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Processo n.º 661/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A., foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso com os seguintes fundamentos:
3. O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Nos termos do disposto na alínea b) desse preceito, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu o recurso, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 76.º da LTC, entende-se não se poder conhecer do objecto do mesmo, sendo caso de proferir decisão sumária, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A do mesmo diploma.
Quando interpostos ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, os recursos de constitucionalidade têm de respeitar um conjunto de requisitos específicos, sem os quais deles se não poderá tomar conhecimento.
Em primeiro lugar, é necessário que o objecto do recurso seja uma norma (em si mesma ou numa sua interpretação), tal como que tal norma (ou dimensão interpretativa questionada) tenha sido aplicada na decisão recorrida.
Em segundo lugar, torna-se necessário que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, de forma que a intervenção do Tribunal Constitucional se possa fazer, verdadeiramente, em via de recurso.
E, em terceiro lugar, é mister que tenha havido o prévio esgotamento dos recursos ordinários.
No que diz respeito à alegada inconstitucionalidade da dimensão normativa dos n.ºs 1 e 4 do artigo 405.º do CPP, no sentido de que a reclamação dirigida ao presidente do tribunal a que o recurso se dirige, prevista no n.º 1 desse preceito, pressupõe, tal como resulta do n.º 4 do mesmo, que se trata de «tribunal superior», entendido tal conceito como um tribunal colocado em outro grau de hierarquia segundos as leis de organização judiciária e a respectiva repartição de competências e a consequente ordenação dos recursos por graus hierárquicos de tribunais, a recorrente oferece, para assim demonstrar o cumprimento do requisito de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, da questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, tal como exigido pelo n.º 2 do artigo 72.º da LTC, dois argumentos.
Em primeiro lugar, afirma a recorrente que, in casu, não se lhe seria de exigir a suscitação prévia da questão de constitucionalidade, por se enquadrar nas situações jurisprudencialmente consideradas excepcionais pelo Tribunal Constitucional, por se tratar de situação inédita, imprevisível ou sequer expectável, dada a “total imprevisibilidade” da interpretação normativa em causa e os “termos perfeitamente inovatórios no nosso ordenamento adjectivo” da mesma interpretação.
Em segundo lugar, para o caso de se entender que a suscitação não pudesse ser considerada dispensável, afirma a recorrente ter suscitado tal questão na reclamação apresentada ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, tendo para o efeito invocado expressamente acórdãos do Tribunal Constitucional, indicando os pontos III e IV daquela Reclamação.
Não tem razão a recorrente.
Importa começar por observar que, ao argumentar como faz, a recorrente cai em contradição.
Com efeito, como pretender justificar a inexigibilidade da suscitação prévia da questão de constitucionalidade, com fundamento na total imprevisibilidade da interpretação seguida pelo tribunal e, ao mesmo tempo, afirmar que se cumpriu o requisito de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, até com expressa invocação de acórdãos do Tribunal Constitucional- Pois que, na lógica da argumentação da recorrente, se a interpretação acolhida era totalmente imprevisível, como poderia a recorrente tê-la antecipado na sua reclamação, como sustenta, afinal, ter feito-
Ou bem que a interpretação acolhida pelo tribunal a quo era totalmente imprevisível e, logicamente, não poderia a recorrente tê-la de todo antecipado, ou bem que a mesma não era totalmente imprevisível e, nesse caso, não sendo dispensável a sua suscitação prévia, a recorrente teria vindo dar cumprimento a tal requisito legal justamente suscitando atempadamente a questão de modo a que o tribunal a quo pudesse sobre a mesma tomar posição.
Argumentar as duas coisas em simultâneo é logicamente impossível.
Abstraindo agora dessa contradição lógica entre os dois argumentos oferecidos pela recorrente para se poder considerar cumprido o requisito de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, proceder-se-á à análise de cada um deles em separado.
