimo sem a sua prévia concordância. Afigura-se-me ainda que o disposto nos artigos 1º e 3º se não encontra abrangido pela ressalva do nº 2 do artigo 4º no que se refere ao obstáculo colocado pela lei-travão. Tenho, no entanto, de admitir - ou, no mínimo, é razoável que admita - que as minhas reservas possam não ser líquidas' (in Diário cit., II Série, nº 1, de 9 de Outubro de 1997).
Na sessão plenária de 16 de Outubro de 1997, procedeu-se a um debate de urgência requerido pelo CDS/PP sobre o problema da transformação da IC 1 em A
8, em que se discutiram as questões políticas relativas ao Decreto-Lei nº 208/97 e as decorrentes da apresentação do Projecto de Lei nº 413/VII.
Desse debate parlamentar resultou que o acordo entre a BRISA e a JAE
(em rigor, o Estado) apenas havia sido homologado pelo Secretário de Estado do Tesouro e das Finanças em 10 de Outubro de 1997 (intervenção do Deputado Jorge Ferreira, referindo resposta escrita do Ministro do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território, João Cravinho, - in Diário da Assembleia da República, I Série, nº 4, de 17 de Outubro de 1997, pág. 12), ficando a partir dessa data aberta a possibilidade da sua formalização (que ocorreu em 27 de Outubro de 1997, conforme resulta de documento entretanto junto aos autos).
Na discussão na generalidade e na especialidade do Projecto nº
413/VII, realizada na reunião plenária da Assembleia da República de 6 de Novembro de 1997, esgrimiram-se argumentos sobre a constitucionalidade daquele projecto, nomeadamente enquanto alterava um contrato em vigor entre o Estado e a BRISA, tendo o Ministro João Cravinho invocado 'a violação do princípio da confiança, trave-mestra do nosso Estado de direito', na medida em que o Governo anunciara, 'em 1996, a intenção de proceder a novas concessões de auto-estradas, incluindo uma nova rede abrangendo os distritos de Leiria e Santarém', traduzindo-se a aprovação da abolição de portagens numa 'grave violação do princípio da confiança, passível de pesadas repercussões sobre a credibilidade do Estado e do funcionamento conjugado dos órgãos de soberania em defesa do Estado de direito' (in Diário da Assembleia da República, I Série, nº 12, de 7 de Novembro de 1997, págs. 12-13), do mesmo passo que diferentes Deputados da oposição invocavam o argumento retirado da abolição pelo Governo das portagens de Ermesinde e da Maia e da CREL em 1995. Relativamente à proposta de alteração apresentada por parte dos Deputados proponentes, o Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, António Costa denunciou a solução constante da alteração da Base I do contrato firmado entre o Estado e a BRISA como uma violação da competência do Governo, sendo tais matérias sempre respeitadas anteriormente pela Assembleia da República. Invocou este membro do Governo que, tendo sido subscritor, como Deputado da oposição, de um projecto de lei que alterava regimes de portagens, tivera o cuidado de condicionar a entrada em vigor da futura lei em que aquele eventualmente se transformasse 'não só à nova vigência orçamental mas ao facto de o Governo, que era por esse diploma mandatado para fazê-lo, renegociar os contratos de concessão já firmados e em vigor', ao passo que agora a maioria da Assembleia não deixara 'o Governo fazer isso e impuser[a] unilateralmente uma restrição dos direitos de uma sociedade anónima privada' (no mesmo Diário, pág. 24). O mesmo membro do Governo retomou a tese da violação do princípio da confiança relativamente à afectação do concurso internacional aberto para concessão das auto-estradas Norte e Oeste. A esta argumentação contrapôs o Deputado António Filipe, do PCP, que o decreto-lei que ia ser alterado pelo diploma em vias de aprovação 'não estava consolidado na ordem jurídica portuguesa', sendo susceptível de apreciação por parte da Assembleia da República, 'porque estava ainda dentro do prazo e o Governo, quando este decreto-lei foi publicado, sabia perfeitamente que esta iniciativa legislativa estava pendente para apreciação desta Assembleia' (mesmo Diário, pág. 25). IV
13. Importa agora passar a apreciar as dúvidas de constitucionalidade postas ao Tribunal pelo Presidente da República. A) Questão de constitucionalidade das normas constantes do artigo 1º, do primeiro segmento do nº 1 do artigo 2º, do nº 2 do artigo 2º e dos nºs 1 e 2 do artigo 4º do Decreto nº 196/ VII
Como atrás se referiu, o Presidente da República começa por atribuir ao Decreto nº 196/VII o carácter de lei restritiva do direito à propriedade da BRISA, afirmando que o artigo 1º, o artigo 2º, nºs 1 (1º segmento) e 2, e o artigo 4º, nºs 1 e 2, deste Decreto 'afectam decisivamente a própria existência do direito da BRISA à exploração com cobrança de portagem, do lanço Torres Vedras (Sul) - Bombarral da Auto-Estrada do Oeste' (I., 1., a)).
Recorda-se que o Decreto-Lei nº 208/97, de 13 de Agosto, havia integrado transitoriamente na concessão da BRISA, para efeitos de conservação e exploração, o referido lanço Torres Vedras (Sul) - Bombarral da A 8, pretendendo o Decreto nº 196/VII revogar aquele decreto-lei (artigo 4º, nº 1), integrando esse lanço e outros lanços, parte deles ainda em vias de conclusão, a título transitório, na concessão da BRISA, mas apenas para efeitos de conservação, (uma vez que não tem sentido falar de exploração de uma via rodoviária quando se estabelece que a mesma deixa de estar sujeita ao regime de taxa de portagem - artigo 2º, nº 1, do Decreto em apreciação).
No pedido do Presidente da República afirma-se que 'não é o facto de na sociedade anónima que é a BRISA haver uma larga participação de capitais públicos e ela desempenhar, enquanto concessionária, poderes de natureza pública, que cria quaisquer obstáculos à sua qualificação como pessoa jurídica com capacidade de titular direitos fundamentais e direitos subjectivos públicos, aos quais deve ser reconhecida, até por exigências próprias da racionalidade do funcionamento do mercado, tutela jurídico-constitucional idêntica à dos direitos de propriedade de qualquer outra entidade privada'. (Ponto I, 1, a)).
Subjacente a esta argumentação está a ideia de que os direitos fundamentais só podem ser restringidos por lei com carácter geral e abstracto.
14. O Tribunal Constitucional, atenta a sua anterior jurisprudência relativa à aplicabilidade de amnistias a sociedades de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos, não pode acolher a argumentação do Presidente da República.
De facto, a propósito da concessão por lei de uma amnistia laboral a
'trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos' (alínea ii) do artigo 1º da Lei nº 23/91, de 4 de Julho), teve ocasião o Tribunal Constitucional de rejeitar de forma unânime o entendimento daqueles que sustentavam a inconstitucionalidade da medida por violação da garantia da iniciativa privada ou do direito de propriedade privada. Escreveu--se no acórdão nº 152/93:
'Não sendo [o poder disciplinar] um poder absoluto, não pode dizer-se que esteja vedado ao legislador amnistiar certas infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de entidades de natureza pública, como sucede no caso dos autos. Não há que falar em expropriação ou confisco do poder disciplinar de entidades autónomas quando o Estado é, directa ou indirectamente, o único titular do capital social dessas empresas, - é o que sucede no caso da entidade recorrente
[isto é, a C.P. - Caminhos de Ferro Portugueses, E.P.] - não tendo sentido aludir neste contexto à iniciativa económica privada (cfr. artigo 82º, nº 2, da Constituição). Tão-pouco se pode ver nessa amnistia uma ofensa do direito de propriedade privada, visto que o Estado é proprietário, directa ou indirectamente, das empresas do sector público, não sendo fundado invocar aquele artigo constitucional para disciplinar as relações do titular das empresas com os órgãos das mesmas. Do mesmo modo, não pode encontrar-se no nº 2 do artigo 87º da Constituição qualquer apoio para considerar ilegítima a presente amnistia laboral, visto que o Estado não está a intervir em empresas privadas, mas em empresas, como é o caso da CP, cujo capital lhe pertence integralmente, empresas do sector público da economia, portanto' (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º volume, pág. 340; ao artigo 87º, nº 2, referido no texto corresponde hoje o artigo 86º, nº 2, da Constituição)
Nessa jurisprudência, o Tribunal Constitucional adoptou esta orientação mesmo relativamente a casos de empresas de capitais maioritariamente públicos, quando os factos ilícitos amnistiáveis tivessem ocorrido em momento em que as empresas eram integralmente públicas, tendo então sido considerado irrelevante, para efeitos de aplicação da referida amnistia, a subsequente privatização de parte do capital social, mantendo- -se a empresa no sector público.
Sem se desconhecer o debate entre os constitucionalistas acerca da questão da titularidade de direitos fundamentais por parte das pessoas colectivas em geral e, em especial, por parte das pessoas colectivas de direito público (cfr., entre nós, a notícia que é dada sobre esse debate por dois autores que adoptam respostas antagónicas na matéria, J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa, reimpressão, Coimbra, 1987, págs. 180 e seguintes, e J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6º edição, Coimbra, 1993, págs. 559 e seguintes e, mais recentemente, por Vital Moreira, in Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra, 1997, págs.
510-520, aceitando que militam a favor de uma resposta positiva 'todos os argumentos relevantes', pelo menos 'em relação às entidades públicas que sejam expressão de interesses colectivos extra-estaduais' - pág. 513), e tendo mesmo a consciência de que provavelmente, à luz do artigo 12º, nº 2, da Constituição, não será possível hoje dar uma resposta única a todas as situações concebíveis
(bastará distinguir, por um lado, empresas de capitais públicos, puras emanações do Estado movendo-se nos domínios exclusivos da economia e do mercado, e, por outro, universidades públicas, associações públicas, autarquias territoriais e empresas de capitais públicos no domínio dos meios de comunicação social; ou então distinguir entre os direitos fundamentais em causa, bastando referir a diversidade entre o direito à integridade moral e ao bom nome e o direito à tutela judicial, por um lado, e o direito à iniciativa económica e à propriedade, por outro), a verdade é que, na corrente jurisprudencial que se formou a partir dos acórdãos nºs 152/93 e 153/93, não encontrou eco, no âmbito da matéria da amnistia laboral, a ideia de que as empresas do sector público da economia pudessem contrapor ao Estado, único ou predominante titular do seu capital social, o direito à iniciativa económica e o direito à propriedade privada, em termos de se poderem opor, com êxito, à aprovação de medidas legislativas que afectem a sua autonomia patrimonial.
O fundamento essencial desta jurisprudência está no facto de o Estado ser o verdadeiro 'dono' dessas empresas.
Ora, este fundamento é igualmente válido para uma medida legislativa como aquela que está em apreciação, uma vez que, como decorre do preâmbulo do Decreto-Lei nº 253/97, de 26 de Setembro, atrás transcrito, a percentagem dos capitais públicos no capital social da BRISA atingia até à privatização os
99,7%.
Sem se pôr em causa que o direito à exploração dos lanços de auto-estradas, direito de conteúdo patrimonial, goze em abstracto da protecção constitucional do direito à propriedade (para um caso paralelo,no sentido de que o direito do arrendatário, ainda que concebido como tendo natureza meramente obrigacional é, 'em certa medida, protegido pelo artigo 62º da Constituição, ou seja, pela garantia constitucional do direito de propriedade', veja-se o acórdão nº 267/95, do Tribunal Constitucional, in Diário da República, II Série, nº 166, de 20 de Julho de 1995), as considerações precedentes bastam para que o Tribunal conclua que as normas indicadas não violam um qualquer direito à propriedade da BRISA ou um outro direito fundamental económico, como o direito de iniciativa económica.
As considerações feitas na fundamentação das dúvidas de constitucionalidade manifestadas pelo Requerente valerão relativamente a particulares, sejam eles pessoas singulares ou colectivas (cfr. artigo 12º, nº
2, da Constituição), mas não podem transpor-se para uma empresa de capitais integralmente públicos (ou, praticamente, de capitais inteiramente públicos - caso da BRISA), cuja dependência do Estado-Administração é total, ainda que a forma jurídica adoptada seja a societária, submetida ao direito privado (não assume especial relevo o facto de haver accionistas que são sociedades comerciais de capitais integralmente públicos, como é o caso da Caixa Geral de Depósitos e o IPE). Nessa medida, as considerações atinentes à exploração de bens necessariamente dominiais por uma concessionária, invocadas pelo requerente, não podem aplicar-se, sem mais, ao caso de uma concessionária que é uma sociedade detida a 99,7% pelo sector público.
O facto de existir uma minoria exígua de capital detido por particulares não é, no entender do Tribunal, de molde a mudar as coisas.
Impõe-se, assim, concluir que as normas postas em causa não violam os artigos 17º, 18º, nº 3, e 62º, nº 1, da Constituição.
15. Alcançada a conclusão atrás referida, não valerá a pena discutir a hipótese avançada de que se estaria, in casu, perante um acto jurídico público de ablação de um direito de conteúdo patrimonial, que deveria estar submetido a um tratamento constitucional análogo ao da expropriação por utilidade pública
(artigo 62º, nº 2).
A circunstância de o presente Decreto não prever o pagamento de uma indemnização encontra justificação no facto de ser o Estado, essencialmente, a entidade afectada pela abolição dessa receita da concessionária.
Quanto aos accionistas privados, poderão, quando muito, responsabilizar o accionista maioritário por um acto de gestão que os prejudique, no âmbito das relações jurídico- -privadas.
Não se mostram, assim, violadas as normas dos artigos 62º, nºs 1 e
2, 2º e 13º da Constituição pelas normas acima indicadas.
16. Tão-pouco é fundado considerar que as normas impugnadas frustrem legítimas expectativas da própria BRISA.
De facto, por um lado, a apresentação do projecto de lei por Deputados de todos os partidos da oposição ocorreu antes do início da sessão legislativa (cfr. ponto 11.) e, portanto, dentro do prazo em que poderia ser requerida a ratificação parlamentar do Decreto-Lei nº 208/97, de 13 de Agosto, ao abrigo do artigo 172º, nº 1, da Constituição, na versão vigente à data da publicação do diploma (note-se que o prazo foi alterado por força do novo artigo
169º, nº 1, da versão entrada em vigor em 5 de Outubro de 1997), estando, desde a apresentação do projecto, anunciada a intenção dos proponentes de fazer votar a revogação daquele diploma. Por outro lado, a necessidade de acordo da concessionária para alteração do contrato de concessão, não constituiria, só por si, óbice à solução de abolição de portagens para o futuro, devendo naturalmente implicar a renegociação do contrato de concessão, não podendo falar-se em afectação de expectativas de uma empresa que é propriedade do próprio Estado.
