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Processo n.º 559/96
1ª Secção Relator - Paulo Mota Pinto
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório:
1. J... foi condenado, por sentença do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, como autor de um crime previsto e punido pelo artigo 12º do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril, em pena de multa, no valor de 70 000$00, tendo-lhe sido aplicada a medida de inibição da faculdade de conduzir por um período de seis meses.
2. Inconformado com esta decisão, J.. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando a inconstitucionalidade do artigo 12º do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril
'por violação do preceito do artº. 29º., nº. 4, da CRP., porquanto, perante a sucessão de leis e da conjugação dos artºs. 141º., nº. 2, 158º., nº. 1, al. a), do CE., e, 292º., do CP., é claramente mais favorável, ao recorrente a aplicação pelo regime das disposições legais citadas'. O Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 28 de Maio de 1996, decidiu-se pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela confirmação da decisão recorrida. No que à questão de constitucionalidade suscitada respeita, decidiu que:
'Assim, enquanto não surgir, nova legislação sobre esta matéria, continua em vigor, o artº. 12º., do D-L n.º 124/90, de 14 de Abril, quando se verifique a recusa a exame a pesquisa de álcool, pelo condutor, ou por pessoa que contribua para acidente de viação. Não estando esta matéria - a recusa a exame de pesquisa de álcool - regulada, nem no CE., nem no CP., e partindo do princípio, que o legislador não quis deixar de punir, semelhantes condutas, aliás, altamente censuráveis, face ao disposto no artº. 7º., nº. 2, do Código Civil, parece que não restam dúvidas de que, continua em vigor, o artº. 12º., nºs. 1 e 2, do DL. nº. 124/90, supracitado. Improcedem, assim, as conclusões em apreço. Quanto à pretensa inconstitucionalidade do artigo em apreço, por violação do artigo 29º., nº. 4, da CRP., a mesma improcede pelas razões já acima expostas.'
3. J... interpôs recurso de constitucionalidade deste Acórdão da Relação de Lisboa, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, n.º 1, alínea b), da Constituição e 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 12º do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril. O recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
'1º A aplicabilidade do artgº 12 do DL 124/90 revela-se inconstitucional face à sucessão de regimes jurídicos ocorridas após a vigência desta norma, particularmente com a entrada em vigor do novo Código da Estrada e do novo Código Penal.
2º Com efeito e em primeira análise verificamos que se existiu revogação expressa de algumas normas do DL 124/90, é um facto que o artgº 12 coabita actualmente com o artg. 158 do Código da Estrada e 348º nº 1 do Código Penal, punindo ambos o mesmo tipo de comportamento mas aplicando sanções diversas.
3º Assim e desde logo se por exemplo o artgº 2 nº 1 do DL 124/90 que estabelecia uma punição idêntica para a condução sob o efeito de álcool acrescido da sanção acessória do artgº 4 nº 2 alínea A, àquela que era estabelecida no artgº 12 do DL 124/90, tendo sido revogado expressamente o primeiro, nada parece justificar uma punição mais grave pela recusa de submissão a teste, em comparação com a efectiva condução sob o efeito do álcool.
4º Afigura-se-nos que face ao que atrás ficou exposto por aplicação do disposto nos artgsº 29 nº 1, 3 e 4 da C.R.P. o artgº 12 do DL 124/90 é manifestamente inconstitucional.
5º Aliás veja-se que por exemplo o artgº 8 do DL 124/90 não foi expressamente revogado, mas encontra-se publicado o mesmo dever de submissão a exames no artgº
158 do Código da Estrada, estabelecendo o segundo um regime inovador, por comparação com o primeiro.
6º Porém pensamos que as dúvidas se desfazem se considerarmos que a recusa a exame para a detecção de álcool é actualmente prevista e punida em dois regimes legais distintos, ou seja, o primeiro regime decorrente do artgº 12 do DL 124/90 e o segundo regime, decorrente do artgº 158 e 348 nº 1 do Código da Estrada e do Código Penal.
7º Perante os dois regimes Jurídicos verifica-se que o segundo referido é o mais benévolo, pelo que a aplicação do artgº 12 do DL 124/90 é inconstitucional por violação do disposto no artgº 29 nº 4 da C.R.P.' O Ministério Público contra-alegou, sustentando o carácter manifestamente infundado do recurso e concluindo:
'1º - Determinar se certa norma incriminadora, constante de lei especial, foi ou não revogada, expressa ou tacitamente, por outras que se lhe seguiram, é questão de interpretação e aplicação do direito infraconstitucional, exclusivamente reservada às instâncias.
2º - Tendo a decisão recorrida concluído que a norma incriminadora em questão subsiste no ordenamento jurídico, é manifesto que não pode suscitar-se uma questão de sucessão de leis no tempo, para cuja resolução seja lícito convocar o nº 4 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa.'