O primeiro argumento utilizado pela recorrente é o de que não se lhe seria de exigir a suscitação prévia da questão de constitucionalidade dada a “total imprevisibilidade” da interpretação normativa em causa e os “termos perfeitamente inovatórios no nosso ordenamento adjectivo” da mesma interpretação.
Porém, a recorrente não explica por que razão entende ser tal interpretação totalmente imprevisível. Ora, como se afirma no Ac. n.º 213/2004 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “[é], no entanto, de exigir que o invocado elemento surpresa decorra de regras de interpretação e aplicação lógicas e, por isso, se impõe que sobre aquele que alega essa circunstância recaia o ónus de explicitar os factores, objectivos, que possam conduzir o tribunal a aceitar uma tal conclusão. É assim insuficiente afirmar, de modo conclusivo, que a aplicação da norma foi inesperada ou surpreendente, se não se aponta com o necessário rigor quer a formulação da interpretação normativa usada, quer a razão pela qual, em atenção à fase processual verificada, foi impossível ao interessado suscitar atempadamente a questão. Na verdade, a jurisprudência do Tribunal tem vincado que «só em casos excepcionais e anómalos» em que o recorrente não dispôs processualmente da possibilidade da suscitação atempada da questão é que será «admissível» a arguição em momento subsequente (Acórdãos 62/85, 90/85 e 160/94 in AcTC, 5º vol., p. 497 e 663 e DR, II, de 28MAI94) o que faz recair sobre o recorrente o dito ónus de expor, com a devida concretização, as circunstâncias pelas quais lhe foi impossível suscitar a questão de forma adequada”.
Ainda que assim não fosse, é, em todo o caso, manifesto que jamais poderia a interpretação feita pelo Tribunal a quo ser considerada totalmente imprevisível por consubstanciar uma interpretação inovatória.
Na verdade, o Tribunal a quo limitou-se a acolher aquela que é a orientação desse Tribunal relativamente à admissibilidade de uma reclamação com as características da dos autos, sendo, ou devendo ser, do conhecimento dos interessados que, com um elevado grau de certeza, verão a sua pretensão desatendida.
Assim, se a recorrente, de facto, pretendia questionar a conformidade constitucional daquela que é a interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a fazer da dimensão normativa dos preceitos indicados, deveria tê-lo feito de modo a que o próprio Supremo Tribunal de Justiça sobre tal questão pudesse ter tomado posição, sendo-lhe exigível que tivesse suscitado previamente a questão de constitucionalidade, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 72.º da LTC.
Vejamos então – assim analisando o segundo argumento utilizado pela recorrente – se se pode considerar ter sido a questão de constitucionalidade que integra o objecto do presente recurso previamente suscitada.
A recorrente afirma que suscitou tal questão na reclamação que apresentou para o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, tendo para o efeito inclusive invocado expressamente jurisprudência do Tribunal Constitucional nos pontos III e IV dessa peça processual.
Compulsados os autos, de todo em todo se pode considerar ter a questão de constitucionalidade relativa à dimensão normativa dos n.ºs 1 e 4 do artigo 405.º do CPP questionada sido previamente suscitada, de modo processualmente adequado, como é exigido pelo n.º 2 do artigo 72.º da LTC.
A própria referência que nos pontos III e IV dessa peça processual (fls. 195) é feita à jurisprudência do Tribunal Constitucional está longe de corresponder àquilo que, de acordo justamente com a jurisprudência deste Tribunal, é exigido ao recorrente.
Segundo jurisprudência firme do Tribunal Constitucional, “[s]uscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido” (Ac. n.º 269/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Como se afirma no Ac. n.º 367/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, “[a]o questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há-de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição”.
O modo como a recorrente veio agora delimitar o objecto do recurso de constitucionalidade corresponde justamente ao modo como haveria de ter suscitado a questão de constitucionalidade durante o processo, por forma a que o Tribunal a quo pudesse e devesse conhecer da questão de constitucionalidade. Se, na realidade, o que a recorrente pretende impugnar é um determinado segmento normativo do preceito, exigir-se-ia que, oportunamente, houvesse enunciado qual o sentido que a este foi atribuído de que se extrai a norma que se considera inconstitucional.