Nem sequer a circunstância de se ter iniciado um processo de privatização da BRISA - sem que, na sua primeira fase, tal acarrete a passagem da empresa ao sector privado, visto o Estado manter necessariamente a maioria do capital social - poderá acarretar a violação de expectativas dos interessados na aquisição das acções objecto de oferta pública de venda ou de proposta de venda directa, uma vez que era do conhecimento público durante o processo de alienação o risco de a sociedade perder a exploração, a título transitório, de certos lanços da auto-estrada do Oeste. Cabia ao Estado naturalmente alertar os interessados, no País e no estrangeiro, para tal risco, através da inclusão nos respectivos prospectos de venda da notícia da medida legislativa em curso, com todas as suas implicações, nomeadamente aquela que foi debatida na Assembleia da República: a do risco criado para a rentabilidade da auto-estrada do Norte (A
1), pela circunstância de a auto-estrada do Oeste, que ligará Lisboa a Leiria, ser de utilização gratuita entre Torres Vedras e Leiria, permitindo uma alternativa menos onerosa aos veículos que se dirigem desta última cidade a Lisboa e que actualmente utilizam a A 1 para o efeito.
B) Questão da constitucionalidade das normas constantes do artigo 2º do Decreto na parte em que afectam candidatos a um concurso público internacional ou outros interessados nomeadamente na construção de novos lanços da auto-estrada do Oeste
17. Diferentemente do primeiro grupo de questões de constitucionalidade que diziam exclusivamente respeito à situação da BRISA, empresa de capitais maioritariamente públicos, nas suas relações com o Estado-Legislador, o Presidente da República aborda, em segundo lugar, questões de constitucionalidade que têm a ver com a circunstância de estar em curso um concurso público internacional para escolha de um novo concessionário da auto-estrada do Oeste, que venha a explorar e conservar os lanços e variantes já construídos e a funcionar, ou prestes a entrar em funcionamento, e construa, explore e conserve novos lanços indicados no Decreto-Lei nº 9/97, quando o artigo 2º do Decreto nº 196/VII dispõe que todas as vias rodoviárias correspondentes a todos aqueles lanços ('e o seu prolongamento já previsto, até Leiria, bem como o troço do IP 6 entre Peniche e Santarém') não ficam sujeitas ao regime da taxa de portagem, independentemente de virem ou não a ser integradas na referida concessão Oeste, perdendo o concurso internacional praticamente o seu objecto.
Face a estas questões de constitucionalidade, há que reconhecer que o Decreto-Lei nº 9/97, de 10 de Janeiro - diploma que regula os termos dos concursos internacionais que prevê, fixando 'as regras que orientarão o Estado na escolha dos co-contratantes' - vigora plenamente na ordem jurídica, tendo sido lançado um concurso público internacional com fun
damento nesse decreto-lei, e havendo notícia (referida durante os debates parlamentares e não contestada por nenhum dos intervenientes) de que foram apresentadas propostas por quatro consórcios, aguardando-se a decisão final do concurso (cfr. ponto 6.). Por consequência, trata-se de um concurso que está ainda a decorrer e que não se sabe se já teria chegado à fase prevista no artigo
8º (negociação com os dois concorrentes com as melhores propostas), ignorando-se como chegará a seu termo, no condicionalismo legal do artigo 10º daquele Decreto-Lei nº 9/97, pelo qual - recorde-se - 'o Estado reserva-se o direito de interromper as negociações ou de as dar por concluídas com qualquer dos concorrentes escolhidos', verificando-se o condicionalismo aí prescrito.
É, assim, indubitável que os concorrentes se apresentaram ao concurso no quadro legal constante do Decreto-Lei nº 9/97 e que, embora não tenham um 'direito à vitória' nesse concurso (ou seja, um direito a outorgar com o Estado o futuro contrato de concessão de construção, exploração e manutenção de auto-estradas em regime de portagem;de resto cfr. artigos 8º e 10º), têm, em todo o caso, uma legítima expectativa de que o processo de concurso prossiga até ao fim e que o Estado decida, se for caso disso, pela adjudicação a um dos concorrentes da concessão. É, de facto, indiscutível que as expectativas dos concorrentes abrangem a possibilidade de acesso ao resultado
almejado do concurso (a escolha do contraente), se lhes interessar, na óptica do artigo 13º, manter válidas as respectivas propostas, 'em função do preenchimento dos critérios de decisão nele fixados e, no mínimo, a que as suas candidaturas sejam apreciadas e decididas com base nas regras originariamente fixadas no Despacho que aprovou o regime do concurso' (requerimento subscrito pelo Presidente da República, Ponto II).
A entrada em vigor da lei em que eventualmente se converterá o Decreto nº 196/VII implica que o concurso aberto, nos termos em que o foi, fica praticamente sem objecto, visto que o artigo 2º do Decreto-Lei nº 9/97, contrariamente ao que dispõe o diploma em apreço, prevê que as concessões a outorgar obedeçam ao regime de portagem (cfr. nº 1), constituindo essa receita a contrapartida do financiamento assegurado pelos próprios concessionários para construir os lanços previstos (artigo 6º, als. c) e d), e 9º). Isto, sem prejuízo de se aludir no artigo 1º do Decreto nº 196/VII 'à decisão sobre eventual atribuição da concessão Oeste', o que indicia que o legislador admite a manutenção do concurso.
Pergunta-se então: a frustração das expectativas dos contraentes, com o desenho e o condicionalismo assinalados, implicará a inconstitucionalidade da norma do artigo 2º do Decreto nº 196/VII?
É o que se vai ver.
18. Para responder à questão posta, convirá fazer uma breve referência à jurisprudência do Tribunal sobre a violação do princípio da confiança, elaborada face a situações de superveniência de legislação aplicável retrospectivamente às situações jurídicas em curso.
Como se escreveu no acórdão nº 303/90 (in Acórdãos, 17º vol., pág.
87-88):
'Neste princípio [da confiança] está, entre o mais, postulada uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas. Por isso, a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela Lei Básica [...]. Consoante o que se referiu no dito Acórdão deste Tribunal nº 17/84, «o cidadão deve poder prever as intervenções que o Estado poderá levar a cabo sobre ele ou perante ele e preparar--se para se adequar a elas. Ele deve confiar em que a sua actuação de acordo com o direito seja reconhecida pela ordem jurídica e assim permaneça em todas as suas consequências juridicamente relevantes. Esta confiança é violada sempre que o legislador ligue a situações de facto constituídas e desenvolvidas no passado consequências jurídicas mais desfavoráveis do que aquelas com que o atingido podia e devia contar. Um tal procedimento legislativo afrontará frontalmente o princípio do Estado de direito democrático»'.
E, no acórdão nº 287/90, o Tribunal Constitucional procurou precisar quando ocorria uma afectação inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa, de expectativas jurídicas, apontando dois critérios de inadmissibilidade:
'a) afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dele constantes não possam contar; e ainda, b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no nº 2 do artigo 18º da Constituição, desde a 1ª revisão) (in Acórdãos, 17º volume, pág. 177; veja-se, na mesma linha, o acórdão nº 410/95, in Diário da República, II Série, nº 265, de 16 de Novembro de 1995).
Neste acórdão afirma-se, por outro lado, que 'não há (...) um direito à não frustração de expectativas jurídicas ou à manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados'. E, mais à frente, refere-se que 'medidas legislativas de política económica conjuntural poderão ser alteradas, em frustração de expectativas, se a conjuntura económica mudar ou se, mesmo sem essa mudança, mudar a orientação geral da política económica em consequência da mudança de governo constitucionalmente previsível. Nada dispensa a ponderação na hipótese do interesse público na alteração da lei em confronto com as expectativas sacrificadas' (ibidem, págs. 176/177).
Mas aqueles dois critérios, atinentes à existência de uma afectação de expectativas constitucionalmente inadmissível, por ser arbitrária ou demasiadamente onerosa, assentam justamente num pressuposto: o pressuposto da consistência das expectativas sobre que incide a controvertida alteração legislativa. Sem expectativas consistentes desqualifica-se o problema da protecção da confiança. Então, impõe-se a liberdade do legislador e a auto-revisibilidade que lhe vai ligada.
Ora, resulta da natureza da situação, do funcionamento de regras que traçam o figurino do concurso em causa e da fase em que este se encontrava ao ser aprovado o Decreto em apreço, que aqui não é possível falar de expectativas dos concorrentes com suficiente consistência para se poder falar numa afectação
'excessivamente gravosa', na linguagem do acórdão do Tribunal Constitucional nº
37/96, publicado no Diário da República, nº 103, de 3 de Maio de 1996. Ou, para que, nos dizeres do citado acórdão nº 303/90, se possa falar numa mutação do regime que 'obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva
àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar' (cfr. ainda o acórdão nº 365/91, publicado no Diário da República, nº 196, de 27 de Agosto de 1991, no qual se considera que
'tratando-se de mera promessa de realização de um negócio, a expectativa (ou direito) existente será apenas a de o promitente se obrigar a emitir a declaração de vontade correspondente ao negócio prometido, ou seja, trata-se de um direito ou expectativa «menos forte» do que se se estivesse perante um negócio celebrado por forma definitiva').
Com efeito, estando ainda o concurso a correr, não tendo ainda havido adjudicação, os concorrentes têm apenas a expectativa de ver a sua proposta apreciada. Depois, e como decorre do que ficou dito no ponto 17., os concorrentes que se apresentaram ao concurso internacional aberto com o programa e o caderno de encargos fixados no Despacho conjunto de 5 de Fevereiro de 1997, ao abrigo do Decreto-Lei nº 9/97, de 10 de Janeiro, sabiam muito bem que o Estado se reserva o direito de interromper as negociações ou de as dar por concluídas - a qualquer momento da fase de negociações -, exercendo uma discricionaridade administrativa norteada pela 'livre apreciação dos objectivos a prosseguir'. Aliás, também os concorrentes não estarão obrigados a manter válidas as suas propostas nas condições previstas do artigo 13º.
Tal significa que os concorrentes nem sequer podiam, à partida, ter uma absoluta segurança de que o processo do concurso chegasse a final. Ao que acresce que, mesmo que isto acontecesse, nenhum deles teria uma expectativa fundada de ser um dos dois concorrentes a entrar na fase de negociação prevista no artigo 8º.
Em suma: as expectativas dos concorrentes no referido processo do concurso, por força das condições e da fase em que ele se encontrava quando foi aprovado o Decreto sub juditio, não têm - repete-se - consistência bastante para pôr em causa o princípio da confiança.
A isto poderia ainda aduzir-se que, tratando-se aqui de uma medida legislativa de política económica conjuntural (recte: de política rodoviária), só que ditada, não pela mudança do Governo, mas pela existência de uma maioria parlamentar que se formou nesse sentido, tal situação, se alguma similitude apresenta com a hipótese versada no mencionado acórdão 287/90, é com as situações que nesse acórdão o Tribunal considerou susceptíveis de, no ponto de vista constitucional, serem sempre alteradas, mesmo com frustração de expectativas.
Por último, sempre se dirá que, se houver prejuízos susceptíveis de serem indemnizáveis, relacionados com tal medida legislativa, essa é uma questão a decidir em sede de responsabilidade civil do Estado.
Neste quadro, entende-se, consequentemente, que o artigo 2º não é inconstitucional por violação do princípio da protecção e da segurança jurídica, consagrado no artigo 2º da Constituição.
19. Claro que concluindo pelo antecedente juízo de não inconstitucionalidade, muito menos a um juízo inverso desse se poderia chegar considerando a afectação de outras eventuais expectativas de natureza económica, se é que existem, nomeadamente de agentes económicos que fornecem bens e serviços nas obras de construção de redes viárias, dado tais expectativas serem difusas, não sendo juridicamente fundadas, e podendo mesmo não ocorrer qualquer frustração se a construção dessas redes vier a ser assegurada directamente pelo Estado, não obstante a onerosidade da obra. C) Questão da constitucionalidade dos artigos 1º, 2º, nºs 1 e 2, e 4º, nºs 1 e
2, do Decreto nº 196/VII, face ao princípio da separação e interdependência dos
órgãos de soberania.
20. O Presidente da República suscita, em terceiro lugar, a questão da eventual violação do princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania, considerando que:
'... na medida em que afecta decisivamente as competências políticas e administrativas que o Governo havia legitimamente exercido na sua qualidade constitucional de «o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da administração pública», sem que, para isso, a Assembleia da República dispusesse de fundamento constitucional bastante, pode ainda considerar-se que o Decreto nº 196/VII da Assembleia da República invade ilegitimamente o âmbito nuclear do Executivo, pelo que, por tal facto, também as já referidas normas deste Decreto poderão ser consideradas inconstitucionais por violação do princípio da separação e interdependência dos poderes dos órgãos de soberania acolhido no art. 111º, nº 1, da Constituição, e por violação do estatuto constitucional do Governo consagrado no art. 182º da Constituição'(Ponto III)
Será procedente esta dúvida?
É o que passa a analisar-se.
21. Em processo de fiscalização preventiva recente e a propósito de uma lei parlamentar que visara criar vagas adicionais no acesso ao ensino superior público, já atrás aludida, teve ocasião o Tribunal Constitucional de afrontar o âmbito do princípio da separação e interdependência de poderes e debater a questão de saber se poderia aceitar-se a existência de uma verdadeira reserva constitucional de administração (o acórdão nº 1/97, publicado no Diário da República, I Série-A, nº 54, de 5 de Março de 1997).
Entretanto, depois da data de assinatura desse acórdão ocorreu um aditamento ao texto constitucional que é pertinente à matéria e que importa destacar.
Na verdade, a Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, veio acrescentar, no enunciado das bases em que assenta a República Portuguesa, enquanto Estado de direito democrático, constante do artigo 2º da Constituição, a referência à 'separação e interdependência de poderes'. Assim, este princípio, que aparecia apenas formulado a propósito da organização do poder político
(artigo 114º, nº 1, a que corresponde o artigo 111º, nº 1, da actual versão), como que adquiriu agora um reforçado reconhecimento, ao ser explicitado inequívoca e claramente, na sua dupla vertente, como um dos essentialia do Estado de direito democrático. Tal foi, de resto, de um ponto de vista histórico, o sentido do aditamento em análise, aprovado, como foi, a partir de uma proposta do PSD de explicitação no artigo 2º da Lei Fundamental do princípio da 'divisão e equilíbrio de poderes' (cfr. Uma Constituição Moderna para Portugal, texto anotado por Luis Marques Guedes, 1997, págs. 73-74; Constituição da República Portuguesa, 4ª Revisão, Setembro de 97, prefácio e anotação por Jorge Lacão, Lisboa, 1997, pág. 97; veja-se, para a compreensão da explicitação, Pedro Carlos Bacelar de Vasconcelos, Teoria Geral do Controlo Jurídico do Poder Público, Edições Cosmos, Lisboa, 1996, pág. 142).