4. Após mudança de relator, devida a alteração na composição do Tribunal, completaram-se os vistos legais. Cumpre, agora, apreciar e decidir. II. Fundamentos
5. O presente recurso tem por objecto a norma do artigo 12º do Decreto-Lei n.º
124/90, de 14 de Abril (diploma que estabeleceu o regime sancionatório da condução sob influência de álcool), cujo teor é o seguinte:
'Artigo 12º
(Recusa a exames)
1 – Todo o condutor, ou pessoa que contribua para acidente de viação, que se recusar a exame de pesquisa de álcool será punido com pena de prisão até um ano ou multa até 200 dias.
2 – À pena prevista no número anterior acresce a sanção acessória, relativamente a condutores, de inibição da faculdade de conduzir, com a duração de seis meses a cinco anos, sendo-lhe ainda aplicável o disposto nos n.ºs 4, 5, e 6 do artigo
6º.' O Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril punia igualmente, no seu artigo 2º, a condução sob o efeito de álcool. Todavia, com a reforma do Código Penal operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, tal punição passou a ser prevista no Código Penal (artigo 292º), pelo que foi revogado o referido artigo 2º - bem como os artigos 4º, n.º 2, alínea a) e 5º, n.º 1 do mesmo diploma, referentes à hipótese daquele artigo 2º. Por outro lado, o Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, veio prever, no artigo 158º, n.º 1, para os condutores e, sempre que sejam sujeitos de acidente de trânsito, para os demais utentes da via pública, a obrigação de se submeterem às provas que se estabeleçam para a detenção de possíveis intoxicações. No entender do recorrente, a recusa de submissão a exame de álcool, prevista no citado artigo 12º, passou, deste modo, a ser punível nos termos gerais, como crime de desobediência previsto no artigo 348º, n.º 1 do Código Penal, 'punindo ambos o mesmo tipo de comportamento mas aplicando sanções diversas', pelo que a aplicação do regime menos benévolo seria inconstitucional, por violação do artigo 29º, n.º 4 da Constituição, que determina a aplicação retroactiva das leis de conteúdo mais favorável ao arguido. Tal argumentação padece, todavia, de uma petição de princípio, ao assentar no pressuposto da aplicabilidade à recusa de submissão a teste de pesquisa de
álcool, não apenas do artigo 12º, em apreço, mas também da norma do Código Penal que prevê e pune em geral o crime de desobediência. A questão de saber se a recusa de submissão a teste de pesquisa de álcool se encontra hoje prevista no Código Penal (em conjugação com o Código da Estrada), tendo o artigo 12º do Decreto-Lei n.º 124/90 sido revogado, é, obviamente, uma questão de direito infra-
-constitucional, que não compete a este Tribunal dilucidar. Cumpre, no entanto, notar que não foi esta a posição perfilhada na decisão recorrida, nos termos da qual, diversamente, 'não estando esta matéria - a recusa a exame de pesquisa de
álcool - regulada, nem no CE., nem no CP.', é-lhe aplicável apenas a norma do artigo 12º do Decreto-Lei n.º 124/90. O Acórdão do Tribunal da Relação recorrido negou, pois, que se tenha verificado qualquer sucessão de leis incriminadoras da recusa de submissão a teste de
álcool, ou que – como pretende o recorrente - esta se encontre hoje também punida pelo Código Penal, em conjugação com o Código da Estrada (tese, esta
última, que sempre se dirá afigurar-se falha de lógica, pois, a ter tal matéria passado a ser regulada no Código Penal, teria havido revogação do artigo 12º do Decreto-Lei n.º 124/90, como decorre dos princípios gerais sobre cessação da vigência das leis – vide o artigo 7º, n.º 2, do Código Civil). Decidiu, pois, o Acórdão recorrido, que a matéria de recusa a exame de pesquisa de álcool não era sancionada pelo Código Penal, pelo que considerou ser aplicável ainda o artigo 12º do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril, afirmando expressamente que 'não restam dúvidas de que, continua em vigor, o artº. 12º., nºs. 1 e 2, do DL. nº. 124/90, supracitado'. Falha, deste modo, o próprio pressuposto das alegações do recorrente, ou seja, como se lê no n.º 1 das conclusões das suas alegações, a existência de uma
'sucessão de regimes jurídicos ocorrida após a vigência desta norma [artigo 12º do Decreto-Lei nº 124/90], particularmente com a entrada em vigor do novo Código da Estrada e do novo Código Penal.' Permanecendo em vigor, conforme decidiu o Tribunal recorrido, o artigo 12º do Decreto-Lei n.º 124/90, não se verifica qualquer sucessão de leis penais no tempo, como pretende o recorrente, e não cabe invocar o princípio da aplicação retroactiva das leis penais mais favoráveis, previsto no artigo 29º, n.º 4 (2ª parte) da Constituição, que pressupõe essa sucessão (vide J. Figueiredo Dias/M. Costa Andrade, Direito penal. Questões fundamentais. A doutrina geral do crime, Coimbra, 1996, policop., §§ 235 e segs., e A. Taipa de Carvalho, Sucessão de leis penais, 2ª ed., Coimbra, 1997, págs. 107 e segs.; na jurisprudência deste Tribunal, vide os Acórdãos n.ºs 150/94 e 207/94, publicados no Diário da República, respectivamente, I Série-A, de 30 de Março de 1994 e II Série, de 13 de Julho do mesmo ano).