Deve, assim, concluir-se que o despacho recorrido não conheceu da questão de inconstitucionalidade em virtude de tal questão não ter sido suscitada, com pertinência processual, perante o Tribunal a quo.
Não se verifica, portanto, um pressuposto essencial do presente recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Tanto basta para que dele se não possa conhecer.
2. Notificada dessa decisão, A. veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, com os seguintes fundamentos:
I – Notificada da Douta Decisão Sumária n° 461/2010, proferida no Requerimento de apreciação pela via de Recurso pelo Tribunal Constitucional à margem referenciado, a ora Reclamante, ao proceder à leitura e análise da mesma, apercebeu-se que a formulação usada, no ponto V daquele Requerimento, podia permitir interpretação em sentido diverso do entendimento que, para a ora Reclamante, naquele ponto, subjacente.
II – De facto, a letra do que se escreve constitui um elemento fundamental, como leme orientador do sentido da interpretação que se segue à própria interpretação literal, constatando agora a ora Reclamante que o texto daquele ponto V terá sido elaborado com redacção e sintaxe sem suficiente vocação para expressar de forma suficientemente clara e inequívoca, quer o raciocínio, quer o que através deste ali concluiu a Requerente, ora Reclamante.
III – Na verdade, o texto do ponto V aqui supra em II referido, contém dois aspectos diferentes do requisito de admissibilidade exigido pelo n° 2 do art.° 72° da LTC, nos termos do qual a questão de inconstitucionalidade dever ser suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer», aspectos que ali são referidos em sentido e planos distintos, respectivamente, na primeira e na segunda parte daquele texto do aludido ponto V.
IV – Com efeito, a primeira parte do texto do aludido ponto V, elaborada com redacção em termos que, embora algo extensos e com um período inevitavelmente longo, termina na palavra “constitucionalidade” da antepenúltima linha, e refere-se ao aspecto da questão de inconstitucionalidade que, na Reclamação apresentada perante o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, não foi suscitada, em virtude da sua imprevisibilidade, por não ser de todo em todo expectável decisão em tal sentido, pelo que, por consequência, não seria de todo exigível que a ali Requerente, ora Reclamante, a tivesse suscitado.
V – Já a segunda parte daquele texto do aludido ponto V, constituído pelas três últimas linhas do mesmo, e que se inicia em “aquele requisito”, se refere ao aspecto da questão de inconstitucionalidade que, na Reclamação apresentada perante o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, podia ter sido e, como tal foi, suscitada, em virtude da sua previsibilidade, por poder ser expectável decisão em tal sentido, sendo, por consequência exigível que a ali Requerente, ora Reclamante, a suscitasse, como efectivamente o fez e, naquela parte daquele texto, pretendeu anunciar.
VI – Tivera a redacção do texto daquele ponto V em causa, e constante do Requerimento supra referido, a expressão “no que era previsível”, intercalada na antepenúltima linha, e teria sido expressada de forma, quiçá muito mais clara, a distinção ali subentendida, e que se pretendeu com aquele referido ponto V, dos dois aspectos ou planos do requisito em causa, redacção que, para melhor esclarecimento, aqui se reproduz agora com introdução daquela expressão:
“No caso sub judice e relativamente ao art.° 405°, nºs 1 e 4 do CPP, aquele primeiro requisito (suscitação da questão de inconstitucionalidade na Reclamação apresentada ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça), e ainda que a sua suscitação pudesse vir a ser considerada dispensável, por se enquadrar nas situações jurisprudencialmente consideradas excepcionais pelo Tribunal Constitucional, por se tratar de situação inédita, imprevisível ou sequer expectável, dada a “total imprevisibilidade” da interpretação normativa em causa e os termos perfeitamente inovatórios no nosso ordenamento adjectivo da mesma interpretação, pelo que não seria., por consequência, de todo exigível que a ora requerente suscitasse, então, a questão de constitucionalidade, aquele requisito terá sido, contudo, no que era previsível, mesmo preenchido, até com a expressa invocação dos Acórdãos do Tribunal Constitucional referidos nos pontos III e IV daquela Reclamação.”
VII – Continua a ora Reclamante convicta de que se verifica, como se quis significar na primeira parte daquele referido texto do ponto V do Requerimento de Recurso, a “total imprevisibilidade” da interpretação da norma do art.° 405° do CPP, levada a efeito pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido em que a fez, de que o Supremo Tribunal de Justiça, contrariamente à expressão e letra daquela lei, não é um tribunal superior, «isto é, um tribunal colocado em outro grau de hierarquia segundo as leis de organização judiciária e a respectiva repartição de competências e a consequente ordenação dos recursos por graus hierárquicos de tribunais».
VIII – A ora Reclamante não deixou, assim, de ponderar, no que era previsível, que o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, em presença da Reclamação que lhe era apresentada, pudesse ter levado a efeito interpretação, contrária aos princípios constitucionalmente consagrados e que acobertam a dimensão normativa do art.° 405° do CPP, em formulação que pudesse vir a apreciar aquela Reclamação no sentido de considerar:
a) não constituir a Reclamação o meio adequado de impugnação do Despacho de não admissão do Recurso, ainda que nele se suscitassem questões complexas;
b) que não lhe competia dirimir o conflito que, com aquela Reclamação, lhe fôra apresentado;
c) a Reclamação como equiparada a recurso ordinário, obrigatório até para se ter por verificada a respectiva exaustão;
IX – O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, contudo, não levou a efeito qualquer interpretação em nenhum dos sentidos assim ponderados, e para os quais, em obediência à exigência imposta pelo art.° 72° da LTC, supra em III referido, fora devidamente alertado pela ora Reclamante, assim se não tendo dado por verificada, na Douta Decisão que proferiu sobre a Reclamação que lhe foi apresentada, qualquer formulação interpretativa no sentido das que a ora Reclamante, em prévia suscitação, naquela Reclamação alertou como dando lugar a questões de constitucionalidade.
X – A ora Reclamante não utilizou, assim, “dois argumentos” diversos para justificar um mesmo facto, que a imperiosa suscitação da questão da inconstitucionalidade constitui, mas ao invés, a ora Reclamante utilizou “dois argumentos” diversos para justificar dois factos distintos, constituídos, respectivamente, pela não imperiosa suscitação, e pela imperiosa suscitação da questão da inconstitucionalidade.
XI – A ora Reclamante, por um lado, e tão só por força da sua total imprevisibilidade, não suscitou, previamente, nos termos dispostos no já referido art.° 72° da LTC, a questão da inconstitucionalidade da formulação da interpretação que, efectivamente, como supra em VII transcrito, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça acabou por levar a efeito na Douta Decisão que exarou na Reclamação que lhe foi apresentada, por tal ser em sentido totalmente imprevisível e, consequentemente, não expectável.
XII – Tendo a ora Reclamante, por outro lado, e pelo facto de ser possível prevê-la, em satisfação do disposto no já referido art. ° 72° da LTC, fez suscitação prévia da questão da inconstitucionalidade da interpretação que o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça pudesse vir a levar a efeito, nos sentidos enunciados supra em VIII, e contrários aos já definidos pela Jurisprudência do Tribunal Constitucional, em Acórdãos recaídos mesmo em Decisões do Supremo Tribunal de Justiça que, ainda que respeitantes a Reclamações diferentes da do caso sub judice, constituíam importante e imperioso alerta ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, em termos de este estar obrigado a conhecer a interpretação que, sobre o art.° 405° do CPP, assim havia já sido feita pela Jurisdição Constitucional.