Sendo agora, pois, ainda mais incontroverso - se tivesse sentido dizê-lo assim - que o princípio da divisão dos poderes, na sua dupla e clássica vertente da 'separação' e da 'interdependência' dos poderes, é um princípio básico estrutural do Estado, cabe perguntar se ocorre a sua denunciada violação.
22. No acórdão nº 1/97, o Tribunal Constitucional considerou que o decreto da Assembleia da República em apreciação não era inconstitucional por violação do princípio de separação de poderes, nem violava uma alegada reserva geral de administração decorrente, segundo certas orientações, do artigo 114º, nº 1, da versão então em vigor da Constituição. Afirmou então o Tribunal que não decorria seguramente desse preceito constitucional, em conjugação com o artigo
2º da mesma versão, tal reserva geral de administração, pois que:
'[a] separação e interdependência dos órgãos de soberania aí previstos exprime um esquema relacional de competências, funções, tarefas e responsabilidades dos
órgãos do Estado, destinado a assegurar, simultaneamente, a referida medida jurídica do poder e um princípio de responsabilidade dos órgãos de soberania
(...).' (Ponto II-B), 8)
E, mais à frente, afirmou-se que:
'... de modo decisivo, mesmo sendo constitucionalmente atribuído ao Governo o núcleo essencial da função administrativa, enquanto órgão superior da Administração Pública e com competência correspondente ao núcleo essencial de função administrativa (artigos 185º e 202º), isso não significa que matéria susceptível de ser objecto de actividade administrativa, como a regulamentação de leis, não possa, igualmente, ser objecto de lei da Assembleia da República'.(ibidem)
Neste acórdão fez-se referência a uma anterior decisão do Tribunal
(acórdão nº 461/87, publicado in Acórdãos, 10º vol., págs. 181 e segs.), em que se afirmara que o legislador, mormente o parlamentar, dispunha de 'uma omnímoda faculdade - constitucionalmente reconhecida - de programar, planificar e racionalizar a actividade administrativa, pré-conformando-a no seu desenvolvimento, e definindo o espaço que ficará à liberdade de critério e à autonomia dos respectivos órgãos e agentes, ou antes pré-ocupando-o (preferência de lei)'.
E pode ainda ler-se no acórdão nº 1/97:
'Porém, mesmo que se reconheça que sempre será inerente ao princípio do Estado de direito democrático a reserva de um núcleo essencial da administração ou do executivo - como condição da limitação do exercício dos poderes pelos órgãos de soberania e da própria necessidade de responsabilização do Governo -, ainda assim a colisão com tal núcleo haveria de implicar uma pura substituição funcional do Executivo, no preciso espaço da sua actividade normal, pelo Parlamento, sem qualquer justificação especial (cf., sobre a referida doutrina do 'núcleo essencial', Pareceres nºs 16/79 e 26/79, em Pareceres da Comissão Constitucional, 8º vol., p. 205 e ss., e 9º vol., p. 131 e ss., respectivamente)' - cfr. ainda sobre o tema as declarações de voto juntas ao acórdão.
Daqui decorre que, mesmo havendo sempre que considerar constitucionalmente um espaço próprio e típico de actuação do Governo, como
'órgão superior da administração pública' (artigo 182º; e cfr. artigo 199º), tal não significa que o legislador parlamentar não possa pré-ocupar esse espaço no uso dos seus amplos 'poderes de conformação' aludidos no citado Acórdão nº
461/87. Ponto é que se contenha no limite 'funcional' que representa a proibição de 'uma pura substituição funcional do Executivo, no preciso espaço da sua actividade normal' (nas palavras do acórdão nº 1/97).
Pois bem: o Tribunal reitera estas afirmações de princípio, e a abordagem que assim fez, nas suas anteriores decisões que ficam referidas, do alcance e das implicações do princípio da separação e da interdependência dos poderes, no que tange às relações entre o poder legislativo e o poder executivo.
Só que, partindo dessas mesmas premissas, também agora - tal como no acórdão nº 1/97 - entende que na situação em apreço não pode considerar-se ultrapassado o dito limite 'funcional' que aquele princípio coloca à actuação do legislativo, nem violado, por consequência, o mesmo princípio.
23. Para chegar a esta conclusão, é logo especialmente relevante, para alguns, a circunstância de a matéria objecto das questionadas disposições do Decreto em apreço haver sido versada pelo Governo, ele próprio, através da forma legislativa (os Decretos-Leis nº 9/97, nº 208/97 e nº 294/97), que o diploma parlamentar em análise visa precisamente revogar parcialmente.
De facto, e assim sendo, importa lembrar que a Constituição prevê no artigo 169º o instituto da apreciação parlamentar de actos legislativos - a anterior ratificação dos decretos-leis -, extensivo, sem limites, a todos os decretos- -leis, 'salvo os aprovados no exercício da competência legislativa exclusiva do Governo', como é 'a matéria respeitante à sua própria organização e funcionamento' (nº 2 do artigo 198º).
Significa isto que os diplomas governamentais referidos estavam sujeitos a essa apreciação parlamentar, e bem poderiam vir a ser, por essa via, objecto de alteração pela Assembleia da República, a qual poderia, inclusivamente, ir ao ponto de, pela mesma via, fazer cessar a sua vigência. O correspondente procedimento, ou seja, esse instituto da apreciação parlamentar
'para efeitos de cessação de vigência ou de alteração', foi, de resto, usado justamente quanto a um desses diplomas - o Decreto-Lei nº 294/97, de 24 de Outubro, que aprova as 'modificações ao contrato de concessão da construção, conservação e exploração de auto-estradas outorgada à BRISA - Auto- -Estradas de Portugal, S.A.' (v. ponto 8.) -, sendo que está pendente de apreciação o correspondente requerimento dos deputados do Grupo Parlamentar do Partido Social-Democrata.
Por outro lado, deve entender-se - pensa igualmente quem perfilha o ponto de vista que vem a ser expendido - que não há fundamento constitucional para restringir o âmbito do instituto da apreciação parlamentar dos decretos-leis, previsto no artigo 169º da Lei Fundamental, à parte desses diplomas que seja inquestionável e necessariamente de natureza legislativa, e para excluí-lo quanto às determinações de natureza tão-só pretendidamente
'administrativa' que os mesmos incluam. Antes - entendem esses - a 'forma' é aqui decisiva, sendo que toda a matéria tratada num qualquer decreto-lei, e que o Governo versou, assim, sob 'forma legislativa', é passível de apreciação parlamentar: a única ressalva a fazer será a do já citado nº 2 do artigo 198º da Constituição.
Ora, esta consideração é particularmente importante no caso, atento o mencionado requerimento de apreciação do Decreto-Lei nº 294/97: é que ela significa que o legislador parlamentar, chamando a si a apreciação de tal diploma, pode eventualmente fazer cessar a sua vigência ou alterá-lo quanto a todo o seu conteúdo e extensão regulamentar, e, em especial, quanto às Bases a ele anexas e que o integram, como é o caso da Base I, que o mesmo legislador - justamente - pretende vir agora e desde já alterar, dando-lhe nova redacção, por via do artigo 4º, nº 2, do Decreto nº 196/VII.
Quem veja as coisas na perspectiva que vem de ser descrita, não poderá, pois, deixar de logo concluir que as questionadas normas deste decreto parlamentar, ao disporem sobre a conservação e a exploração sem cobrança de portagem dos lanços de estrada em causa, alterando o que a esse respeito o Governo havia determinado por decreto-lei, não implicam uma intromissão ilegítima do legislador parlamentar na área da 'administração', ou seja, não se traduzem em violação daquela nuclear 'reserva funcional' desta que, nos termos atrás expostos, sempre, ao menos, se há-de retirar do princípio da separação e da interdependência dos poderes.
24. Também para quem entenda que, podendo haver, em determinadas situações, 'reservas específicas de regulamentação' detidas pelo Governo, mas que, porém, ainda nelas não é totalmente vedada uma actuação legislativa por parte da Assembleia da República, contanto que o Parlamento, ao efectuá- -la, revogue, derrogue ou abrogue, directa ou implicitamente, a competência de regulamentação que, nessas situações, se encontrava deferida ao Governo, ainda assim, no vertente caso, não se descortinaria vício de inconstitucionalidade.
É que, para quem esse entendimento perfilhe, haverá que reconhecer que no Decreto nº 196/VII (cfr. seu artigo 4º, nº 1) a Assembleia da República veio, expressamente, a revogar o citado Decreto-Lei nº 208/97, cujas prescrições teriam atribuído ao Governo a 'reserva' regulamentadora da matéria em causa, assim constituindo, pois, o diploma ora em análise, por via dessa revogação, como que a 'assunção plena', pelo Parlamento, da competência deferida ao Executivo.
25. Finalmente consideram outros - embora entendendo que os apontados limites que a separação de poderes impõe à intervenção do Parlamento na reserva administrativa do Governo (como quer que esta se entenda) não desaparecem, nem se modificam, pelo facto do Governo utilizar a forma de decreto-lei -, que também não é possível afirmar desde logo a ilegitimidade, no plano constitucional, de uma intervenção do legislador parlamentar em matérias, como a de sujeitar ou não a portagens a conservação e exploração de determinadas comunicações públicas rodoviárias, cuja natureza, afinal, é a de taxas - um domínio em que seguramente não está, pois, vedado ao Parlamento (sendo que a fixação dos princípios gerais é agora reserva parlamentar) o exercício de poderes legislativos (cfr.também o acórdão nº 640/95, publicado no Diário da República, nº 17, de 20 de Janeiro de 1996, sobre a natureza da portagem como taxa e a inexistência de 'qualquer reserva parlamentar em matéria de taxas').
Entretanto, a circunstância de tal norma se traduzir na derrogação de um contrato administrativo não lhe retira a 'generalidade', no sentido de susceptibilidade de justificação racional em conformidade com a Constituição, nem a exclui da competência legislativa da Assembleia da República.
26. Seja como for, decisivo é que da presente intervenção do legislador parlamentar o que deriva, no fim de contas, é uma eliminação da cobrança de portagens, uma não sujeição ao regime da taxa de portagem, onde e nos termos em que ela estava prevista, no quadro legal e administrativo traçado no ponto 5., o que não é de molde a pôr em causa o núcleo essencial da função administrativa do Governo. Tanto assim que com tal intromissão o Parlamento não retirou integralmente ao Governo a gestão administrativa da política rodoviária em matéria de auto-estradas (antes e apenas aplicou de modo distinto a respectiva classificação, com eliminação da cobrança de portagem em certos lanços rodoviáros). Não há, assim, uma 'pura substituição funcional do Executivo, no preciso espaço da sua actividade normal, pelo Parlamento' (nas palavras do acórdão nº 1/97).
E não se nega que a intervenção legislativa do Parlamento venha limitar as possibilidades daquela gestão administrativa atribuída constitucionalmente ao Governo. Se este, contudo, discordar dos condicionamentos derivados de tal intervenção, sempre se dirá que mantém o Governo a competência legislativa na matéria.
Em suma: não há assim, uma intromissão intolerável da Assembleia da República na esfera puramente administrativa do Governo, em domínios que são próprios da sua actividade executiva (como sejam, a adjudicação de contratos de concessão da construção, conservação e exploração de auto-estradas em regime de portagem, no âmbito de um concurso público internacional, ou a outorga de contratos administrativos), e, por consequência, não se detecta um desrespeito dos 'limites constitucionais de natureza funcional à liberdade e extensão de conformação do legislador' (expressão de Gomes Canotilho, em anotação ao acórdão nº 1/97, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 129º, pág. 82; veja-se ainda Jorge Reis Novais, Separação de Poderes e Limites da Competência Legislativa da Assembleia da República, Lisboa, 1997, págs. 59 e seguintes).
Com o que, respeitado o limite formal ou o limite 'funcional', atrás aludido, não se mostra violado o princípio da separação e interdependência dos
órgãos de soberania, consignado no artigo 111º, nº 1, nem se revela violado o estatuto constitucional do Governo, consignado no artigo 182º, ambos da Constituição. V
27. Termos em que o Tribunal Constitucional decide quanto ao Decreto nº 196/VII da Assembleia da República:
a) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas do artigo
1º, do 1º segmento do nº 1 do artigo 2º, do nº 2 do artigo 2º e dos nºs 1 e 2 do artigo 4º, em confronto com os princípios consignados nos artigos 2º, 13º, 18º, nº 3 e 62º, nºs 1 e 2, da Constituição;
b) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 2º, em confronto com o princípio da protecção e da segurança jurídica, consagrado no artigo 2º da Constituição;
c) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas dos artigos 1º, 2º e 4º, nºs 1 e 2, em confronto com o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania, consignado no artigo 111º, nº 1, e com o estatuto constitucional do Governo, consignado no artigo 182º, ambos da Constituição;
d) Consequentemente, não se pronunciar pela inconstitucionalidade das restantes normas (artigos 3º e 4º, nº 3). Lisboa, 22 de Janeiro de 1998 Guilherme da Fonseca Assunção Esteves Fernando Alves Correia Bravo Serra Armindo Ribeiro Mendes (Vencido quanto às alíneas b), c) e d), nos termos de declaração de voto junta) Maria Fernanda Palma (vencida quanto às alíneas b), c) e d), nos termos de declaração de voto junta) Alberto Tavares da Costa (vencido quanto às alíneas c) e d) nos termos da declaração de voto). José de Sousa e Brito (vencido quanto à alínea a) nos termos da declaração de voto). Messias Bento (vencido, em parte, quanto à alínea c) da decisão, nos termos da declaração de voto que junto). José Manuel Cardoso da Costa
(Tem voto de conformidade o Exmº Cons. Vitor Nunes de Almeida, que não assina por não estar presente) DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Não acompanhámos as conclusões da maioria do Tribunal Constitucional no que toca à pronúncia pela não inconstitucionalidade dos arts.
1º, 2º e 4º, nºs. 1 e 2, do Decreto da Assembleia da República nº 196/VII, diploma que visa a 'reposição do IC 1 entre Torres Vedras e Leiria e do IP 6 entre Peniche e Santarém como vias sem portagens'.
Daí que tenhamos votado vencido, mas apenas quanto às conclusões constantes das alíneas b), c) e d) do presente acórdão.
Passaremos a indicar as razões que fundamentam tal voto. A) A VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTECÇÃO DA CONFIANÇA E DA SEGURANÇA JURÍDICA PELO ART. 2º DO DECRETO
2. O Presidente da República suscitou a dúvida sobre se a circunstância de estar em curso um concurso público internacional para a escolha de um novo concessionário da auto-estrada do Oeste - concurso esse previsto pelo Decreto-Lei nº 9/97, de 10 de Janeiro, e aberto pelo Despacho Conjunto dos Ministros das Finanças e do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território, de 5 de Fevereiro de 1997 (publicado no Diário da República, II Série, nº 32, de 7 do mesmo mês e ano) - o qual deveria passar a explorar, em regime de portagem, e a conservar os lanços e variantes já construídos e a funcionar, a par da futura actividade de construção, exploração e conservação dos lanços projectados e indicados no mesmo Decreto-Lei nº 9/97, não implicaria que o art. 2º do Decreto da Assembleia da República violasse o princípio da protecção da confiança e da segurança jurídica, aflorado no art. 2º da Constituição. Segundo o Presidente da República, os quatro consórcios concorrentes à concessão da auto-estrada do Oeste apresentaram as suas propostas com base na circunstância de haver portagens na maior parte dos troços de via já construídos e de estarem previstas portagens para as vias a construir, aguardando-se agora o resultado do concurso. Antes da decisão final desse concurso, a Assembleia da República, ao aprovar o Decreto identificado, dispôs que todas as vias rodoviárias correspondentes a todos aqueles lanços ainda não construidos e parte das já construídas deixariam de estar sujeitas ao regime da taxa de portagem, independentemente de virem ou não a ser integradas na referida concessão do Oeste. Esta solução legislativa, se entrar em vigor, implicará na prática a perda de objecto do concurso internacional, tal como foi gizado pelo Governo. Como se refere no texto do acórdão, o Presidente da República admite que nenhum dos quatro consórcios concorrentes seja titular de 'qualquer direito subjectivo fundado numa hipotética vitória naquele concurso'. Mas afirma ser indisputado que esses concorrentes 'têm, seguramente, legítimas expectativas em aceder àquele resultado em função do preenchimento dos critérios de decisão nele fixados e, no mínino, a que as suas candidaturas sejam apreciadas e decididas com base nas regras originariamente fixadas no Despacho que aprovou o regime do concurso. E estas expectativas são tanto mais dignas de protecção quanto a apresentação de uma candidatura a um concurso deste género envolve, dada a necessidade de proceder a estudos de tráfego, estudos de impacto ambiental, projectos rodoviários e análises financeiras, um custo da ordem das centenas de milhares de contos' (requerimento do Presidente da República, II).
Neste contexto descrito no aludido requerimento foi, pois, formulada a questão de saber se o art. 2º do Decreto, ao afectar 'drasticamente as expectativas legitimamente criadas das entidades envolvidas e, particularmente no que se refere aos consórcios concorrentes', não violava o princípio da confiança e da segurança jurídica.
3. A resposta da maioria do Tribunal foi negativa.
Sem deixar de reconhecer que o Decreto-Lei nº 9/97, de 10 de Janeiro, vigora plenamente na ordem jurídica nacional - não tendo sido sujeito a ratificação parlamentar no prazo constitucional (art. 172º da Constituição, na versão anterior à quarta revisão constitucional) - e que o acto administrativo de abertura do concurso e de aprovação do respectivo programa e caderno de encargos havia sido legitimamente praticado à sombra daquele decreto-lei, razão pela qual os concorrentes tinham 'uma legítima expectativa de que o processo de concurso prossiga até ao fim e que o Estado decida, se for caso disso, pela adjudicação a um dos concorrentes da concessão' (Ponto IV.17. do acórdão), aquela maioria considerou que a norma em causa do Decreto, apesar de frustrar tais expectativas, implicando 'que o concurso aberto, nos termos em que o foi,
[fique] praticamente sem objecto' (ibidem), não incorria no vício de inconstitucionalidade.
Depois de transcrever algumas formulações jurisprudenciais sobre o princípio constitucional da protecção da confiança, a tese maioritária nega que a normação impugnada venha a afectar 'expectativas consistentes, constitucionalmente relevantes' (Ponto IV.18. do acórdão) dos concorrentes ao referido concurso internacional, considerando que o próprio figurino do concurso, nas suas concretas regras, e a natureza da situação impedem tal consistência.
Por um lado, e como última ratio ou último argumento, a tese maioritária põe em realce a possibilidade de, havendo prejuízos 'indemnizáveis e relacionados com tal medida legislativa' (Ponto IV.18.) sofridos pelos quatro concorrentes, grandes empresas especializadas, signatárias de 'propostas muito complexas', poderem esses prejuízos ser ressarcidos, no domínio da responsabilidade civil do Estado.
Por outro lado, a mesma posição maioritária afirma que os concorrentes não podiam 'deixar de saber que no processo do concurso o Estado reserva-se o direito de interromper as negociações ou de as dar por concluídas - a qualquer momento da fase de negociações -, exercendo uma discricionariedade administrativa norteada pela «livre apreciação dos objectivos a prosseguir»', do mesmo passo que os próprios concorrentes não estão obrigados 'a manter válidas as suas propostas nas condições previstas do artigo 13º [do Decreto-Lei nº
9/97]'.
Por isso, como decorrência das duas linhas de argumentação referidas, e 'decisivamente', a tese maioritária põe em destaque que 'o que importa é que in casu as expectativas dos concorrentes não têm suficiente consistência para se poder falar numa afectacção «excessivamente gravosa», na linguagem do acórdão do Tribunal Constitucional nº 37/96 ... para se poder falar em mutação do regime que «obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar»' (Ponto IV.18).
De facto, a tese vencedora retira destas razões a conclusão de que os concorrentes 'nem sequer podiam, à partida, ter uma absoluta segurança de que o processo de concurso chegasse a final', acrescendo que 'mesmo que isto acontecesse, nenhum deles teria uma expectativa fundada de ser um dos dois concorrentes a entrar na fase de negociação prevista no artigo 8º [do Decreto-Lei nº 9/97]'. A situação teria, assim, - ao que parece - analogia com a de um sujeito de direito parte de contrato 'de mera promessa de realização de um negócio' (remete-se, no texto do acórdão, para anterior decisão do Tribunal Constitucional, o acórdão nº 365/91).
4. Continua a pensar-se que a tese da maioria não deve ser acolhida.
Em primeiro lugar, e abordando o argumento último sobre a eventualidade de os concorrentes poderem responsabilizar civilmente o Estado pela prática deste acto legislativo, cremos que tal eventualidade não é seguramente determinante para negar ou, em geral, aquilatar da violação das expectativas dos concorrentes e do seu grau de intolerabilidade, susceptível de gerar inconstitucionalidade, por violação do art. 2º da Lei Fundamental. De facto, o argumento da subsistência da responsabilidade civil do Estado, como argumento que afasta a violação intolerável da confiança, prova demais, já que também, em circunstâncias qualificadas de um maior grau de intolerabilidade, a tese vencedora teria de sustentar que a via da responsabilidade civil se mantinha, até por decorrência do art. 22º da Constituição. Simplesmente a responsabilização do Estado pela prática de actos legislativos - conquanto admitida doutrinalmente (por todos, vejam-se Rui Medeiros, Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, Coimbra, 1992, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, págs. 168 e segs.) - é um domínio não tratado legislativamente, que não oferece aos lesados suficientes garantias de pronto ressarcimento (basta acentuar a dúvida da tese maioritária sobre a existência de 'prejuízos indemnizáveis e relacionados com tal medida legislativa'), sujeitando-os a morosos processos no foro administrativo, de resultado problemático. O que é determinante é que tal responsabilidade civil por acto legislativo abrange os casos não só de actuação lícita, como de actuação ilícita do Estado, não servindo a mesma para distinguir quando há licitude ou quando os actos legislativos são, eles próprios, inconstitucionais e, por isso, ilegítimos, nem tão-pouco para dispensar a qualificação desses actos como ilícitos.
Em segundo lugar, a circunstância de o concurso público não estar ainda concluído e de não haver ainda um concorrente ganhador não pode, por si só, afastar a violação do princípio da confiança. Na verdade, importa chamar a atenção para o facto de - contrariamente ao que se afirma no acórdão - o Governo não poder desvincular-se de forma discricionária das obrigações decorrentes da abertura do concurso, pondo termo ao mesmo sem adjudicação da concessão a um dos concorrentes. No texto do acórdão omite-se a importantíssima restrição decorrente do art. 10º do Decreto-Lei nº 9/97: é que o Governo só pode deixar de atribuir a concessão, tendo a possibilidade de interromper as negociações ou de dá-las por concluídas com qualquer dos concorrentes escolhidos, quando, 'de acordo com a sua livre apreciação dos objectivos a prosseguir, os resultados até então obtidos não se mostrem satisfatórios para o interesse público ou se as respostas ou as contrapropostas desses concorrentes forem manifestamente insuficientes ou evasivas ou não forem prestados nos prazos fixados' (é este o texto da lei!). É manifesto que não há uma reserva irrestrita do direito de não adjudicar, sendo contenciosamente sindicável a decisão de não atribuição de concessão ou de interrupção das negociações com qualquer dos concorrentes. Neste contexto não vale como argumento a afirmação - óbvia - de que as expectativas dos concorrentes na fase inicial do concurso são menos fortes do que a expectativa do concorrente a quem tenha sido adjudicada a concessão, no momento temporal anterior à celebração do contrato (supõe-se que a tese maioritária haja tido em vista essa hipótese, ao citar, como lugar paralelo, um passo do acórdão nº 365/91). O que importa saber é se tais expectativas menos fortes, que são afectadas, não por acto do Governo ou do Estado-Administração, mas pela publicação de uma lei parlamentar sobre tal matéria, merecem tutela no plano constitucional, ou seja, se essa afectação é de tal modo gravosa que torne inconstitucional essa lei parlamentar. A resposta dos signatários a tal questão
é claramente afirmativa, como se dirá à frente.
Em terceiro lugar, não pode obviamente argumentar-se com a possibilidade reconhecida pela lei aos concorrentes de se desvincularem unilateralmente do concurso, em caso de decurso de um certo prazo sem adjudicação (18 meses - art. 13º do Decreto-Lei) - por os pressupostos económicos-financeiros da sua proposta poderem, entretanto, ter-se alterado - para concluir que a frustração das expectativas dos mesmos concorrentes pela aprovação da nova legislação parlamentar não pode qualificar-se de gravosa ou intolerável. De facto, confunde-se aqui um direito potestativo do contraente, cujo exercício lhe permite libertar-se de um concurso que não tem andamento e que se arrasta por mais de 18 meses, com as expectativas dos concorrentes interessados num concurso que está a realizar-se com normalidade e que é posto definitivamente em causa pela aprovação de uma determinada lei parlamentar.
Em quarto lugar, parece evidente que a contestação por parte de alguns sectores - cuja representatividade não resulta de qualquer processo constitucional democraticamente reconhecido - da população de uma zona geográfica do País de uma certa solução legislativa não pode justificar que terceiros de boa fé, que apresentaram as suas propostas de contratação ao abrigo de legislação não censurada pelo Parlamento, hajam de ser penalizados por uma legislação aprovada pelo mesmo Parlamento ('pela existência de uma maioria parlamentar que se formou nesse sentido' - Ponto IV.18.), só porque o Governo é apoiado, por um partido sem maioria absoluta na Assembleia da República. É, por isso,impossível traçar qualquer paralelo com a situação tratada no acórdão nº
365/91 (em que estava em causa a actuação do Governo-Legislador, através de uma lei individual, relativamente a uma sociedade comercial em que o Estado era o accionista único e em que o contrato-promessa em causa, cuja invalidade era decretada por esse diploma, carecia da aprovação da assembleia geral da mesma sociedade para ser eficaz).
Por último e no que toca à consistência de expectativas, sempre se dirá - a propósito do acórdão nº 287/90 citado pela tese maioritária - que as expectativas dos concorrentes que investiram 'centenas de milhares de contos'
(como se refere no requerimento do Presidente da República) para se apresentar a esse concurso, dificilmente terão menos consistência do que as expectativas consideradas como inadmissivelmente afectadas pelo artigo 106º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, quando esse preceito dava eficácia imediata à actualização das alçadas, relativamente às partes nos processos que tinham por objecto puros interesses patrimoniais, e que estavam pendentes em todos os tribunais em determinada data...
5. Não procedendo, do nosso ponto de vista, os argumentos da tese maioritária - e sem deixar de reconhecer que a solução da questão de constitucionalidade é complexa, sendo difícil para o julgador ultrapassar em absoluto a sua pré-compreensão - considerámos que o art. 2º do diploma em análise violava a Constituição.
O carácter intolerável da afectação das expectativas resulta, para nós, da reunião do seguinte conjunto de circunstâncias:
- o Governo publicou, no início de Janeiro de 1997, um diploma legal que previa a abertura de concursos públicos internacionais para concepção, construção, exploração e conservação de auto-estradas sujeitas a regime de portagem, sendo certo que os concorrentes deviam auto-financiar-se a partir da cobrança de portagens já vigentes e de outras fontes por si asseguradas, prosseguindo a construção da A-8 (auto-estrada do Oeste) até Leiria, incluindo certas redes viárias anexas;
- este diploma legal não sofreu contestação parlamentar, não tendo sido sujeito a ratificação parlamentar;
- com base no diploma legal, foi aberto um dos concursos internacionais nele previstos, convidando-se empresas especializadas a concorrer, solicitando-se a apresentação de propostas muito complexas e pressupondo que os concorrentes teriam de laboriosamente encontrar as suas fontes de financiamento para executar a conclusão dos novos troços, sendo certo que, tratando-se Portugal de um Estado membro da União Europeia, os concorrentes podiam partir do princípio da seriedade dos propósitos do Legislador e da Administração Pública nacionais, quando o Governo publicou um decreto-lei para o efeito e o mesmo Governo abriu o subsequente concurso;
- depois de apresentadas as propostas e face à contestação da parte dos utentes de um lanço da auto-estrada entretanto construído, a Assembleia da República aprovou um diploma legal que visa abolir o regime de portagens em quase toda a extensão da auto-estrada em causa - para além do lanço 'polémico' - mesmo na parte ainda não construída, juntando-se todos os partidos da oposição contra o partido minoritário que apoia o Governo para alcançar tal desiderato (que o acórdão qualifica de 'medida legislativa da política económica conjuntural'!);
- não ocorreu qualquer mudança de conjuntura económica ou de governo que pudesse justificar tal medida, não se vislumbrando qual o interesse público indiscutivelmente predominante que permitiria justificar essa coligação parlamentar 'negativa' que procedeu à abolição das portagens, sendo certo que o mesmo regime de portagens se mantém na maior parte dos restantes lanços de auto-estradas já construídas no País e que a concessão da exploração dos lanços a construir era a contrapartida para o adjudicatário construir a suas expensas esses lanços e variantes, parecendo desproporcionado eliminar as portagens quanto à parte ainda a construir.
Neste quadro de afectação de expectativas dos concorrentes ao concurso público internacional e da própria credibilidade do Estado Português como agente económico e parceiro contratual (o que tem significativa expressão na dimensão da segurança jurídica) entendemos que o art. 2º é inconstitucional por violação do princípio da segurança ou da protecção da confiança ínsito no princípio de Estado de direito democrático (artº 2º da Constituição), sendo aplicável à situação idêntico juízo formulado no acórdão nº 1/97 (in Diário da República, I Série- -A, nº 54 de 5 de Março de 1997), no passo transcrito no requerimento do Presidente da República.
6. O presente juízo de inconstitucionalidade não considera - e, nesse ponto, acompanhamos a tese maioritária - a afectação de outras expectativas de natureza económica, nomeadamente de agentes económicos que fornecem bens e serviços nas obras de construção de redes viárias, dado tais expectativas serem difusas, não sendo juridicamente fundadas, e podendo mesmo não ocorrer qualquer frustração se a construção dessas redes vier a ser assegurada directamente pelo Estado, não obstante a onerosidade da obra.
B) A VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES PELOS ARTS. 1º, 2º, NºS. 1 E
2, E 4º, NºS. 1 E 2, DO DECRETO-LEI Nº 196/VII
7. Já se referiu que a maioria do Tribunal Constitucional sustentou que os arts. 1º, 2º, nºs. 1 e 2, e 4º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei nº
196/VII da Assembleia da República não violavam o princípio constitucional de separação de poderes.
Apesar de a lei parlamentar, se entrar em vigor, ir revogar, total ou parcialmente, dois decretos-leis do Governo [o que integrou, a título transitório, o lanço Torres Vedras (Sul) - Bombarral na exploração da BRISA e o que manteve tal troço na Base I das bases do contrato de concessão da mesma BRISA, aprovadas pelo diploma] e afectar a subsistência de um concurso público internacional para escolha do concessionário que irá construir e explorar os novos lanços da auto-estrada do Oeste, para além de modificar um contrato administrativo de concessão entretanto assinado pelo Governo e pela BRISA, a maioria do Tribunal, com fundamentos heterogéneos que acabaram por se aglutinar, negou que houvesse violação do princípio de separação. A argumentação produzida, direccionada em linhas divergentes, não logrou abalar a posição assumida pelos ora signatários, antes fortalecendo a sua convicção na bondade da mesma posição.
8. Em todo o debate sobre esta questão, esteve sempre presente um precedente recente, o do acórdão nº 1/97 (publicado no Diário da República, I Série-A, nº 54, de 5 de Março de 1997), em que se apreciou a constitucionalidade de uma lei parlamentar destinada a permitir que certos candidatos ao ensino superior, não colocados nas fases do concurso nacional organizado para o efeito, pudessem entrar na Universidade, desde que tivessem obtido, na sequência dos exames de Setembro de 1996, 'nota de candidatura superior em cada par curso/estabelecimento ao último colocado para o mesmo par curso/estabelecimento' na 1ª fase do concurso. Precisamente porque a maioria dos Juízes do Tribunal Constitucional não considerou que o Parlamento houvesse violado então o princípio da separação de poderes, compreende-se facilmente que se tenham confrontado ambos os diplomas objecto de fiscalização preventiva, procurando descobrir os pontos de afinidade e os pontos de afastamento.
9. No memorando apresentado pelo primeiro signatário desta declaração de voto, como primitivo relator, votado positivamente pelo segundo, argumentou-se do seguinte modo no sentido da inconstitucionalidade destas normas:
«Em processo de fiscalização preventiva recente e a propósito de uma lei parlamentar que visara criar vagas adicionais no acesso ao ensino superior público, teve ocasião o Tribunal Constitucional de afrontar o âmbito do princípio de separação e interdependência de poderes e debater a questão de saber se poderia aceitar-se a existância de uma verdadeira reserva constitucional de administração (acórdão nº 1/97, in Diário da República, I Série-A, nº 54, de 5 de Março de 1997). Depois da data de assinatura desse acórdão ocorreu uma alteração significativa do texto constitucional que importa destacar. A Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, modificou a redacção do art. 2º da Constituição, passando a indicar como uma das bases em que assenta a República Portuguesa, enquanto Estado de direito democrático, a 'separação e interdependência de poderes'. A modificação operada há-de revestir-se de claro sentido reforçativo, porquanto tal introdução visou, por um lado, a integração da ideia de separação de poderes, como sub-princípio, no princípio do Estado de direito, quando, na anterior versão da Constituição, este princípio aparecia apenas a propósito da organização do poder político e acentuava o aspecto da interdependência dos órgãos de soberania previstos na Constituição (art. 114º, nº 1, a que correponde o art. 111º, nº 1, da actual versão) e, por outro lado pretendeu acolher a tese de que tem de existir uma verdadeira separação de poderes, no sentido de correlação de funções e de órgãos, e não uma mera necessidade de os órgãos de soberania deverem 'observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição (cfr. o art. 111º, nº 1, e ainda o art. 288º, alínea j) da Constituição). De um ponto de vista histórico, a modificação em análise foi aprovada a partir de uma proposta do PSD de explicitação no art. 2º da Lei Fundamental do princípio da 'divisão e equilíbrio de poderes' (cfr. Uma Constituição Moderna para Portugal, texto anotado por Luis Marques Guedes, 1997, págs. 73-74; Constituição da República Portuguesa, 4ª Revisão, Setembro de 97, prefácio e anotação por Jorge Lacão, Lisboa, 1997, pág.
97). Admitindo, porém, que a alteração referida não inova decisivamente, cabe perguntar se ocorre a denunciada violação. No acórdão nº 1/97, a maioria do Tribunal Constitucional considerou que o decreto da Assembleia da República em apreciação não era inconstitucional por violação do princípio de separação de poderes, nem violava uma alegada reserva geral de administração decorrente, segundo certas orientações, do art. 114º, nº
1, da versão então em vigor da Constituição. Afirmou então a maioria do Tribunal que não decorria seguramente desse preceito constitucional, em conjugação com o art. 2º da mesma versão, tal reserva geral de administração, pois que:
'[a] separação e interdependência dos órgãos de soberania aí previstos exprime um esquema relacional de competências, funções, tarefas e responsabilidades dos
órgãos do Estado, destinado a assegurar, simultaneamente, a referida medida jurídica do poder e um princípio de responsabilidade dos órgãos de soberania
(...).' (Ponto II_B), 8) E, mais à frente, afirmou-se que:
'... de modo decisivo, mesmo sendo constitucionalmente atribuído ao Governo o núcleo essencial da função administrativa, enquanto órgão superior da Administração Pública e com competência correspondente ao núcleo essencial de função administrativa (artigos 185º e 202º), isso não significa que matéria susceptível de ser objecto de actividade administrativa, como a regulamentação de leis, não possa, igualmente, ser objecto de lei da Assembleia da República.'
(ibidem) Neste acórdão fez-se referência a uma anterior decisão do Tribunal (acórdão nº
461/87, publicado in Acórdãos, 10º vol., págs. 181 e segs.) M que se afirmara que o legislador, mormente o parlamentar, dispunha de 'uma omnímoda faculdade - constitucionalmente reconhecida - de programar, planificar e racionalizar a actividade administrativa, pré-conformando-a no seu desenvolvimento, e definindo o espaço que ficará à liberdade de critério e à autonomia dos respectivos órgãos e agentes, ou antes pré-ocupando-o (preferência de lei)'. Em contrapartida, a tese minoritária, exposta em diversos votos de vencido, aceitou ou a ideia de 'existência de um equilíbrio que deve assistir à interacção entre os vários órgãos de soberania e que decorre daquele princípio organizatório fundamental das relações estaduais' - o qual teria sido posto em crise pela legislação aprovada no Parlamento - ou considerou que 'ao Parlamento compete, em princípio, a função de fazer leis (a legis latio); a função executiva (legis executio) - isto é, o governar e administrar - cabe, em princípio também, ao Governo', 'sendo inconstitucional o chamado governo de assembleia'; ou ainda que a separação de poderes era conatural ao aspecto basilar da divisão de poderes, característica de uma filosofia antiabsolutista e de moderação, sendo posto em causa que o Parlamento pudesse praticar actos administrativos de segundo grau, destinados a substituir actos administrativos perfeitos e eficazes, postergando-se o núcleo essencial da competência administrativa do Governo. Num outro voto de vencido, afirmou-se que, no caso analisado, o Parlamento havia criado uma 'perversão' consistente na possibilidade de se 'formarem planos de vida sobre pressupostos jurídicos que não permanecem, a de se impor às universidades uma ordenação a regras imprevistas, a de abrir espaço à desigualdade'. E outro Juiz sustentou que, in casu, tinha havido, pelo menos, uma actuação parlamentar imoderada que havia violado o princípio da separação, muito embora se tratasse apenas de introdução de uma 'pontual alteração a uma dada regulamentação da legislação preexistente que, nos termos dessa mesma legislação, estava cometida ao Governo' e sem que, minimamente, se houvesse pretendido revogar a primitiva legislação (remete-se para os votos dos Conselheiros Tavares da Costa, Messias Bento, Alves Correia, Assunção Esteves e Bravo Serra; veja-se ainda a declaração de voto do Conselheiro Presidente Cardoso da Costa). No presente processo, importa levar em conta que a Assembleia da República pretende alterar, através do Decreto em análise, actos administrativos praticados pelo Governo com eficácia externa e um contrato por este celebrado com uma sociedade de estatuto de direito privado. De facto, por um lado, a Assembleia da República estabelece inovatoriamente que certas vias rodoviárias da A 8 'e o seu prolongamento já previsto, até Leiria, bem como o troço do IP 6 entre Peniche e Santarém não ficam sujeitas ao regime de taxas de portagem' (art. 2º, nº 1, do Decreto nº 196/VII, que remete para o art. 1º deste diploma), sem que concomitantemente revogue o Decreto-Lei nº 9/97, o qual 'estabelece o regime de realização de concurso com vista à concessão de lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados nas zonas norte e oeste, identificados nos anexos que fazem parte integrante do presente diploma', sendo certo que este diploma assentava a futura concessão da construção, exploração e conservação daquelas vias no regime de portagem (art. 2º, nº 1, deste diploma). O mesmo Decreto da Assembleia da República não só elimina o regime de portagens na futura concessão Oeste, como ainda indica ao Governo que deve prosseguir com o concurso já lançado (art. 2º, nº 2 - 'O disposto no número anterior aplica-se quer no período transitório referido no artigo anterior, quer posteriormente à concessão Oeste aí referida, venham ou não as mencionadas vias rodoviárias a ser integradas nesta concessão'; no art. 1º alude-se 'à decisão sobre a eventual atribuição da concessão Oeste, prevista no Decreto-Lei nº 9/97, de 10 de Janeiro'). Por outro lado, a Assembleia da República propõe-se alterar, por lei, uma base do contrato de concessão constante do anexo ao Decreto-Lei nº 294/97, de 24 de Outubro, retirando do objecto de concessão, para efeitos de conservação e exploração, o lanço Torres Vedras (Sul) - Bombarral, com a extensão de 24 Km,
(art. 4º, nº 2, do referido Decreto), do mesmo passo que, pelo nº 1 do art. 4º do Decreto nº 196/VII, visa revogar o Decreto-Lei nº 208/97, de 13 de Agosto
(diploma que integrara provisoriamente na concessão da BRISA, e mediante prévio acordo desta, 'para efeitos de conservação e exploração', o referido lanço), e pretende ainda integrar transitoriamente naquela concessão, mas tão-só para efeitos de conservação, o mesmo lanço de Torres Vedras (Sul) - Bombarral, impondo que um ente da Administração indirecta do Estado, a JAE, celebre um acordo com a BRISA onde serão reguladas 'as condições financeiras para a conservação' dos lanços Torres Vedras (Sul) - Bombarral, Torres Vedras (Norte) - Bombarral, bem como o sublanço Torres Vedras (Sul) - Torres Vedras (Norte) - Variante de Torres Vedras, da AE 8 - CRIL - Leiria' (art. 3º do Decreto). Ora, afigura-se que é indiscutível que os arts. 2º, nºs. 1 e 2, e 4º, nºs. 1 e
2, são inconstitucionais, por violação do disposto nos arts. 2º, 111º, nº 1,
182º, e 199º, alínea g), da Constituição. De facto, para aqueles que votaram vencido no acórdão nº 1/97, relativamente à decisão de não inconstitucionalidade por violação dos arts. 114º, nº 1, e 185º da versão então vigente da Constituição, a inconstitucionalidade é ainda mais nítida no presente processo, visto que a Assembleia da República pretende, por um lado, alterar, através de acto formalmente legislativo, um acto administrativo praticado pelo Governo (o despacho conjunto de aprovação do programa de concurso e do caderno de encargos 'relativos ao concurso público internacional para a concessão de lanços de auto-estrada na zona oeste de Portugal') - eliminando o regime de portagens que constituía o pressuposto estabelecido para a concessão pelo Decreto-Lei nº 9/97, à sombra do qual foi praticado esse acto administrativo - e, por outro lado, suprimir parte de uma cláusula do contrato remodelado de concessão já outorgado entre o Governo, em representação do Estado Português, e a BRISA, retirando da concessão de exploração o aludido lanço Torres Vedras (Sul) - Bombarral, mas mantendo na concessão, para efeitos de conservação, esse lanço e outros, relegando para futuro contrato a celebrar entre a concessionária e a JAE o estabelecimento das condições financeiras da nova concessão. Através destas normas, o Decreto nº
196/VII torna-se um instrumento jurídico de natureza executiva, revogando actos administrativos e cláusulas contratuais da responsabilidade do Governo, invertendo uma ideia de 'conjugação harmoniosa das relações (de paridade) entre dois órgãos de soberania', em termos de ser razoável colocar a questão de saber como poderá o Governo ser parlamentarmente responsabilizado pelas consequências futuras da eventual celebração ou não celebração do contrato de concessão Oeste e da imediata eliminação de portagens e alteração do contrato de concessão com a Brisa. De facto, e tal como se escreveu em declaração de voto junta ao acórdão nº 1/97, 'a injunção ao Governo, mediante a criação de regras para além das já existentes e a imposição de determinada actuação, à revelia da responsabilidade legislativa e política deste órgão no sector, é suficientemente relevante para afectar a moderação que é a raiz e essência do princípio da «separação e interdependência» dos órgãos de soberania e da «autonomia destes»' (ou, utilizando palavras de outras declarações de voto, a Assembleia da República veio versar 'matéria que estava ocupada pelo Governo', determinando a alteração de um concurso público internacional em curso, para o qual definiu novas regras; ou ainda, alterou legislação do Governo através de diploma que teve como 'efeito típico a alteração do conteúdo de decisões do órgão da Administração Pública para o efeito competente, adoptadas na sequência de um complexo procedimento administrativo', ou ainda este Decreto não pode conceber-se como uma lei-medida porque não tem a 'novidade temática' dessa figura). Mas também para os que integraram a tese vencedora no acórdão nº 1/97 a conclusão no sentido da inconstitucionalidade parece acabar por se impor no presente processo, mesmo sem se conceder especial relevância à nova redacção do art. 2º da Constituição. De facto, no caso sub judicio não pode dizer-se que a Assembleia da República vise criar uma regulação legal que, pela sua
'excepcionalidade, retroactividade e carácter inovatório' represente 'o exercício da faculdade de definir e pré-conformar o espaço de manobra dos órgãos da Administração', sem se sobrepor materialmente ao poder regulamentar anteriormente conferido ao Governo. Pelo contrário, a Assembleia não censurou a opção legislativa do Governo, corporizada no Decreto-Lei nº 9/97, permitiu que fosse lançado à sombra deste diploma um concurso internacional de concessão, na medida em que não recusou a ratificação ao Decreto-Lei referido, e, já depois de apresentadas quatro candidaturas e antes de decisão final do concurso, sobrepõe-se à opção do Governo e pretende eliminar o regime de portagens que confere, de forma exclusiva, fundamento económico e jurídico à opção legislativa e administrativa do Governo. Para além disso, ao pretender eliminar as portagens do lanço Torres Vedras (Sul) - Bombarral, a Assembleia da República quer alterar um contrato de concessão já celebrado entre o Governo e a BRISA, prescindindo de qualquer acordo de vontades entre duas pessoas colectivas, o Estado Português, representado pelo Governo, e uma sociedade comercial anónima regida pelo direito privado. Existe, assim, uma cobertura 'com a forma de lei' de uma 'pura actividade administrativa' (processo negocial de uma futura concessão; alteração de um contrato de concessão já existente), com consequências evidentes no futuro desenvolvimento do plano rodoviário traçado pelo Governo, em termos de se não poder falar a este propósito de 'uma esporádica e excepcional limitação do espaço de manobra do Governo', ao invés do que foi entendido no acórdão nº 1/97. Há, assim, uma intromissão intolerável da Assembleia da República na esfera puramente administrativa do Governo, não respeitando um campo ou espaço bem delimitado da sua actividade executiva, a saber, a negociação de contratos de concessão da construção, exploração e conservação de auto-estradas em regime de portagens no âmbito de um concurso público internacional, ou a alteração subsequente de cláusulas de contratos administrativos já assinados pelo Governo, desrespeitando 'limites constitucionais de natureza funcional à liberdade e extensão de conformação do legislador' (expressão de Gomes Canotilho, em anotação ao acórdão nº 1/97, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano
129º, pág. 82; veja-se ainda Jorge Reis Novais, Separação de Poderes e Limites da Competência Legislativa da Assembleia da República, Lisboa, 1997, págs. 66 e seguintes). A interferência parlamentar relativamente ao acto administrativo de abertura do concurso internacional e de aprovação de certo caderno de encargos e, sobretudo, a alteração de um contrato anteriormente celebrado pelo Executivo com base na legislação em vigor, implicam que a Assembleia da República venha a chamar a si, se o decreto se transformar em lei, a execução do plano rodoviário aprovado pelo Governo, o que se traduz numa situação perfeitamente idêntica à que ocorreria se uma lei da Assembleia da República formalizasse um acto materialmente administrativo, como seja a nomeação de um funcionário público ou a decisão de transigir em pleito contra o Estado, pendente em juízo.»
10. Contra a posição expressa no memorando, os Juízes que vierem a formar maioria - partindo de pontos de vista opostos no que toca às implicações e âmbito do princípio constitucional da separação de poderes acolhidos pela nossa Lei Fundamental - apresentaram diversos argumentos que se acham agora coligidos no acórdão.
Passar-se-á a analisar, um por um, tais argumentos.
11. Assim, uma primeira linha de argumentação põe em destaque a circunstância de dois dos três decretos-leis directamente afectados pela futura lei parlamentar estarem ainda sujeitos a apreciação parlamentar nos termos do art. 169º da Constituição (texto resultante da quarta revisão constitucional; anote-se que quer o Decreto-Lei nº 208/97, de 13 de Agosto, quer o Decreto-Lei nº 294/97, de 24 de Outubro, foram aprovados no domínio de vigência da Constituição antes de publicada a Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, muito embora apenas o segundo destes diplomas tenha sido publicado após a entrada em vigor da referida Lei Constitucional nº 1/97 e só ele tenha sido sujeito a apreciação parlamentar). Em virtude de tal eventualidade, não teria ainda ocorrido uma consolidação de situações, podendo o Parlamento chamar a si a matéria das condições de exploração do troço Torres Vedras (Sul) - Bombarral da A 8, tendo, assim, sido determinante que a matéria objecto das questionadas disposições do Decreto nº 196/VII houvesse 'sido versada pelo Governo, ele próprio, através da forma legislativa (os Decretos-Leis nº 9/97, nº
208/97 e nº 294/97), que o diploma parlamentar em análise visa precisamente revogar parcialmente' (ponto IV.23. do acórdão).
Esta argumentação afigura-se claramente improcedente.
Na verdade, a opção pela forma legislativa não pode penalizar o Governo, no exercício da sua actividade administrativa. Deve mesmo chamar-se a atenção para a circunstância de a integração, a título transitório, do lanço Torres Vedras (Sul) - Bombarral da auto-estrada A 8 na concessão da BRISA se traduzir num puro acto de natureza administrativa que havia sido, em casos análogos, objecto de resolução do Conselho de Ministros ou de decreto regulamentar (a integração do lanço Malveira - Torres Vedras na concessão da BRISA foi determinada em 1993 pela Resolução do Conselho de Ministros nº 46/93, publicada no Diário da República, I Série-B, nº 126, de 31 de Maio, tendo o Governo invocado como norma habilitadora a Base XLV anexa ao Decreto-Lei nº
315/91, de 20 de Agosto; em contrapartida a retirada de concessão da BRISA da construção, conservação e exploração, em regime de portagem, do lanço de auto-estrada entre Porto e Famalicão foi determinada pelo Decreto Regulamentar nº 69/84, de 29 de Agosto). A utilização da forma de decreto-lei, ainda que implique a sujeição a ratificação parlamentar (art. 172º do anterior texto da Constituição) ou a apreciação parlamentar (na terminologia do novo art. 169º da Constituição), não impede que o Governo possa repetir o acto de natureza não legislativa, usando uma forma de acto não legislativo, quando seja aprovada a cessação parlamentar da vigência daquele decreto-lei. Quer dizer, mesmo considerando que a Assembleia da República não está limitada, no seu poder de apreciação, à 'parte legislativa' de qualquer decreto-lei (neste sentido, refira-se o entendimento de Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição cit., 3ª ed., pág. 696, autores que sustentam que o poder do órgão parlamentar
'não depende da natureza normativa do decreto-lei, bastando-se com a sua natureza legislativa formal'), a verdade é que o Governo seria livre de determinar de novo a integração daquele lanço na concessão da BRISA, sem correr o risco de se sujeitar à apreciação parlamentar de um diploma seu, desde que se abstivesse de utilizar a forma de decreto-lei.
Em especial no que tange ao diploma legal que aprovou as bases da concessão à BRISA - trata-se do citado Decreto-Lei nº 294/97, de 24 de Outubro, o qual foi sujeito a apreciação parlamentar por iniciativa de Deputados do PPD/PSD, como se dá notícia no acórdão - é especialmente significativo que no seu preâmbulo se refira que 'as bases anexas consubstanciam o resultado da negociação mantida com a concessionária', explicitando-se mesmo que 'o carácter contratual da concessão não é prejudicado pela integração no presente diploma das bases anexas, cuja necessidade resulta da circunstância de algumas dessas bases apresentarem eficácia externa relativamente às partes no contrato'. Deve, aliás, notar-se que só em 1985 tais bases passaram a constar de anexo a um decreto-lei, tendo anteriormente sido aprovadas por diploma regulamentar
(Decreto nº 467/72, de 22 de Novembro, alterado pelos Decretos Regulamentares nºs. 5/81, de 23 de Janeiro, 5/82, de 2 de Fevereiro, e 69/84, de 29 de Agosto).
Face ao exposto, bem se compreende que a eventualidade de sujeição à apreciação parlamentar do Decreto-Lei nº 294/97 só possa servir de argumento decisivo quanto às matérias de natureza legislativa, mas não quanto aquelas que podem constar de diploma regulamentar, de cariz administrativo. É seguro que a aprovação da base de alteração ao objecto da concessão não carecia de diploma legislativo, como atrás se demonstrou. A 'atracção' da forma legislativa só poderia acarretar, como consequência, que a eventual cessação de vigência do Decreto-Lei nº 294/97, por resolução da Assembleia da República no âmbito do instituto da apreciação parlamentar, levasse o Governo a aprovar essa base de integração, a título transitório, na concessão da BRISA por diploma regulamentar
(note-se, aliás, que a cobrança de portagens quanto a esse troço já estava autorizada pelo Decreto-Lei nº 9/97, de 10 de Janeiro, integrado pelo referido Despacho Conjunto).
De resto, não pode deixar de estranhar-se que os Juízes que perfilharam este ponto de vista agora criticado hajam ignorado totalmente a circunstância de já ter sido outorgado um novo contrato de concessão entre o Estado e a BRISA, ao abrigo das bases aprovadas pelo Decreto-Lei nº 294/97, na data em que foi pedida a apreciação parlamentar deste último diploma (cfr. pontos I.3. e II.8.), sendo certo que o pedido de apreciação parlamentar não tinha, in casu, eficácia suspensiva da vigência do diploma legal (cfr. art.
169º, nº 2 da Constituição, a contrario sensu), sendo, de resto, imprevisível qual a sorte do pedido de apreciação em causa.
Não pode, pois, aceitar-se a afirmação pretoriana constante do acórdão de 'que as questionadas normas deste decreto parlamentar [Decreto nº
196/VII], ao disporem sobre a conservação e exploração sem cobrança de portagens dos lanços de estrada em causa, alterando o que a esse respeito o Governo havia determinado por decreto-lei, não implicam uma intromissão ilegítima do legislador parlamentar na área da «administração», ou seja, não se traduzem em violação daquela nuclear «reserva funcional» desta que, nos termos atrás expostos, sempre, ao menos, se há-de retirar do princípio da separação e da interdependência dos poderes' (Ponto IV.23.). Na verdade, pela mera sujeição a apreciação parlamentar não é possivel sustentar que a Assembleia da República possa legitimamente pôr em causa um contrato administrativo anteriormente outorgado pelo Governo. A derrogação pela lei parlamentar dum contrato administrativo de concessão anteriormente celebrado pelo Governo não pode deixar de violar a nuclear «reserva funcional» do Governo, enquanto órgão superior da Administração Pública que exprime a vontade funcional do Estado quando são celebrados contratos administrativos.
12. Tão-pouco se pode aceitar a argumentação daqueles que sustentam que, no presente caso, a circunstância de a Assembleia da República pretender, através do Decreto nº 196/VII (cfr. art. 4º, nº 1), revogar o Decreto-Lei nº 208/97, de 13 de Agosto, bastaria para afastar a inconstitucionalidade do diploma, visto que a Assembleia da República teria, assim, operado a 'assunção plena' pelo Parlamento da competência deferida ao Executivo, eliminando a possibilidade de o mesmo Executivo aprovar regulamentos contrários à nova normação.
Esta posição escamoteia que o Decreto nº 196/VII não altera numa vírgula o Decreto-Lei nº 9/97, de 10 de Janeiro, o qual previu uma concessão, com sujeição ao regime de portagem, de troços de auto-estrada a construir pelo novo concessionário, tendo sido fixado por despacho administrativo, ao abrigo daquele diploma, que a exploração de parte dos troços já construídos se faria segundo o regime de portagem. Nessa medida não se vê como a revogação do Decreto-Lei nº 208/97, - o qual, repete-se, se limitou a integrar, a título transitório, certo troço de auto-estrada na concessão da BRISA, medida que foi, depois, substituída pela nova Base I do Contrato de Concessão com a BRISA, aprovado pelo referido Decreto-Lei nº 294/97, e que, assim, perdeu relevância jurídica - tem a virtualidade de salvar a constitucionalidade de um diploma que veio agora determinar que não haverá portagens nas vias a construir da auto-estrada do Oeste e que deixarão de ser cobradas desde já portagens apenas no troço Torres Vedras (Sul) - Bombarral, sem afectar outras vias da parte construída da auto-estrada do Oeste em que continuam a ser cobradas portagens...
13. Uma terceira linha de argumentação admite que a circunstância de o Governo ter praticado actos administrativos sob a forma de decreto-lei não altera, por si só, os limites que o princípio da separação de poderes impõe à intervenção do Parlamento. Mas sustenta que a aceitação desse ponto de partida não implica necessariamente a conclusão sobre a ilegitimidade, no plano constitucional, de uma intervenção do legislador parlamentar em matérias que cabem nas competências concorrentes da Assembleia da República e do Governo (será o caso da fixação do regime de taxas de exploração de certas vias rodoviárias ou até da classificação das mesmas vias - cfr. Decreto-Lei nº
380/85, de 26 de Setembro).
Afrontando o problema de a norma do art. 4º, nº 2, do Decreto nº
196/VII se traduzir numa derrogação do contrato administrativo anteriormente celebrado entre o Estado e a BRISA, esta linha de argumentação nega que tal derrogação retire a 'generalidade' à norma em causa ou a exclua da competência legislativa da Assembleia da República. Para substanciar tal afirmação, considera-se aí decisivo que o que resulta da intervenção parlamentar é 'uma eliminação da cobrança de portagens, uma não sujeição ao regime da taxa de portagem, onde e nos termos em que ela estava prevista no quadro legal e administrativo traçado no ponto 5 [do acórdão], o que não é de molde a pôr em causa o núcleo essencial da função administrativa do Governo' (ponto IV.26. do acórdão).
Não pode aceitar-se esta linha de argumentação, a qual não demonstra que tenha havido alteração de um puro critério normativo em matéria de portagens
(há uma decisão administrativa de não cobrar portagens em certas vias) e, por outro lado, não explica por que razão não se está a pôr aí em causa o núcleo essencial da função administrativa do Governo, apesar de ser intuitivo que uma
'coligação negativa' das oposições parlamentares vai constranger a acção administrativa do Governo num domínio económico-social altamente sensível, não permitindo que, no futuro, este Governo seja politicamente responsabilizado pelas opções que tomou no domínio da política rodoviária e pelo modo como as executou.
Diferentemente da situação contemplada no acórdão nº 1/97, está-se aqui perante uma intencional intromissão da Assembleia da República no espaço funcional da acção governativa. No caso apreciado por esse acórdão, a intenção do legislador parlamentar era supostamente a de restabelecer a igualdade entre os candidatos ao concurso de acesso ao ensino superior - a pretensão de corrigir os critérios concretos adoptados na selecção desses candidatos em nome da igualdade, por causa de alegadas anomalias verificadas nas provas de exame dos candidatos - não se pondo em causa, por uma intervenção pontual e irreptível, a continuidade da acção governativa. No presente caso, porém, não é isso que se vai passar: é a continuidade da política futura do Governo em matéria rodoviária que é posta em causa pela Assembleia da República, a qual procede à substituição desta por uma outra política. A atitude de presente maioria de Deputados não se explica pela mera intenção de correcção de situações passadas por força de uma suposta justiça com objectivos de equilibrar um determinado sistema [legal ou de acção política] já existente, antes se configura como absolutamente voltada para o futuro e desprovida de qualquer justificação especial. Faltam aqui as características de excepcionalidade e correcção de um critério normativo que levaram o Tribunal Constitucional a considerar, no acórdão no 1/97, que a normação então em causa não invadia o núcleo essencial das competências funcionais do Governo.
Admitindo que a fixação de taxas de portagem é matéria que não está excluída da competência legislativa da Assembleia da República, a linha de argumentação em análise desconsidera o facto de que o Decreto-Lei nº 9/97 havia criado um regime de exploração da auto-estrada do Oeste que não foi sujeito a ratificação parlamentar em devido tempo, à sombra do qual decorrem concursos públicos internacionais para escolha dos futuros concessionários que assegurem o desenvolvimento do projecto rodoviário estabelecido pelo Governo. Ora, a intervenção casuística do Parlamento para eliminar todas as portagens - não só as já cobradas pela utilização do troço Torres Vedras (Sul) - Bombarral, como as que viriam a ser cobradas logo que construídos os troços já projectados - traduz, por um lado, uma intromissão de carácter concreto e retroactivo numa regulação de interesses já acordada entre o Governo e a concessionária BRISA, e formalizada em contrato devidamente assinado, e, por outro lado, compromete seriamente o plano de actuação governamental assumido em execução do citado Decreto-Lei nº 9/97. Não pode, assim, compreender-se a afirmação não fundamentada de que o Parlamento, com tal intromissão, 'não retirou integralmente ao Governo a gestão administrativa da política rodoviária em matéria de auto-estrada (antes e apenas aplicou de modo distinto a respectiva classificação com a consequência da eliminação da cobrança de portagem em certos lanços)'. De facto, se a Assembleia da República continuar a eliminar, por lei, para o futuro, a cobrança de outras portagens pela utilização de troços de auto-estradas, por causa de contestações populares, valerá igualmente a afirmação formal de que não se iria retirar ao Governo a gestão administrativa da política rodoviária em matéria de auto-estradas, visto que alguma entidade de Administração Pública se haveria de ocupar com a reparação e conservação dessas vias?
Tão-pouco o argumento sibilinamente avançado de que o Governo
'mantém... a competência legislativa na matéria' (Ponto IV.26.) ou seja - para se ser claro - de que o Governo pode responder à Assembleia da República, revogando por decreto-lei a lei parlamentar, afasta a objecção de inconstitucionalidade. Por um lado, tal revogação não depende só do Governo, visto que o decreto-lei revogatório teria de ser promulgado pelo Presidente da República, sendo, por um lado, altamente improvável a promulgação sucessiva de diplomas opostos, e, por outro lado (e decisivamente!) sendo insuperável pelo Governo o eventual veto daquele. Acresce que, ainda que viesse a ser revogada tal lei parlamentar por subsequente decreto-lei do Governo, sem alteração da composição da Assembleia da República, o mecanismo da apreciação parlamentar do decreto-lei revogatório reduziria a bem pouco a iniciativa governamental, restando apenas um conflito político, sem qualquer relevância em termos de fiscalização de constitucionalidade de normas.
Contrariamente ao que se afirma, há uma intromissão intolerável da Assembleia da República na esfera puramente administrativa do Governo pois que, por um lado, o órgão parlamentar derroga, com eficácia retroactiva, contratos administrativos celebrados pelo Governo, ao abrigo de legislação já publicada, e, por outro lado, põe em causa uma forma de gestão, projectada pelo Governo, da política quanto a certas vias rodoviárias eliminando, no plano económico, o objecto de um concurso público internacional já aberto, visto que o financiamento da construção de novas vias pelo futuro concessionário havia de decorrer, em larguíssima medida, da percepção das portagens dos troços já construídos. Aliás, no acórdão qualifica-se noutro passo o Decreto nº 196/VII
(ou, mais correctamente, a lei em que venha a transformar-se, após a promulgação) de 'medida legislativa de política económica conjuntural (recte: de política rodoviária)' (Ponto IV.18.), não se percebendo como tal medida legislativa da Assembleia da República - que substitui outras medidas legislativas oriundas do Governo - se pode sobrepor a actos administrativos emanados do Governo e a contratos outorgados pelo mesmo Governo e, mesmo assim, se afirme, tranquilamente, que não há uma intromissão intolerável do Parlamento na esfera puramente administrativa do Governo.
14. Por todas estas razões, nos mantivemos fiéis à tese exposta no memorando, considerando que a pronúncia pela inconstitucionalidade quanto às normas indicadas do Decreto nº 196/VII implicava, consequencialmente, a inconstitucionalidade das restantes normas do diploma.
Armindo Ribeiro Mendes
Maria Fernanda Palma Declaração de Voto
1.- Votei vencido quanto aos juízos de não inconstitucionalidade constantes das alíneas c) e d) da decisão (no tocante a esta última, por razões de consequencialidade).
2.- No acórdão nº 1/97 deste Tribunal, citado no acórdão, então ainda não confortado com a expressa referência à 'separação e interdependência de poderes' que a Lei Constitucional nº 1/97 introduziu no texto do artigo 2º da Constituição, sublinhara já, também em voto de vencido, não me parecer que o tópico de equilíbrio que deve assistir à interacção entre
órgãos de soberania, decorrente do princípio organizatório fundamental das relações estaduais e acolhido no nº 1 do artigo 111º do texto constitucional
(redacção actual) em articulação com o artigo 2º, se conjugasse, in casu, harmoniosamente (e constitucionalmente) com a ponderação devida no exercício das respectivas funções.
Na oportunidade, entendi que a Assembleia da República, não obstante exercer uma competência própria, ter-se-á intrometido excessivamente na área da competência do Governo, desconsiderando as competências por ela própria a este atribuídas, quando tomou a iniciativa de criar outras regras para além das já existentes, impositivas de uma determinada actuação à revelia da responsabilidade política e legislativa do Governo no sector, desse modo afectando a moderação que é a raiz e a essência do princípio da 'separação e interdependência' dos órgãos de soberania e a 'autonomia destes', como então se deixou escrito, recorrendo, aliás, ao fio discursivo de anterior acórdão, o nº 461/87.
3.- Mantenho que as considerações sustentadas naquele acórdão nº 1/97, são, no presente caso, cabida e coerentemente aplicáveis, pese embora não ter sido esse o entendimento professado maioritariamente.
A matriz argumentativa do aresto está construída, decisivamente, de acordo com o seguinte enunciado: há uma intervenção parlamentar que elimina a cobrança de portagens (pressupostas para as concessões previstas no Decreto-Lei nº 9/97, de 10 de Janeiro, à sombra do qual foi pelo Governo aprovado um programa de concurso e o caderno de encargos relativos a um concurso público internacional para a concessão de lanços de auto-estrada na zona oeste de Portugal); nem por isso se afecta o núcleo essencial da função administrativa do Governo; não ocorre, assim, uma substituição funcional do Executivo, até porque se lhe não retira integralmente a gestão administrativa dos lanços de auto-estrada em questão; de resto, sempre o Governo poderá tomar iniciativa legislativa em contrário.
Para atingir este desiderato, entende-se não se ter abdicado de uma valoração dos espaços de manobra dos dois órgãos de soberania dotados de competência legislativa, ponderando-se o ponto de equilíbrio sem deixar de ter presente, por um lado, o primado parlamentar e a 'residualidade' de competências do Governo, e, por outro lado, a constatação de uma intencionalidade generalizadora que não brigue censuravelmente (recte, intoleravelmente) com a área de manobra da Administração, na sequência da orientação jurisprudencial que o falado acórdão nº 1/97 exponencia.
4.- Na sua precipitação concreta, não subscrevo esta tese.
Sem abordar, sequer, a vertente argumentativa que se contenta com a possibilidade que o Governo sempre tem de contrariar legalmente o Parlamento, o que, de resto, dependeria da atitude final do Presidente da República e de eventual réplica revogatória da Assembleia da República, o certo
é que também agora se minimiza a responsabilidade política do Governo perante a Assembleia da República, enquanto 'órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da administração pública' - artigo 182º da Constituição - como tal dotado de atribuições de 'selecção, individualização e graduação dos fins públicos, nos limites e de acordo com as imposições constitucionais' (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 731).
5.- Com efeito, a chamada Lei de Bases do Sistema de Transportes Terrestres - Lei nº 10/90, de 17 de Março - no tocante à construção, conservação e exploração de infra-estruturas estabeleceu um determinado indirizzo político-legislativo que, nomeadamente, previu a possibilidade de ser concessionada a construção e exploração de auto-estradas e de grandes obras de arte rodoviárias, sendo o respectivo regime de concessão da construção, conservação e exploração objecto de legislação especial, em regime de portagem (cfr., nºs. 3, 6 e 7 do artigo 15º do diploma).
O Decreto-Lei nº 9/97, de 10 de Janeiro, foi editado pelo Governo - e não sujeito a ratificação - ao abrigo da alínea c) do nº 1 do artigo 201º da Constituição, com expressa invocação daquela Lei, e teve por objectivo submeter à iniciativa privada, mediante concurso público, a construção e exploração de novas auto-estradas 'nas zonas do litoral norte e oeste', considerando o 'crescimento significativo da taxa de motorização, do número de viagens empreendidas e da extensão dos percursos realizados' pela população portuguesa e a pressão crescente sobre as estradas nacionais, como se pode ler da acta preambular do diploma.
No seu artigo 2º, nomeadamente, dispõe-se que serão objecto de contrato de concessão, em regime de portagem, a concepção, o projecto, a construção, o 'financiamento e a exploração e manutenção dos lanços da concessão oeste identificados no anexo I, parte 2: A8-IC1 - CRIL-Loures; A8-IC1 - Loures-Malveira; A8-IC1 - Malveira-Torres Vedras (sul); A8-IC1 - variante de Torres Vedras; A8-IC1 - Torres Vedras (norte) - Bombarral; A8-IC1 - variante do Bombarral; A8-IC1 - Bombarral - Óbidos; A8-IC1 - variantes de Óbidos e Caldas da Rainha.
Esta medida legislativa - que o Decreto nº 196/VII mantém - conheceu desenvolvimentos, na execução da respectiva linha programática: o Despacho conjunto publicado no Diário da República, II Série, dando execução ao disposto no artigo 5º do Decreto-Lei nº 9/97, ao aprovar o programa de concurso e o caderno de encargos relativos a concurso público internacional para a concessão de lanços de auto-estrada na zona oeste de Portugal; o Decreto-Lei nº 208/97, de 13 de Agosto, que integrou provisoriamente na concessão da Brisa, com a concordância desta, o lanço Torres Vedras (sul) - Bombarral, da AE 8 - Cril - Leiria, 'para efeitos de conservação e exploração enquanto não for atribuída a concessão Oeste'; o Decreto-Lei nº 253/97, de 26 de Setembro, que aprova a 1ª fase do processo de privatização do capital social da Brisa; o Decreto-Lei nº 294/97, de 24 de Outubro, que revê o contrato de concessão da Brisa, passando dele a fazer parte o dito lanço Torres Vedras (Sul)
- Bombarral, 'nos termos do Decreto-Lei nº 208/97, de 13 de Agosto'.
Ora, o Decreto nº 196/VII, não só vem estabelecer a integração provisória na concessão da Brisa, para efeitos de conservação, até à decisão sobre a eventual atribuição da concessão Oeste, dos lanços enunciados no seu artigo 1º, como, no nº 1 do artigo 2º, dispõe que essas vias e o seu prolongamento, já previsto, até Leiria, bem como o troço do IP6 entre Peniche e Santarém, não ficam sujeitas ao regime de taxa de portagem, regime este que se manterá posteriormente à concessão (nº 2 do artigo 2º); impõe a celebração de um acordo entre a Brisa - Auto-Estradas de Portugal, S.A., e a Junta Autónoma das Estradas com vista às condições financeiras para a conservação dos lanços e sublanço referidos (artigo
3º); revoga o Decreto-Lei nº 208/97 (nº 1 do artigo 4º); altera uma base de contrato de concessão, celebrado com a Brisa, constante do anexo ao Decreto-Lei nº 294/97, retirando do objecto de concessão, para efeitos de conservação e exploração, o lanço Torres Vedras (Sul) - Bombarral (a que se reportava o artigo
1º do Decreto-Lei nº 208/97).
6.- É, na verdade, difícil para quem se pronunciou no acórdão nº 1/97 nos termos da respectiva declaração de voto, sintetizados agora, no ponto 2, sem qualquer motivo válido para alterar esse entendimento, não detectar também aqui afectação na moderação devida na observância da separação e interdependência de poderes.
Com efeito, não se põe em causa que a Assembleia da República não possa revogar o decreto-lei que veio integrar transitoriamente na concessão da Brisa um determinado lanço rodoviário, para efeitos de conservação e exploração; nem que, nomeadamente, introduza uma nova linha de orientação no plano rodoviário. Só que, mantendo as coordenadas gerais da Lei de Bases e não tocando no Decreto-Lei nº 9/97, quanto ao regime de realização dos concursos com vista à concessão de lanços de auto-estrada, ao eliminar agora o regime de portagens quando, inclusivamente, já estava aberto concurso internacional de concessão, alterando, do mesmo passo, uma base do contrato de concessão celebrado entre o Governo e a Brisa, retirando-lhe parte do seu objecto, configura, a meu ver, intromissão intolerável, com desrespeito dos limites constitucionais de natureza funcional.
Estou, neste ponto, - e para encurtar razões - em perfeita consonância com a passagem do memorando apresentado pelo primitivo Conselheiro relator quando se ponderava:
'A interferência parlamentar relativamente ao acto administrativo de abertura do concurso internacional e de aprovação de certo caderno de encargos e, sobretudo, a alteração de um contrato anteriormente celebrado pelo Executivo com base na legislação em vigor, implicam que a Assembleia da República venha a chamar a si, se o decreto se transformar em lei, a execução do plano rodoviário aprovado pelo Governo, o que se traduz numa situação perfeitamente idêntica à que ocorreria se uma lei da Assembleia da República formalizasse um acto materialmente administrativo, como seja a nomeação de um funcionário público ou a decisão de transigir em pleito contra o Estado, pendente em juízo.'
7.- É certo que poderá observar-se - como se faz, no acórdão
- que o Governo, tendo utilizado a via da forma legislativa, para nela enquadrar matéria de natureza administrativa, ficaria sujeito à respectiva apreciação parlamentar, nos termos do artigo 169º, com o que sempre se poderia fazer cessar a vigência dos diplomas ou alterar-lhes o texto, abrangendo essa apreciação o conteúdo regulamentar destes (se se considerar o controlo do órgão parlamentar não confinado à natureza normativa do diploma, relevando a sua vertente formal - cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 696).
Não parece, no entanto, que um juízo de constitucionalidade de determinado texto legal, em fiscalização preventiva, possa ser afectado, seja em que sentido for, se entretanto foi pedida a apreciação parlamentar de um diploma sobre o qual dispõe (no caso, o Decreto-Lei nº 294/97) pois este, como em geral se entende, não será, por isso, enquanto vigente, um acto legislativo imperfeito. De qualquer modo, mais patentemente excessiva se tornaria uma intervenção parlamentar que, nesse processo de apreciação, se repercutisse na matéria de natureza administrativa nele incorporada.
8.- De igual modo, não se aceita encarar a intervenção parlamentar consistente na eliminação da cobrança de portagens nos termos que o acórdão acolhe, como medida da sua competência legislativa, como tal considerada, para daí inferir não se retirar integralmente, desse modo, ao Governo, a gestão administrativa da política rodoviária em matéria de auto-estradas. Assim poderia ser se, porventura, não lhe fosse exigível representar que, desse modo, está a interferir, para além da justa medida (como resulta do sumariamente exposto), no contexto da actividade administrativa a que o Governo se abalançou na sequência de uma linha de política legislativa que a própria Assembleia da República traçou.
9.- Muito sinteticamente, estas são as razões da minha discordância.
Alberto Tavares da Costa Declaração de voto
Votei vencido quanto à alínea a) da decisão por entender que o nº 2 do artigo 62º da Constituição foi violado, na medida em que o Decreto nº 196/VII extingue o direito da BRISA à exploração com cobrança de portagem do lanço Torres Vedras (Sul) - Bombarral da Auto-Estrada do Oeste, sem que preveja o pagamento da justa indemnização.
Reconhece o Acórdão que o direito à exploração dos lanços de autoestradas, direito de conteúdo patrimonial, goza em abstracto da protecção constitucional do direito à propriedade. Mas acrescenta que 'as considerações atinentes à exploração de bens necessáriamente dominiais por uma concessionária não podem aplicar-se, sem mais, ao caso de uma concessionária que
é uma sociedade detida a 99,7% pelo sector público'. Como razões, afirma que em tal caso 'a dependência da empresa do Estado-Administração é total, ainda que a forma jurídica e adoptada seja a societária submetida ao direito privado (não assume especial relevo o facto de haver accionistas que são sociedades comerciais de capitais integralmente públicos, como é o caso da Caixa Geral de Depósitos e o IPE)' e cita-se a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre amnistias de infrações laborais de trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos.
É certo que o Tribunal disse em plenário nos Acórdãos nºs 152/93 e 153/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24, pp.323 ss. e 345 ss.respectivamente), por mim subscritos, que não se pode ver numa amnistia de infracções laborais praticadas em empresas do sector público uma ofensa ao direito da propriedade privada, visto que o Estado é proprietário, directa ou indirectamente, das empresas do sector público, e que não pode falar-se tão pouco, em 'expropriação' inconstitucional do poder disciplinar das empresas públicas. Em ambos os casos decididos nesses acordãos tratava-se de infracções laborais praticadas por trabalhadores da CP - Caminhos de Ferro Portu-gueses, E.P.. Posteriormente o Tribunal entendeu que as razões da referida jurisprudência se aplicam de igual forma às empresas públicas tal como às de capitais (exclusiva ou maioritariamente) públicos (nestes termos, nomeadamente, os acordãos nº 351/93, 352/93, 799/93, 173/94, todos inéditos, e 210/955, Diário da República, II Série, de 24 de Junho de 1995, p.6981 e ss.). Mas esta jurisprudência sobre a amnistia não é transponível para um acto substancialmente expropriante de um direito patrimonial, como é o direito à exploração de autoestrada através da cobrança de portagem. Desde logo, a amnistia laboral não retira à entidade patronal o seu poder disciplinar, tal como a amnistia penal não priva o juiz do seu poder jurisdicional. Apenas a lei punitiva laboral é, através da amnistia, alterada retroactivamente, quanto a uma classe de casos, através de uma dispensa de lei. Mas, sobretudo, o poder disciplinar da entidade patronal não é um direito patrimonial que integre o seu direito de propriedade sobre a empresa. Isto vale tanto para empresas de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos, como para empresas de capitais exclusiva ou maioritariamente privados, não obstante a referida jurisprudência se tenha pronunciado apenas sobre as primeiras. E não afasta o problema do regime dos direitos patrimoniais privados, nomeadamente, de direitos à restituição ou à indemni-zação, que possam derivar de factos amnistiados e que não são, em princípio, extintos pela amnistia ou que não o podem ser sem indemnização.
Não se diga que o direito da BRISA à indemnização em hipóteses como a presente já resultaria dos termos da concessão, nomeadamente do Decreto-Lei nº 315/91; nem tão pouco que ele já resultaria das regras da responsabilidade civil- ou, em especial, da responsabilidade do accionista maioritário por prejuízo causado pela sua gestão a outros accionistas. Sem tomar posição sobre estes pontos, apenas lembro que a lei correspondente ao Decreto nº
196/VII viria revogar as disposições contrárias de legislação anterior e que esta última não a dispensaria de conter uma cláusula explícita de concessão de indemnização, em conformidade com o nº 2 do artigo 62º da Constituição.
José de Sousa e Brito DECLARAÇÃO DE VOTO:
Dissenti da posição que fez vencimento apenas num ponto, que adiante indico, pelas razões que se seguem.
1. Na declaração de voto que apus ao acórdão nº 1/97 (publicado no Diário da República, I série-A, de 5 de Março de 1997), escrevi:
A Constituição da República Portuguesa é a constituição de um Estado de Direito democrático (cf. artigo 2º).
Uma das essentialia do Estado de Direito é o princípio da divisão de poderes, pois ali onde não exista tal divisão não pode falar-se em estado democrático, nem em constituição: 'toute societé dans laquelle la garantie des droits n'est pas assurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée n'a point de constitution' - escreveu-se no artigo 16º da Déclaration des droits de l'homme et du citoyen de 1789.
A divisão de poderes é, com efeito, necessária ao exercício moderado
(proporcionado, equilibrado) e concertado do poder, já que este, para respeitar a dignidade das pessoas e os direitos que dela emergem, há-de conter-se dentro de justos limites: 'il faut que par la disposition des choses le pouvoir arrête le pouvoir' - escreveu MONTESQUIEU no seu Esprit des Lois. E acrescentou: 'l'excés même de la raison n'est pas toujours désirable'. Essencial é - dizia ainda - um gouvernement modéré.
A divisão de poderes postula, pois, uma ideia de moderação no exercício do poder (balance of power) e de interdependência da actividade dos vários poderes. Por isso, nenhum poder (órgão de soberania) se pode conceber como entidade isolada, nem agir indiferente ao actuar dos outros poderes. Ao contrário, os poderes (órgãos de soberania) devem ser potestates coordinatae,
'vocacionalmente sujeitas a uma contínua conjugação' - para nos expressarmos com ANTÓNIO BARBOSA DE MELO (Democracia e Utopia, Reflexões, Porto, 1980, página
45).
Dizendo com MONTESQUIEU: os poderes (órgãos de soberania) devem sempre aller de concert.
No princípio da divisão e interdependência de poderes 'vai necessariamente implicada uma ideia de equilíbrio, de checks and balances', como se escreveu no acórdão nº 317/86 (publicado no Diário da República, I série, de
14 de Janeiro de 1987).
A distribuição de competências por vários centros de poder constitui, de facto, um obstáculo aos atropelos, pois que as forças contrapostas sempre tendem a equilibrar-se.
Seja, pois, qual for o exacto alcance do princípio da separação e interdependência, que o artigo 114º, nº 1 [hoje, artigo 111º, nº 1], da Constituição consagra ('os órgãos de soberania devem observar a separação e interdependência estabelecidas na Constituição'), há nele uma ideia que pode enunciar-se assim: ao Parlamento compete, em princípio, a função de fazer leis
(a legis latio); a função executiva (a legis executio) - isto é, o governar e administrar - cabe, em princípio também, ao Governo; a função judicial (a juris dictio), essa cabe aos tribunais. Ao que acresce que os órgãos do Legislativo, do Executivo e do Judicial se controlam ou limitam mutuamente, por forma a que o poder do Estado resulte limitado (moderado) e a liberdade das pessoas defendida.
Daqui resulta - como acentuou a Comissão Constitucional no Parecer nº 16/79 (publicado nos Pareceres da Comissão Constitucional, volume 8º, páginas
205 e seguintes) - que deverá concluir-se que há inconstitucionalidade, por violação do artigo 114º, nº 1 (isto é, do princípio constitucional da divisão e repartição de funções entre os diferentes órgãos de soberania), 'sempre que um
órgão de soberania se atribua, fora dos casos em que a Constituição expressamente o permite ou impõe, competência para o exercício de funções que essencialmente são conferidas a outro e diferente órgão'.
Será, por isso, inconstitucional o chamado governo de assembleia, em que o Parlamento exerce a sua competência sem os limites que resultam da existência (e da competência) dos outros órgãos de soberania, maxime da do Governo.
2. Sendo este o sentido e alcance do princípio da divisão de poderes, entendi que tal princípio é violado pela norma que se extrai dos artigos 1º e 2º do Decreto sub iudicio, mas tão-só na parte em que tal norma se refere ao lanço da auto-estrada do Oeste já construído e concessionado - ou seja: ao lanço Torres Vedras (s) - Bombarral.
É que, nessa parte, a norma em causa modifica um contrato administrativo - o contrato de concessão celebrado com a BRISA, no qual, transitoriamente embora, pelo Decreto-Lei nº 208/97, de 13 de Agosto (artigo
1º), para efeitos de conservação e exploração, foi integrado aquele troço de auto-estrada, em regime de portagem [artigo 3º, nºs 1 e 2, conjugado com a base I, nº 2, da alínea a), anexa ao Decreto-Lei nº 315/91, de 20 de Agosto]; e, em regime de portagem, foi mantida pelo Decreto-Lei nº 294/97, de 24 de Outubro
[cf. artigos 1º e 6º, e a bases I, nº 2, alínea a), anexa]. Ora, a norma em causa veio 'repetir' esse acto de integração transitória do referido lanço de auto-estrada na concessão da BRISA, para efeitos de conservação (artigo 1º), mas agora sem sujeição ao regime de portagem (artigo 2º).
Significa isto que a Assembleia da República, ao aprovar a norma em causa, modificou uma cláusula de um contrato, que o Governo tinha celebrado no exercício de uma das suas competências típicas - a competência administrativa
[cf. artigo 182º e 199º, alínea g), da Constituição]. E modificou-a, invertendo o sentido da decisão antes tomada: ali onde o Governo tinha decidido que os utentes da auto-estrada pagavam portagens, vem a Assembleia da República e determina que a utilização dessa rodovia se faça sem o pagamento de portagens.
O Governo, para - como lhe impõe o citado artigo 199º, alínea g) - poder tomar 'providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico e social e à satisfação das necessidades colectivas' e, bem assim, para poder programar a sua acção nesse sentido, precisa não apenas de dispor de meios financeiros, como também de saber de quais pode dispor em cada momento.
Ora, há-de convir-se que, seja qual for o exacto sentido e alcance do princípio da separação e interdependência de poderes (consagrado hoje no artigo 111º, nº 1, da Constituição) - que é um dos alicerces em que assenta a República Portuguesa (cf. artigo 2º) - uma intromissão do Parlamento na acção governativa com o alcance da norma sub iudicio, atentos os efeitos financeiros que lhe estão ligados, é altamente perturbadora dessa acção, ultrapassando as exigências de moderação feitas por aquele princípio, que - recorda-se - postula uma ideia de equilíbrio, de gouvernement moderé.
A conclusão de que a Assembleia da República, ao aprovar a norma sub iudicio, violou o princípio da separação de poderes, não é afastada com o argumento de que, tendo adoptado a forma legislativa para proceder à integração do troço de auto-estrada na concessão da BRISA, o Governo se sujeitou a que este contrato de concessão fosse, nessa parte, alterado pela Assembleia da República, uma vez que esta sempre poderia pedir a ratificação do decreto-lei.
De facto, suposto que a Assembleia, quando submete um decreto-lei a ratificação, pode alterar não apenas as disposições de natureza legislativa, mas também as que incorporam cláusulas de contratos administrativos, a verdade é que esssa alteração, a ser possível, nunca pode fazer-se em termos de se exceder a justa medida - ou seja: por forma a atingir o núcleo essencial da função administrativa. E isso foi o que, no caso, sucedeu, pois que o contrato administrativo de concessão, que a Assembleia veio modificar, tinha entrado a fazer parte da ordem jurídica, ficando a exploração do dito troço de auto-estrada sujeito ao regime de portagens, por decisão do Governo, transformada em acordo com a BRISA.
Também não creio que, contra a conclusão a que cheguei, proceda o argumento de que a Assembleia, ao editar a norma sub iudicio, está a legislar sobre portagens, o que, seguramente, ela pode fazer.
É que, sendo inquestionável que a Assembleia pode legislar sobre portagens, já o não é que ela possa alterar um contrato administrativo vigente na ordem jurídica, por forma a que a exploração de um troço de auto-estrada, que havia sido concedido em regime de portagem, tenha que passar a ser feita sem a cobrança dessas portagens.
Nesse caso, com efeito, a Assembleia da República, impondo ao governo um tal modelo de gestão do mencionado troço de auto-estrada, limita-o, de forma excessiva, na sua capacidade de realização no tocante à construção de novas rodovias.
3. Uma nota final: o artigo 4º e 6º do Decreto é puramente explectivo, pois que, ao alterar a base I anexa ao Decreto-Lei nº 294/97, de 24 de Outubro, revogando o Decreto-Lei nº 208/97, de 13 de Agosto, nada adianta à norma a que acabo de referir-me.
Por isso, tendo eu concluído pela inconstitucionalidade da norma que se extrai dos artigos 1º e 2º do Decreto, na parte que indiquei, esse artigo 4º
é, no meu entender inconstitucional, mas apenas consequencialmente.
Messias Bento