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Processo n.º 275/10
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, foi interposto recurso pelo Ministério Público, para si obrigatório, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea a), e n.º 3 e dos artigos 70º, n.º 1, alínea a), e 72º, n.º 3, da LTC, da decisão proferida pela Secção Única do Tribunal Judicial de São Pedro do Sul, em 12 de Março de 2010 (fls. 76 a 81) que determinou a desaplicação da norma extraída da conjugação entre os artigos 3º, n.º 1, alínea b), 9º, n.º 1, alínea a), e nº 3, todos do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, quando interpretada no sentido de considerar ser aplicável a coima aí prevista, – cujo limite mínimo para as pessoas colectivas é de 15.000 euros – nos casos em que, requerida a presença da autoridade para remover a recusa referida no número anterior, essa recusa é removida sendo o livro de reclamações facultado ao utente.
2. Notificado para tal pela Relatora, o Ministério Público produziu alegações, das quais constam as seguintes conclusões:
«1- Segundo o nº 4 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 156/2005, de 15 de Setembro, quando o livro de reclamações não for imediatamente facultado ao utente, este pode requerer a presença da autoridade policial a fim de remover essa recusa ou de que essa autoridade tome nota da ocorrência e a faça chegar á autoridade competente para fiscalizar o sector em causa.
2- A interpretação do artigo 9º, nº 3, do Decreto-Lei nº 156/2005, que considera ser aplicável a coima aí prevista, - cujo limite mínimo para as pessoas colectivas é de 15.000 euros – nos casos em que, requerida a presença da autoridade para remover a recusa referida no número anterior, essa recusa é removida sendo o livro de reclamações facultado ao utente, viola o princípio de proporcionalidade (artigo 18º, nº 2, da Constituição).
3- Sendo questionável, a nível da interpretação do direito ordinário, aquele entendimento e mostrando-se violador da Constituição, deverá o Tribunal fixar a interpretação do nº 3 do artigo 9º do Decreto-lei nº 156/2005, no sentido de que a coima aí prevista não é a aplicável quando, requerida a presença da autoridade policial para remover a recusa, nos termos do nº 4 do artigo 3º do mesmo diploma, essa recusa é removida, sendo o livro de reclamações facultado ao utente.» (fls. 100 a 101).
3. Devidamente notificada para o efeito, a recorrida deixou expirar o prazo legal, sem que viesse aos autos apresentar qualquer resposta.
Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Por se revelar útil à delimitação do objecto do presente recurso, crê-se importante atentar nos seguintes excertos da decisão recorrida:
“Assim, tal como já vinha referido na factualidade constante da decisão administrativa, perante a recusa de apresentação do livro de reclamações, a utente foi obrigada a chamar a Guarda Nacional Republicada, em cuja presença — e somente então — lhe foi disponibilizado o referido livro, tendo aquela utente nele lavrado a reclamação que entendeu — cfr. os pontos 4, 8 e 9 da factualidade apurada.
Ora, tal procedimento, previsto no art° 3º, nº 4, apresenta repercussões ao nível da estatuição punitiva. De facto, ao passo que a ‘singela’ violação do disposto no art. 3º, nº 1, al. b) faz o respectivo agente incorrer numa coima balizada entre os 3.500 euros e os 30.000 euros (no caso das pessoas colectivas), a circunstância de a violação daquele preceito ser acompanhada da “... ocorrência da situação prevista no nº 4 do mesmo artigo — dito art. 3º -, o montante da coima a aplicar não pode ser inferior a metade do montante máximo da coima prevista” — art. 9º, nº 3. Ou seja, a concreta conduta da arguida vem a ser punível com uma coima cuja moldura mínima se situa nos 15.000 euros.
Todavia, pese embora se deva proceder à ‘correcção’ da qualificação jurídica efectuada pela entidade administrativa, de todo o modo a concreta coima por aquela aplicada (7.000 euros) não poderá ser alterada (in pejus), atenta a proibição determinada pelo art. 72°-A, nº 1 do DL 433/82 de 27.10.
(…)
De todo o modo, e adiantando conclusões, afigura-se-nos que a norma prevista no artigo 9°, nºs 1, ai. a) e 3, ao impor como mínimo legal da coima aquele de 15.000 euros (sendo no caso concreto da arguida aquele de 7.000 euros por força da proibição da reformatio in pejus), padece de vicio de inconstitucionalidade.
(…)
Ora, que a imposição de sanções de natureza pecuniária seja meio adequado e necessário à salvaguarda das finalidades ou interesses subjacentes à obrigatoriedade do livro de reclamações, é algo que não se coloca em crise.
Porém o problema em análise coloca-se, sobremaneira, ao nível da proporcionalidade em sentido estrito. De facto, “Admitido que um meio seja ajustado e necessário para alcançar determinado fim, mesmo neste caso deverá perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à “carga coactiva” da mesma. Meios e fins são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, a fim de se avaliar se o meio utilizado é o não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de “medida” ou “desmedida” para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim” — cfr. Gomes Canotilho, in Direito Constitucional, 4ª ed., 316.
Quanto a nós, e salvo o devido respeito por entendimento diverso, a imposição de um limite sancionatório mínimo (15.000 euros) tão gravoso para condutas como a emergente nos autos, subsumível ao disposto no art. 9°, nºs 1, al. a) e 3, é claramente desproporcionado tendo em vista os objectivos que se pretendem defender ou promover com a obrigatoriedade do livro de reclamações e a sua disponibilização incondicionada aos utentes dos estabelecimentos que o devam possuir.
(…)
Tal montante mínimo é, assim, desmedido em face dos objectivos propostos com a criação do livro de reclamações.
(…)
Mas sendo certo que não cumpre aos tribunais pôr em crise as opções legislativas, ainda que não expressamente justificadas, já cumpre ao aplicador aquilatar se o legislador observou os limites que também a si são estabelecidos, decorrentes da Constituição e dos seus princípios. O poder legislativo “... nunca poderá ser entendido como uma carta em branco, mas como uma ordem para a realização da justiça...” — ainda o Ac. da RC de 9.12.09.
Ora, com a imposição de sanções tão gravosas, e cujas consequências económicas muito extravasam, para o grosso dos agentes económicos, a tutela dos interesses e objectivos prosseguidos pela norma sancionatória, esta deixa de constituir um meio para a concretização da ideia de justiça, segundo a ordem de valores constitucionalmente estabelecida, para se tornar em verdadeiro factor de iniquidade.
Nessa medida, e face ao exposto, deverá concluir-se como no Acórdão da RC de 9.12.09 já referenciado, isto é, pela inconstitucionalidade material da norma aplicável a à conduta da arguida.”
Daqui decorre que, apesar de a decisão sancionatória administrativa ter entendido aplicável a norma extraída da conjugação entre os artigos 3º, n.º 1, alínea b), e 9º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, a decisão recorrida entendeu como aplicável o n.º 3 do artigo 9º do referido diploma legal, ainda que, no caso concreto tivesse entendido não ser possível aplicar como coima o montante mínimo de 15.000 €, em função da proibição de “reformatio in pejus”, mas antes o montante efectivamente aplicado pela autoridade administrativa, ou seja, 7.000 €.
Independentemente da justeza desta interpretação normativa – que não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar e, muito menos, contrariar –, torna-se, assim, aquela o objecto do presente recurso.
5. Impõe-se, deste modo, apreciar os seguintes trechos normativos, extraídos do Decreto-Lei n.º 156/2005:
“Artigo 3º
Obrigações do fornecedor de bens ou prestador de serviços
1 – O fornecedor de bens ou prestador de serviços é obrigado a:
(…)
b) Facultar imediata e gratuitamente ao utente o livro de reclamações sempre que por este tal lhe seja solicitado;
(…)
4 – Quando o livro de reclamações não for imediatamente facultado ao utente, este pode requerer a presença da autoridade policial a fim de remover essa recusa ou de que essa autoridade tome nota da ocorrência e a faça chegar à entidade competente para fiscalizar o sector em causa.
(…)
Artigo 9º
Contra-ordenações
1 – Constituem contra-ordenações puníveis com a aplicação das seguintes coimas:
a) De € 250 a € 3500 e de € 3500 a 30 000, consoante o infractor seja pessoa singular ou pessoa colectiva, a violação do disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 3.º (…).
3 – Em caso de violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º, acrescida da ocorrência no n.º 4 do mesmo artigo, o montante da coima a aplicar não pode ser inferior a metade do montante máximo da coima prevista.”
Assim, o cerne da questão a decidir nos presentes autos consiste em determinar se uma interpretação extraída da conjugação entre os artigos 3º, n.º 1, alínea b), 9º, n.º 1, alínea a), e nº 3, todos do Decreto-Lei n.º 156/2005, no sentido de considerar ser aplicável a coima aí prevista, – cujo limite mínimo para as pessoas colectivas é de 15.000 euros – nos casos em que, requerida a presença da autoridade para remover a recusa referida no número anterior, essa recusa é removida sendo o livro de reclamações facultado ao utente, afecta, de modo inadmissível, o princípio constitucional da proporcionalidade.
A título preliminar, deve notar-se que o legislador ordinário goza de ampla liberdade de fixação dos montantes das coimas aplicáveis, desde que respeitados os limites fixados pelo regime geral do ilícito contra-ordenacional e que as sanções aplicadas sejam “efectivas”, “proporcionadas” e “dissuasoras”, de modo a garantir o efeito preventivo daquelas, sob pena de os destinatários das normas não se sentirem compelidos a cumpri-las (com efeito, a fixação de coimas com montantes irrisórios face ao benefício colhido da prática do ilícito contra-ordenacional tende a enfraquecer o próprio cumprimento da lei; assim, ver Paulo Otero / Fernanda Palma, Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social, in «RFDUL» (Separata), 1996, n.º 2, pp. 562 e 563).
Neste sentido, o Tribunal Constitucional tem reconhecido ao legislador ordinário uma livre margem de decisão quanto à fixação legal dos montantes das coimas a aplicar (ver Acórdãos n.º 304/94, n.º 574/95 e n.º 547/00, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), ainda que ressalvando que tal liberdade de definição de limites cessa em casos de manifesta e flagrante desproporcionalidade ou de excessiva amplitude entre os limites mínimo e máximo. A título de exemplo, através do Acórdão n.º 574/95 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) – e ainda que tenha, naquela situação, afastado a inconstitucionalidade da norma extraída do n.º 16 do artigo 670º do Código dos Valores Mobiliários) – o Tribunal Constitucional expressou o seguinte entendimento:
“Quanto ao princípio da proporcionalidade das sanções, tem, antes de mais, que advertir-se que o Tribunal só deve censurar as soluções legislativas que cominem sanções que sejam desnecessárias, inadequadas ou manifesta e claramente excessivas, pois tal o proíbe o artigo 18º, nº 2, da Constituição. Se o Tribunal fosse além disso, estaria a julgar a bondade da própria solução legislativa, invadindo indevidamente a esfera do legislador que, aí, há-de gozar de uma razoável liberdade de conformação [cf., identicamente, os acórdãos nºs 13/95 (Diário da República, II série, de 9 de Fevereiro de 1995) e 83/95 (Diário da República, II série, de 16 de Junho de 1995)], até porque a necessidade que, no tocante às penas criminais é - no dizer de FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal II, 1988, policopiado, página 271) - 'uma conditio iuris sine qua non de legitimação da pena nos quadros de um Estado de Direito democrático e social', aqui, não faz exigências tão fortes.
De facto, no ilícito de mera ordenação social, as sanções não têm a mesma carga de desvalor ético que as penas criminais - para além de que, para a punição, assumem particular relevo razões de pura utilidade e estratégia social.”
Na sequência desta linha argumentativa, importa, pois, verificar se o montante mínimo fixado em 15.000 € para sancionar a recusa de apresentação do livro de reclamações, por uma pessoa colectiva, num caso em que, requerida a presença da autoridade para remover a referida recusa, ela é removida, sendo o livro de reclamações facultado ao utente, é (ou não) desproporcionado.
Desde logo, verifica-se que o n.º 3 do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 156/2005 determina que a agravação do montante mínimo da coima aplicável depende da “ocorrência da situação prevista no n.º 4 do mesmo artigo [3º]”. O referido preceito legal (supra transcrito) determina, pois, que a falta de apresentação do livro de reclamações permite ao utente requerer a presença de autoridade policial com vista a colocar termo à referida recusa de apresentação.
Note-se que o preceito é susceptível de se aplicar a duas situações distintas: i) por um lado, a pessoa colectiva pode persistir na recusa de facultar o livro de reclamações ao consumidor, mesmo que interpelado pela autoridade policial; ii) por outro lado, face à intervenção da autoridade policial, a pessoa colectiva pode conformar-se com o cumprimento da lei – como sucedeu no caso em concreto ora em apreço. Não obstante a diversidade de situações poder ser ponderada pelo tribunal competente para conhecer da impugnação da sanção contra-ordenacional, quer para efeitos de determinação da aplicabilidade daquela norma agravadora às situações em que a pessoa colectiva adequa a sua conduta ao Direito, cumprindo o dever legal de apresentação do livro de reclamações, quer para efeitos de determinação da medida concreta da pena, em função da culpa manifestada, a verdade é que, quer num caso quer noutro, o bem jurídico violado é exactamente o mesmo, ou seja, a protecção dos consumidores constitucionalmente consagrada.
Não cabendo ao Tribunal Constitucional – mas antes ao tribunal recorrido – definir qual a melhor interpretação daquele preceito legal, tendo em conta todos os bens jurídicos e valores constitucionalmente protegidos em confronto, compete-lhe, no entanto, avaliar se a interpretação normativa desaplicada nos autos se afigura (ou não) como contrária ao princípio da proporcionalidade (artigo 2º da CRP).
Na linha da jurisprudência consolidada neste Tribunal, a propósito da fixação dos montantes das coimas a aplicar (a título de exemplo, ver Acórdãos n.º 304/94, n.º 574/95 e n.º 547/2000, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), o Tribunal Constitucional deve coibir-se de interferir directamente nesse espaço de livre conformação legislativa, apenas lhe cabendo – sempre que necessário – acautelar que tais opções legislativas não ferem, de modo flagrante e manifesto, o princípio da proporcionalidade. A este propósito, deve sempre ter-se presente que “Só um método interpretativo rigoroso e controlado limita a invasão pelos tribunais constitucionais da esfera legislativa e impede a actividade judicativa de se tornar um «contra-poder legislativo»” (Fernanda Palma, O legislador negativo e o intérprete da Constituição, in «O Direito», 140º (2008), III, 523).
Ora, a agravação do montante mínimo da coima a suportar pelas pessoas colectivas, em 11.500 €, não pode considerar-se manifestamente desproporcionada, visto que tem por finalidade promover o cumprimento voluntário de um dever legalmente imposto que, por sua vez, visa acautelar os direitos dos consumidores constitucionalmente consagrados (artigo 60º, nº 1, da CRP. Conforme já supra notado, tal cumprimento voluntário apenas é promovido mediante a aplicação de sanções “efectivas” e “dissuasoras”.
Assim, a interpretação desaplicada pela decisão recorrida da norma extraída da conjugação entre os artigos 3º, n.º 1, alínea b), 9º, n.º 1, alínea a), e nº 3, todos do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, no sentido de considerar ser aplicável a coima aí prevista, – cujo limite mínimo para as pessoas colectivas é de 15.000 euros – nos casos em que, requerida a presença da autoridade para remover a recusa referida no número anterior, essa recusa é removida sendo o livro de reclamações facultado ao utente não é inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade (artigos 2º e 18º, n.º 2, da CRP).
III – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Conceder provimento ao recurso;
E, em consequência:
b) Não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação entre os artigos 3º, n.º 1, alínea b), 9º, n.º 1, alínea a), e nº 3, todos do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, no sentido de considerar ser aplicável a coima aí prevista, – cujo limite mínimo para as pessoas colectivas é de 15.000 euros – nos casos em que, requerida a presença da autoridade para remover a recusa referida no número anterior, essa recusa é removida sendo o livro de reclamações facultado ao utente;
c) Determinar a remessa dos autos ao tribunal recorrido para que a decisão proferida seja reformada, em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade, nos termos previstos pelo n.º 2 do artigo 80º da LTC.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2011.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.