XIII – Na Douta Decisão Sumária de que aqui ora se reclama, a total imprevisibilidade é considerada, em consonância aliás com a Jurisprudência Constitucional ali também referida, como causa da exclusão da exigência de suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade, prevista no citado art. ° 72° da LTC, quando, como daquela Douta Decisão se transcreve, « o invocado elemento surpreso decorra de regras de interpretação e aplicação lógicas... . » e se demonstre « com o necessário rigor [quer] a formulação da interpretação normativa usada ».
XIV – A ora Reclamante, no Requerimento para apreciação pela via de Recurso pelo Tribunal Constitucional, a que se refere o presente Processo em referência, não hesitou em representar, a esse Colendo Tribunal, a imprevisibilidade da questão de inconstitucionalidade originada pela formulação interpretativa levada a efeito pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça na Decisão jurisdicional que a suporta, para o efeito tendo utilizando a expressão “total imprevisibilidade”, como pode ler-se no já supra referido ponto V daquele Requerimento de Recurso, colhida na própria Jurisprudência Constitucional, expressão que, ainda que podendo parecer pleonástica – pois a imprevisibilidade que não fôr total deixará de o ser por cair no domínio do seu contrário, ou seja, da previsibilidade –, bem permitiu traduzir, de forma literal, o espírito da apreciação e da qualificação que a ora Reclamante ali fez daquela mesma imprevisibilidade.
XV – A total imprevisibilidade resulta, como se lê da transcrição supra em XIII feita da Douta Decisão Sumária de que aqui ora se reclama, de interpretação e aplicação lógicas que incidirão sobre eventual formulação da interpretação normativa que, levadas a efeito pelo que alega aquela imprevisibilidade, não foram bastantes e capazes de o fazer passar para o domínio do previsível, ou seja, o seu intelecto especulativo, por todos os meios ao seu alcance, não lhe permitiu, no domínio do conhecimento, chegar a uma tal formulação da interpretação normativa.
XVI – Daquele que alega tal “elemento surpresa”, exige-se, como pode-se ler na Douta Decisão de que ora se reclama, que:
a) tendo considerado as diferentes formulações da interpretação normativa em causa, que em sede de inconstitucionalidade foram já possíveis e, como tal, objecto de divulgação; e,
b) tendo, no domínio do raciocínio e do seu intelecto especulativo, ponderado e procurado, com utilização de todos os instrumentos e meios de que podia dispor;
demonstre não ter conseguido, contudo, alcançar, para então a poder prever, a formulação da interpretação normativa (recorrida) a que o agente da decisão chegou, nomeadamente, até, por esta ter assentado, “em termos perfeitamente inovatórios”, em situação inédita ou sequer expectável.
XVII – Exige-se, assim, de quem alega a imprevisibilidade em causa, que dê a conhecer os métodos de raciocínio que, como instrumento fundamental do conhecimento, foi seguindo na aplicação dos princípios e regras que a Ciência do Direito dita, nomeadamente no que diz respeito às regras de interpretação das normas, demonstrando que aqueles métodos, princípios e regras o não levaram, contudo, a formular, em determinado sentido interpretativo, questão de constitucionalidade.
XVIII – No Requerimento de Recurso sobre que recaiu a Douta Decisão Sumária de que ora se reclama, anuncia-se, no aludido ponto V daquele Requerimento, ter sido total a imprevisibilidade da formulação da interpretação da norma do art.° 405° do CPP, no sentido em que foi levada a efeito na sua Douta Decisão, pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, demonstrando-se, nos demais pontos daquele articulado, em referência concreta, feita por interpretação e aplicação lógica de métodos, princípios e regras que levaram ao que naquele articulado se formulou, que a interpretação literal do texto da referida norma do art.° 405º do CPP, mesmo que completada com as demais formas de interpretação, não permite prever, perscrutar, conjecturar ou supôr antecipadamente uma tal formulação feita naquele sentido em que o foi, com total surpresa, feita por simples afastamento da letra da lei, sem qualquer tarefa de interligação ou valoração que faça alterar aquele sentido literal, conduzindo, mesmo, de forma simplista e quiçá discricionária, à não aplicação da lei, a que os Tribunais estão obrigados, nos termos que a ora Reclamante invocou e explicitou no ponto IX do articulado do Requerimento que aqui vem referindo, assim constituindo verdadeiro elemento surpresa.
XIX – Jamais a Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente até a que vem citada e referida nos Acórdãos do Tribunal Constitucional para que a ora Reclamante, em suscitação prévia das questões de inconstitucionalidade que podia prever, alertou o Presidente daquele Supremo Tribunal, na Reclamação que apresentou, se pronunciou sobre a qualificação do Supremo Tribunal de Justiça como um «“tribunal superior”, isto é, um tribunal colocado em outro grau de hierarquia segundo as leis de organização judiciária e a respectiva repartição de competências e a consequente ordenação dos recursos por graus hierárquicos de tribunais”», para o efeito da previsão do art.° 405° do CPP quando aplicável em Reclamação como a que está em causa no referido Requerimento de Recurso e, consequentemente, na presente Reclamação, pelo que, por essa via da Jurisprudência, mesmo do Supremo Tribunal de Justiça, nunca seria possível alcançar também, uma tal hipótese interpretativa.
XX – Por todo o exposto, e salvo o muito devido respeito, não se conforma a ora Reclamante com a Douta Decisão Sumária, de que ora assim reclama, quando ali se conclui haver “contradição lógica entre os dois argumentos oferecidos para se poder considerar cumprido o requisito da suscitação prévia da questão da inconstitucionalidade”.
XXI – Bem como, nos mesmos termos, se não conforma a ora Reclamante com aquela Decisão Sumária, quando ali se conclui não estar preenchido o requisito de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, face à total imprevisibilidade, ocorrida nas circunstâncias qualificadas no Requerimento de Recurso em que foi exarada a Douta Decisão Sumária de que ora se reclama, e como tal considerada, pela Jurisprudência Constitucional, como causa de exclusão da exigência daquele requisito.
XXII – Notificada da Douta Decisão Sumária que recaiu naquele Requerimento de Recurso, não pôde a ora Reclamante deixar de esclarecer esse Colendo Tribunal Constitucional, em ordem a que, sendo deliberado que preenche os requisitos de admissibilidade, venha a mesma a ser apreciada.
XXIII – Não sendo a concreta questão de natureza jurídico-constitucional, em causa no presente Processo de apreciação pela via de Recurso, objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, ficará a matéria sem decisão em sede, mesmo que abstracta, de apreciação de constitucionalidade, já que, até ao presente, não se conhece idêntica suscitação, nem em Processo de Recurso interposto, nem em qualquer outra sede de decisão Constitucional, que tenha tido por objecto Reclamação apresentada, nos termos do art.° 405° do CPP, para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de Decisão do Relator sobre admissão de Recurso interposto para o Pleno das Secções Criminais, de Acórdão proferido em sede de 1ª Instância por Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça.
XXIV – Acresce, por outro lado, que a Decisão tomada pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de não apreciar a decisão do Relator que, naquele Supremo Tribunal não admitiu Recurso interposto para o Pleno das Secções Criminais de Acórdão prolatado em 1ª Instância, em competência avocada, pela Secção, impediu a apreciação da questão objecto daquele Acórdão, em sede de recurso efectivo a que a ora Reclamante tem direito, DIREITO que assim, efectivamente, lhe foi negado, em violação dos DIREITOS FUNDAMENTAIS protegidos pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, violação que o que o Tribunal de Europeu dos Direitos do Homem reiteradamente sanciona, muito embora concedendo aos Estados, em primeira-mão, a oportunidade de prevenir ou reparar aquelas violações, no cumprimento, aliás, do requisito da exaustão dos recursos ordinários, que, nos termos do seu art.° 350, é condição de admissibilidade da respectiva queixa.
3. Notificado desta Reclamação, veio o representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional pugnar pelo indeferimento da mesma.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Na reclamação apresentada, a reclamante começa por afirmar que não se conforma com a decisão sumária na parte em que nela se afirma verificar-se uma contradição lógica entre os dois argumentos oferecidos pela recorrente no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade para se poder considerar cumprido o requisito de suscitação prévia da questão da inconstitucionalidade. Embora reconhecendo alguma imprecisão na sua formulação anterior, entende a reclamante que inexiste qualquer contradição entre afirmar-se, por um lado, que a interpretação normativa em causa era totalmente imprevisível e, por outro, que suscitou tal questão previamente até com expressa invocação de acórdãos do Tribunal Constitucional. Entende a reclamante que bastaria que a redacção do texto em causa contivesse a expressão “no que era previsível” para o seu pensamento ser mais facilmente inteligível.
Além disso, discorda a reclamante do fundamento oferecido na decisão sumária reclamada para o não conhecimento do objecto do presente recurso – o de se não poder dar como verificada a dispensa do requisito de prévia suscitação da questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida – face à total imprevisibilidade da questão de constitucionalidade originada pela formulação interpretativa levada a efeito pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça na decisão recorrida.
Não tem razão a reclamante.
No que respeita à afirmação, constante da decisão sumária reclamada, de que os dois argumentos oferecidos pela recorrente no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade para se poder considerar cumprido o requisito de suscitação prévia da questão da inconstitucionalidade encerram, entre si, uma contradição lógica, e apesar de a reclamante rejeitar tal observação, a verdade é que acaba por reconhecer imprecisão na sua formulação anterior, optando, aliás, por abandonar um desses dois argumentos – aquele relativo a ter, na realidade, suscitado previamente, de modo processualmente adequado, a questão de constitucionalidade – entendendo agora que o recurso de constitucionalidade deve ser admitido tão-somente em virtude da total imprevisibilidade com que a norma questionada foi aplicada na decisão recorrida.
Simplesmente, ao fazê-lo, a reclamante não oferece qualquer justificação por que se há-de considerar a interpretação efectuada como totalmente imprevisível.
Ora, como se afirma na decisão sumária reclamada, citando-se jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional, designadamente o seu Acórdão n.º 213/2004 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “[é], no entanto, de exigir que o invocado elemento surpresa decorra de regras de interpretação e aplicação lógicas e, por isso, se impõe que sobre aquele que alega essa circunstância recaia o ónus de explicitar os factores, objectivos, que possam conduzir o tribunal a aceitar uma tal conclusão. É assim insuficiente afirmar, de modo conclusivo, que a aplicação da norma foi inesperada ou surpreendente, se não se aponta com o necessário rigor quer a formulação da interpretação normativa usada, quer a razão pela qual, em atenção à fase processual verificada, foi impossível ao interessado suscitar atempadamente a questão. Na verdade, a jurisprudência do Tribunal tem vincado que «só em casos excepcionais e anómalos» em que o recorrente não dispôs processualmente da possibilidade da suscitação atempada da questão é que será «admissível» a arguição em momento subsequente (Acórdãos 62/85, 90/85 e 160/94 in AcTC, 5º vol., p. 497 e 663 e DR, II, de 28MAI94) o que faz recair sobre o recorrente o dito ónus de expor, com a devida concretização, as circunstâncias pelas quais lhe foi impossível suscitar a questão de forma adequada”.
Tanto basta para que não possa o Tribunal conhecer do objecto do recurso de constitucionalidade.
Aliás, nada tem de imprevisível interpretar o disposto no artigo 405º do CPP como não aplicável às reclamações das decisões dentro do próprio Tribunal.
III – Decisão
4. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2011.- Maria Lúcia Amaral – Vítor Gomes – Gil Galvão.