6. Argumenta ainda o recorrente que, enquanto o artigo 2º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 124/90 estabelecia uma punição para a condução sob o efeito de álcool idêntica - prisão até um ano ou multa até 200 dias, acrescida da sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir, prevista no artigo 4º, n.º 2, alínea a) - àquela que era estabelecida no artigo 12º do mesmo diploma, tendo a condução sob o efeito de álcool passado a ser punida pelo artigo 292º do Código Penal, e considerando-se que aquele artigo 12º permanece em vigor, se prevê 'uma punição mais grave pela recusa de submissão a teste, em comparação com a efectiva condução sob o efeito do álcool', que, em seu entender, 'nada parece justificar'. A pena prevista para condução sob o efeito de álcool continuou, após a reforma do Código Penal de 1995, a ser, nos termos do artigo 292º do Código Penal, a prisão até um ano, embora com a alternativa de pena de multa até 120 dias (e não já de 200 dias). Além disso, à pena prevista no artigo 292º do Código Penal acresce a pena acessória prevista no artigo 69º, n.º 1, do mesmo Código - proibição de conduzir veículos motorizados por um período fixado entre um mês e um ano -, no caso de recusa de submissão a exame de pesquisa de álcool, à pena prevista no artigo 12º, n.º 1 acresce, para condutores, a sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir com a duração de seis meses a cinco anos, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo. Será, todavia, que a diferença de molduras penais, para a sanção de proibição de conduzir veículos motorizados, se pode considerar desconforme com a exigências de igualdade e de proporcionalidade constitucionalmente impostas? A esta pergunta responde o Tribunal negativamente. Na verdade, não pode dizer-se que tal diferença se afigure arbitrária ou carente de qualquer justificação, em termos de ao legislador ser vedado estabelecer tal discriminação punitiva entre a condução sob o efeito de álcool e a recusa de submissão a teste de pesquisa de álcool. Desde logo, há que notar que a diferença se refere apenas à pena alternativa de multa e à pena acessória de proibição de conduzir, que acresce à pena principal prevista para ambas as condutas. Mesmo para estas, todavia, não se pode afirmar que a distinção seja arbitrária, revelando-se a sua possível justificação, desde logo, se se tiver presente que a incriminação da recusa de submissão a teste de álcool não tem lugar apenas como
'sucedâneo' da incriminação da condução sob o efeito de álcool, resultante da impossibilidade de determinar a taxa de álcool no sangue (e, portanto, de, se fosse o caso, aplicar a pena por condução sob o efeito de álcool). Note-se, na verdade, que não só os condutores, mas também qualquer pessoa que contribua para acidente de viação tem o dever de se submeter a exame de pesquisa de álcool, podendo ser punido em caso de recusa (artigo 12º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 124/90). Isto, enquanto apenas 'quem, pelo menos negligentemente, conduzir veículo' pode ser punido por condução em estado de embriaguez. Acresce que a conduta de recusa de submissão a exame de pesquisa de álcool, ligada à condução de veículo ou à contribuição para acidente de viação, denota sempre também uma componente de desobediência ao agente de autoridade que realiza o exame – nos termos do artigo 6º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 124/90, 'o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por agente de autoridade, que, para o efeito, deve dispor de material adequado.' Componente, esta, que o legislador pode valorar mais ou menos no estabelecimento da moldura penal da pena principal ou das penas acessórias, e que, pelo menos via de regra, não assumirá relevo autónomo na incriminação da condução sob o efeito do álcool
(aliás, também integradora de comportamentos negligentes), prevista agora no artigo 292º do Código Penal. Conclui-se, pois, que não se pode afirmar que a previsão de uma moldura penal abstracta mais grave para a pena acessória de proibição de condução aplicável à recusa de submissão a exame de pesquisa de álcool, do que para pena acessória análoga, aplicável à condução sob o efeito do álcool, implique desigualdade ou desproporcionalidade arbitrárias dessas penas, constitucionalmente censuráveis. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 12º do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril, e, em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida. Lisboa, 27 de Abril de 1999 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Artur Maurício Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa