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Proc. nº 317/92
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 – O Tribunal de Família de Lisboa, por decisão de 19 de Novembro de 1984, julgou procedente a acção de divórcio interposta por A..., ora recorrido, contra M..., ora recorrente, tendo julgado improcedente a reconvenção deduzida pela Ré. Considerou o Tribunal que os factos provados integravam o fundamento de divórcio previsto na alínea a) do artigo 1781º do Código Civil – separação de facto por seis anos consecutivos – decretando, em consequência, a dissolução do casamento. Entendeu ainda o Tribunal não ser possível declarar a culpa dos cônjuges na dissolução do casamento, por não ter sido provada matéria de facto que permitisse esse juízo.
2 – Inconformados, Autor e Ré recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 18 de Abril de 1989, confirmou a decisão recorrida na parte em que esta havia decretado a dissolução do casamento com fundamento na alínea a) do artigo 1781º do Código Civil. Decidiu igualmente o Tribunal não declarar a culpa dos cônjuges na dissolução do casamento '...por carência de matéria de facto que o permita fazer.'
3 – De novo inconformados, Autor e Ré recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo a Ré - ora recorrente - suscitado nas respectivas alegações de recurso (conclusão 7ª) a inconstitucionalidade dos artigos 342º, 1779º a 1781º e
1782º, nº 2, todos do Código Civil, por entender que tais normas, na interpretação que delas vinham fazendo as instâncias, violavam os princípios constitucionais da igualdade, certeza e segurança jurídica e, nomeadamente, o artigo 206º da Constituição.
4. Notificado para responder às alegações apresentadas pela Ré, disse o Autor, no que especificamente se refere à questão de constitucionalidade suscitada:
'Não se vislumbra, in casu, qualquer violação do artigo 206º da CRP e, ao contrário do defendido pela recorrente, os alegados princípios constitucionais da igualdade, certeza e segurança jurídica – aliás vaga e desconexamente apontados para suscitar um eventual processo de fiscalização concreta de constitucionalidade – não impunham qualquer interpretação diferente dos artigos
1779º, 1782º, nº 2 e ainda 342º, todos do C. Civil'.
5. O Supremo Tribunal de Justiça, por decisão de 22 de Novembro de 1990, decidiu negar provimento aos recursos, confirmando na íntegra a decisão recorrida. No que especificamente se refere às questões de constitucionalidade suscitadas, disse o Supremo Tribunal de Justiça:
'A conclusão restante desta recorrente afirma que as instâncias deram interpretação aos artigos 1779º, 1782º, nº 2 e ainda 342º, todos do C. Civil, que foi errada, e diferente da defendida na sua alegação. Logo a inconstitucionalidade que aí se aponta é, não a desses preceitos legais, mas sim da interpretação que deles foi feita. Só que a inconstitucionalidade é atributo de norma ou normas jurídicas (artigos
277º, 280º, 281º, 282º, entre outros, da Constituição da República Portuguesa de
1976, na sua 2ª revisão), e não de interpretações que delas se faça. Pelo que fica rejeitada também a conclusão 7ª da Maria Luisa, sendo de salientar que não vemos onde tenha havido sequer um começo de violação dos princípios que a recorrente aí invoca, aliás sem grande convicção'.
6. Depois de ver rejeitado, por inadmissibilidade, o recurso que pretendeu interpor para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça com fundamento na existência de acórdão transitado em oposição, apresentou a Ré, em 26 de Dezembro de 1991, ao abrigo da alínea b) do nº 1, do artigo 70º, da Lei nº 28/82, o recurso para o Tribunal Constitucional que ora se aprecia. No termos do respectivo requerimento de interposição as normas cuja constitucionalidade a recorrente pretende ver apreciadas são as que se extraem dos artigos 1779º,
1782º, nº 2 e 342º, todos do C. Civil, com a interpretação que lhes foi dada pela decisão recorrida.
7. Admitido o recurso foi a recorrente notificada para apresentar alegações, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
'1. Os preceitos legais indicados, com a interpretação que lhes dá a recorrente estão em perfeita harmonia com o princípio constitucional da igualdade, que executam.
2. O qual impõe que, quer o legislador, quer o intérprete tenham de ter em conta critérios segundo os quais deva pautar-se, em termos de considerar igual aquilo que é igual e desigual aquilo que é desigual.
3. Nesta esteira, a maior ou menor facilidade, ao dispor de cada sujeito de direitos, para fazer a demonstração das questões controvertidas, é tida em conta pelo legislador, nos termos do disposto no artigo 342º do Código Civil, com a interpretação que lhe demos ao distinguirmos os factos constitutivos dos impeditivos, segundo os critérios objectivos de ROSENBERG, de relacionamento das normas entre si em termos de distinguir a regra da excepção, e deve também ser tido em conta pelo intérprete.
4. Critérios esses que não podem ser neutralizados pela referência à culpa de qualquer outro dispositivo legal do mesmo Código, e nomeadamente pelo disposto no artigo 1779º do Código civil, pela expressão «violação culposa».
5. A culpa no nosso Código Civil é referida como um facto, no sentido de imputação ao agente de um facto reprovado pela norma, e referida como um juízo de valor, num sentido abrangedor da ordem jurídica no seu conjunto (de que são exemplos as normas do artigo 487º, nº 1 e do artigo 487º, nº 2, do C. Civil).
6. Ora a prova da culpa entendida nesse sentido abrangedor, como o entende a decisão recorrida, consubstancia aplicação de norma arbitrária – à margem dos critérios referidos nestas conclusões 1 a 3 – entendimento esse que justifica a aplicação dos artigos 1779º a 1782, do Código Civil, e 342º, do mesmo Código, pela decisão recorrida, com uma interpretação desconforme com a Constituição.
7. Na verdade, foram aplicados os artigos 1781º, alínea a) e 1782º, ambos do C. Civil, como se essas normas não tivessem sido consumidas pela norma do artigo
1779º, nº 1, do mesmo Código, no caso subjudice, face às três primeiras conclusões da recorrente nas alegações de recurso para o Supremo tribunal de Justiça.
8. E, de qualquer modo, como se a referência à culpa do artigo 1782º, nº 2, do Código Civil, ao remeter para o disposto no artigo 1787º, não remetesse também para o disposto no artigo 1779º, ambos do C. Civil.
9. O que marginaliza os critérios impostos pelo princípio constitucional da igualdade e implica a aplicação de normas arbitrárias e contrárias à segurança e
à certeza jurídicas, como valores subjacentes a todo o direito.
10. Para além de neutralizar as normas do artigo 342º do C. Civil, que assim é interpretado como se os critérios aí definidos fossem insuficientes para regular a repartição do ónus, pela simples referência arbitrária à culpa por parte do legislador.
11. Pois não se descortina como é que as acções de Estado – sobretudo nos casos em que, não admitindo as figuras da admissão e da confissão, a colocar já o requerente em maiores dificuldades – possam ainda atirar para cima do recorrente com a sobrecarga dos actos normalmente considerados impeditivos, quando nem isso acontece em processo penal, como se explicou ao longo destas alegações, pela simples referência à culpa.
12. Além de ficar por entender porque é que a referência à culpa no artigo 478º, nº 1 do Código Civil – como a entende pacificamente a doutrina obrigacionista – no sentido de imputação de um facto reprovável -, há-de ter sentido diferente, e igual ao do artigo 487º, nº 2 do C. Civil, no artigo 1779º e seguintes do C. Civil.
13. É violada ainda a dignidade humana protegida, nomeadamente no artigo 1º, na medida em que se dispensa a presunção de inocência, ao impor-se ao requerente de um divórcio essa prova'.
8. Igualmente notificado para alegar, o recorrido limitou-se a remeter para o teor dos acórdãos de fls. 233 a 243 verso e de fls. 286 a 290 verso, bem como para a doutrina a que ali se faz referência.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II - Fundamentação
9 - Delimitação do objecto do recurso
É o seguinte o teor dos artigos em que se inserem as normas cuja constitucionalidade a recorrente pretende ver apreciada por este Tribunal: Artigo 1779º
(Violação culposa dos deveres conjugais)
1. Qualquer dos cônjuges pode requerer o divórcio se o outro violar culposamente os deveres conjugais, quando a violação, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade de vida em comum.
2. (...) Artigo 1782º
(Separação de facto)
1.(...)
2. Na acção de divórcio com fundamento em separação de facto, o juiz deve declarar a culpa dos cônjuges, quando a haja, nos termos do artigo 1787º.
Artigo 342º
(Ónus da prova)
1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.
Entende a recorrente – entendimento que vem sustentando já desde a 1ª instância
– que tendo a decisão recorrida considerado provado que, 'em Fevereiro de 1974, o autor saiu de casa e, desde então, não mais conviveu com a ré' (fls. 288), o disposto nas normas supra referidas impunha ao tribunal que tivesse decretado o divórcio com fundamento no nº 1 do artigo 1779º do Código Civil - violação culposa do dever de coabitação por parte do autor; ou, tendo decretado o divórcio com fundamento na alínea a) do artigo 1781º - separação de facto por mais de seis anos -, tivesse, em obediência ao disposto no nº 2 do artigo 1782º, ambos do Código Civil, considerado o autor único ou, pelo menos, principal culpado do divórcio. Em suma: entende a recorrente que uma vez tendo demonstrado que foi o autor que, com conhecimento e vontade, saiu de casa, mais não lhe é – nem, no seu entender, pode ser, sob pena de inconstitucionalidade - exigido em matéria de repartição do ónus da prova - para o efeito de se ter por provada a existência de violação culposa do dever de coabitação e de culpa no divórcio. Não foi, porém, esse o entendimento que a decisão recorrida – bem como as instâncias inferiores – fizeram do preceituado nos artigos supra referidos. Disse-se, a propósito, logo na decisão do Tribunal da Relação de Lisboa:
'Não vem posta em causa a procedência da acção com fundamento no disposto na alínea a), do artigo 1781º, do Código Civil – separação de facto por seis anos consecutivos. Do que a ré discorda é do facto de na sentença apelada não se ter declarado o autor como único ou, ao menos, principal culpado. Na sua óptica, e em síntese, provado que foi o autor que saiu da casa em que viviam juntos, em Fevereiro de 1974, onde não mais voltou, tal facto é revelador da violação, por parte dele, do dever conjugal de coabitação. Além disso, não tendo o mesmo provado, também, qualquer causa justificativa desse seu comportamento – que o pudesse isentar de culpa – deveria a sentença recorrida tê-lo condenado, como referiu. Também aqui não têm razão a apelante.
É hoje incontroverso que o divórcio litigioso decretado com fundamento na separação de facto por seis anos consecutivos assenta no fracasso da falência do casamento. No dizer do Prof. Antunes Varela, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 115-314, «a razão determinante do divórcio, em tal caso, não reside em nenhuma falta imputada a um dos cônjuges, mas na própria verificação de uma situação de facto – não existir comunhão de vida entre os cônjuges e haver da parte de ambos ou de um deles, o propósito de não a restabelecer». Isso, porém, não significa que o julgador não tenha de declarar a culpa dos cônjuges, quando a haja, nos termos do artigo 1787º, ex vi do nº 2, do artigo
1782º, ambos do Código Civil. Na sentença recorrida, o tribunal a quo entendeu não poder fazer declaração sobre a culpa dos cônjuges na dissolução do casamento, por não ter sido provada matéria de facto que lhe permitisse esse juízo. Ensina o Prof. Pereira Coelho, na mesma centenária Revista, ano 114-183/184, que
«a declaração do cônjuge culpado deve exprimir o resultado de um juízo global sobre a crise matrimonial». Mas tal não é possível com a matéria de facto dada como provada, já que se desconhecem as circunstâncias que levaram o autor a sair do lar conjugal. E isto apesar de cada um dos cônjuges estar interessado em provar a culpa do outro cônjuge, até por ambos terem pedido a decretação do divórcio com o mesmo fundamento – alínea a), do artigo 1781º, do Código Civil. Ora, se é certo que no divórcio sanção, fundado na violação culposa dos deveres conjugais, é hoje entendimento comum pertencer ao autor alegar e provar a culpa do réu na violação dos deveres conjugais, já no divórcio remédio, baseado na ruptura da vida em comum, tal não se torna necessário. A declaração do cônjuge culpado deverá considerar o conjunto da prova produzida, quer as culpas do cônjuge réu, quer as do cônjuge autor, e tanto as que foram invocadas na acção, como na reconvenção, como fundamento do pedido, como também as que não podiam ser invocadas, ou não foram mesmo invocadas, como causa de divórcio. Mas sendo assim, como é evidente, não era o cônjuge marido que tinha o ónus de provar os factos justificativos da sua saída de casa. Não o tinha como autor, face ao fundamento de divórcio que invocou, e com base no qual ele foi decretado; não o tinha como réu, relativamente a um dos fundamentos da reconvenção – violação culposa do dever de coabitação – deduzida pela ré/apelante, autora relativamente ao pedido reconvencional, que não o conseguiu fazer vingar, apesar de lhe competir o ónus da prova. Pelas respostas aos quesitos, repete-se, ficou apenas provado que o autor marido saiu do lar conjugal em fevereiro de 1974 e que desde então não mais conviveu com a ré, além de não existir nem da parte dele, nem da parte da ré mulher, vontade de restabelecer a vida em comum. Nem a tese do autor, nem a da ré – relativamente às razões que terão levado cada um deles a sair do lar conjugal, em fevereiro de 1974 e em 1971, respectivamente
– se provou, como se pode ver pelas respostas dadas aos quesitos 1,4,5,6 e 7, todos não provados, e pelas respostas que efectivamente tiveram os quesitos 2, 8 e 9. Não podia, pois, ser outra a decisão sobre a matéria da culpa, pelo que, neste ponto, não nos merece qualquer censura a sentença'. E, mais à frente:
'Sustenta a ré/apelante que em face da matéria de facto provada não podia ter deixado de ter sido julgado procedente o pedido de divórcio que deduziu na reconvenção, com fundamento na violação culposa do dever de coabitação por parte do marido e separação de facto por mais de seis anos consecutivos, com culpa exclusiva ou principal do autor. Por tudo aquilo que dissemos na alínea anterior já se pode concluir que a apelante não tem razão quando pretende ver julgado procedente o pedido de divórcio que formulou com fundamento na violação culposa por parte do marido do dever de coabitação. Insiste, porém, que provado pelas respostas em conjunto aos quesitos 8 e 9, que o autor saiu de casa em Fevereiro de 1974 e desde então não mais conviveu consigo, provada está a violação desse dever de coabitação. Que o dever de coabitação foi violado parece, de facto, não haver dúvidas. O que o artigo 1779º do Código Civil exige, porém, para que tal violação possa servir, ou ser invocada, como fundamento para a decretação do divórcio é que tivesse sido praticada culposamente. Apoia-se a apelante no acórdão do S.T.J. de 23 de Fevereiro de 1983, publicado no BMJ nº 324-584, em que se defendeu a aplicação ao contrato de casamento da regra geral do artigo 779º, nº1, do Código Civil, em matéria de incumprimento. Segundo tal orientação, a violação dos deveres conjugais, como violação do contrato matrimonial, presume-se culposa, pelo que compete ao cônjuge autor, que pede o divórcio, alegar e, necessariamente, provar, apenas a objectividade da violação do dever conjugal, competindo ao cônjuge réu, a quem se imputa essa violação, ilidir a presunção, provando que não procedeu com culpa. Esta atraente orientação jurisprudencial – que bem servia a tese da ré/reconvinte/apelante – ficou, porém, isolada. Não resistiu à crítica que logo entendeu dever fazer-lhe o Professor Pereira Coelho, na citada Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117-64. Na sua importante anotação, o ilustre Mestre demonstra, em termos convincentes, que aquele princípio geral dos contratos não é aplicável ao contrato matrimonial. O seu entendimento vai no sentido de que o critério legal de repartição do ónus da prova do artigo 342º, do Código Civil, impõe a conclusão de que é ao cônjuge autor que pertence alegar e provar a culpa do réu nas acções de divórcio propostas com fundamento em violação dos deveres conjugais, nos termos do artigo
1779º, do Código Civil. E com evidente interesse, afirma a fls. 92, da citada Revista:
«Com efeito, não é qualquer violação dos deveres conjugais que constitui causa de divórcio, mas tão só a violação culposa que, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade de vida em comum. Só a violação dos deveres conjugais que revista todas estas características é que dá ao cônjuge ofendido o direito de requerer o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens – o facto constitutivo do direito ao divórcio ou à separação é este facto jurídico global, integrado por todos os factos ou circunstâncias referidos. Deve, pois, o cônjuge autor alegar e provar, não apenas a objectividade da violação do dever conjugal, mas ainda factos tendentes a provar a culpa do cônjuge ofensor e a gravidade da violação cometida ou a reiteração das faltas, factos de que possa inferir-se a conclusão de que a vida em comum se acha comprometida em consequência da violação ou das violações praticadas». Em síntese, dir-se-á, ainda, que para o referido Professor estando o ónus da prova a cargo do autor, isso obriga-o a trazer ao processo – e, necessariamente, a provar – circunstâncias ou dados de facto que permitam ao juiz formar uma convicção positiva sobra a culpa do réu, de harmonia com as regras da experiência. Como ensino, também, o Professor Antunes Varela, em Direito da Família, pp. 407, nota 22, a culpa pressupõe a imputabilidade do agente – a capacidade do cônjuge prevaricador para entender e valorar os actos por ele praticados e a capacidade de autodeterminação – bem como a reprovabilidade da sua conduta, em face das circunstâncias concretas registadas. Ora, não estando provadas as circunstâncias concretas que levaram o autor marido
– réu quanto ao pedido reconvencional – a sair de casa, não é possível formular um juízo de censura da sua referida conduta, o que inviabiliza, claramente, a atribuição de culpa. Mas além disso, os poucos factos provados também são manifestamente insuficientes para, mesmo através do recurso às regras da experiência, se poder concluir que o cônjuge marido teria agido culposamente quando deixou o lar conjugal.' No mesmo sentido se pronunciou a decisão recorrida. Aí se refere:
'A separação de facto entre os cônjuges, que dure consecutivamente por seis ou mais anos, e seja acompanhada pelo propósito, pelo menos de um deles (aqui de ambos), de não restabelecer a vida em comum, funciona como causa de divórcio litigioso (Antunes Varela, Direito da Família, ed. 1982, p. 412), fundado directamente nessa situação de fracasso matrimonial, que prudentemente deve ter-se com irreversível; com efeito não deve ir buscar-se esse fundamento aos
«factos ilícitos ou moralmente reprováveis, que tenha causado o desentendimento entre marido e mulher...», (último autor referido, Revista de Legislação e Jurisprudência, 115, p. 314; e Pereira Coelho, mesma publicação, 116, p. 217, nota 8). Assim sendo, não é pela circunstância de haver sido o autor a sair de casa, onde residia com a ré, que pode extrair-se, isoladamente, ilações sobre a imputação de culpa, no plano do artigo 1787º. Com efeito, e como entendeu este Supremo Tribunal, em acórdão de 4 de Dezembro de 1986 (Revista de Legislação e Jurisprudência, 362, p. 544), quando o divórcio litigioso é decretado com base na separação de facto por seis anos consecutivos, e tenha sido o autor quem saiu do lar conjugal, é possível que a culpa lhe caiba, mas também é de admitir que haja sido a sua mulher quem motivou culposamente essa saída'. A questão que agora constitui objecto de recurso relaciona-se assim com o problema da repartição do ónus da prova da culpa no âmbito das acções de divórcio. Problema que, como os arestos que supra citámos já deixam entender, não constitui questão nova na jurisprudência portuguesa. Para uma determinada corrente jurisprudencial – hoje, já ultrapassada – o ónus da prova estaria a cargo do cônjuge réu, a quem incumbiria, nesta tese, provar que não agiu com culpa (cfr., entre outros, Ac. STJ de 30/11/1971, BMJ 211, 306; Ac. STJ de
15/2/1977, BMJ 264, 201; Ac. STJ de 23/2/83, BMJ 324, 584); para uma outra corrente, hoje amplamente dominante, e a que aderiu também a decisão recorrida, será ao cônjuge autor que incumbe provar a culpa do cônjuge réu na violação do dever conjugal(cfr., entre outros, Ac. STJ de 12/06/1984, BMJ 228, 420; Ac. STJ de 10/12/1985, BMJ 352, 366; Ac. STJ de 17/06/86, BMJ 358, 544). Não cumpre ao Tribunal Constitucional, como é sabido, tomar posição nesta querela jurisprudencial, optando por uma das interpretações dos preceitos em análise. Ao Tribunal Constitucional cumpre apenas decidir se as normas que se extraem desse preceitos na interpretação por que efectivamente optou a decisão recorrida estão ou não de acordo com a Constituição, nomeadamente com as normas e princípios invocados pela recorrente.
É, pois, apenas a questão da compatibilidade com a Constituição das normas que na interpretação da decisão recorrida se extraem dos artigos 1779º, nº1, 1782º, nº 2 e 342º, todos do Código Civil, que a recorrente contesta, que constitui agora o objecto do presente recurso de constitucionalidade. E, porque é assim, importa delimitar com maior rigor o sentido normativo que a decisão recorrida extrai dos preceitos cuja constitucionalidade é questionada, pois é este sentido normativo - e não eventuais outros que a recorrente possa imputar à decisão recorrida – que tem de ser confrontado com a Constituição. A tese da decisão recorrida assenta, fundamentalmente, nos seguintes pressupostos: i) No que se refere ao fundamento de divórcio previsto no artigo 1779º do Código Civil – violação culposa de um dever conjugal -, entende a decisão recorrida que a culpa do cônjuge réu é um elemento constitutivo do direito ao divórcio; ii) Nessa sequência, entende a decisão recorrida que é ao cônjuge autor que incumbe (de acordo com a regra enunciada no artigo 342º, nº 1, do mesmo diploma) fazer a prova de que a violação do dever conjugal é culposa. iii) Entendeu, por outro lado, o Supremo Tribunal de Justiça, que essa prova – no que concretamente se refere à 'violação culposa' do dever de coabitação - não se basta com a prova de que foi o cônjuge réu quem, consciente e voluntariamente, saiu de casa. Entende a decisão recorrida que ao cônjuge autor cumpre ainda alegar e provar os factos que permitam ao Tribunal formular o juízo de censura em que, afinal, a culpa se traduz. iv) Finalmente, entende ainda a decisão recorrida que também quando o divórcio é decretado com fundamento na separação de facto por seis anos consecutivos, não basta, para que o tribunal possa declarar a culpa de um dos cônjuges, nos termos do disposto no artigo 1782º, nº 2, do Código Civil, demonstrar que foi esse cônjuge quem saiu de casa.
É este entendimento do disposto nos preceitos supra referidos que a recorrente reputa de inconstitucional, por, no seu entender, violar os princípios constitucionais da igualdade, certeza e segurança jurídica, bem como a dignidade da pessoa humana consagrada no artigo 1º da Constituição. Vejamos se tem razão.
9 – A alegada violação dos princípios da igualdade, certeza e segurança jurídica
9.1. - O ponto de partida na argumentação da recorrente é o de que os princípios constitucionais supra referidos impõem, quer ao legislador quer ao intérprete, critérios de distribuição do ónus da prova, em termos de permitir tratar igual aquilo que é igual e desigual aquilo que é desigual (conclusão 2). No caso concreto isso implica, ainda na perspectiva da recorrente, que a maior ou menor facilidade, ao dispor de cada sujeito de direitos, para fazer a demonstração das questões controvertidas não pode deixar de ser tida em conta pelo legislador, em primeiro lugar, e, depois, pelo intérprete, na definição dos critérios de distribuição do ónus da prova (conclusão 3).
É, pois, partindo destas premissas – a de que o princípio da igualdade impõe que se dê um tratamento igual ao que é substancialmente igual e diferente ao que é substancialmente diferente, e a de que esse princípio é relevante em matéria de distribuição do ónus da prova – que a recorrente chega à inconstitucionalidade dos artigos 1779º, nº 1, 1782º, nº 2 e 342º do Código Civil, quando interpretados com o sentido que lhes deu a decisão recorrida. Sendo correctas as premissas de que parte a recorrente - o princípio da igualdade pode, de facto, enunciar-se naqueles termos, e é relevante em sede de definição dos critérios de distribuição do ónus da prova – já não procedem, contudo, como passaremos a demonstrar, as várias conclusões a que chega em matéria de conformidade com a Constituição, e designadamente com o supra enunciado princípio da igualdade, das normas que a decisão recorrida efectivamente extrai dos preceitos supra referidos. Vejamos porquê.
9.2. – Na tese da recorrente a alegada violação dos princípios constitucionais da igualdade, certeza e segurança jurídica parte, desde logo, de um incorrecto entendimento do significado da expressão 'violação culposa' utilizada no artigo
1779º, nº 1, do Código Civil. Na sua perspectiva, a referência à violação 'culposa' – no sentido em que a expressão é utilizada naquele preceito - apenas pode significar a necessidade de imputar ao agente (ao seu entender e querer) o facto previsto na norma como ilícito. Provado que o marido agiu com conhecimento e vontade ao sair de casa, está, mais uma vez nesta perspectiva, provada a sua culpa na violação do dever de coabitação. Não entendeu assim a decisão recorrida, para quem a possibilidade de formulação do juízo de 'culpa' exigido pelo artigo 1779º, nº 1, implica, ao contrário do que sustenta a recorrente, que se prove algo mais do que a simples prova de que o agente conhecia e queria praticar o facto que a lei prevê como ilícito – no caso abandonar o lar conjugal. Na tese da decisão recorrida a saída do lar conjugal de um dos cônjuges, de forma consciente e voluntária, do lar conjugal, pode ou não ser culposa. Como referimos supra, não compete ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a correcção do entendimento por que optou a decisão recorrida, mas apenas verificar da compatibilidade com a Constituição das normas que nessa interpretação a decisão recorrida extrai daqueles preceitos. Porém, não deixaremos de referir, por ser relevante, que o sentido da expressão
'violação culposa' por que optou a decisão recorrida corresponde ao sentido que a essa expressão é dado por uma parte significativa da doutrina civilística portuguesa. Culpabilidade é, nas palavras de PESSOA JORGE (Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Lisboa, 1968, pp. 315) 'a qualidade ou conjunto de qualidades do acto que permitem formular, a respeito dele, um juízo
ético-jurídico de reprovação ou censura (...)'. E, mais à frente (ob. cit., p.
319), refere expressamente este autor que 'a culpabilidade não se confina à simples verificação da vontade de praticar o acto ilícito, pois tem de atender também à motivação do agente; só à luz desta será possível emitir algum juízo de valor ético-jurídico'. No mesmo sentido, i.e., no sentido de que o conceito de 'violação culposa' não se reconduz à constatação da voluntariedade do comportamento em que se traduz o facto ilícito, e especificamente sobre a culpa do cônjuge na acção de divórcio, refere MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (O Regime Jurídico do Divórcio, Coimbra, Almedina, 1991, pp. 57 e ss.): 'Dado que o dolo e a negligência, como elementos da ilicitude da conduta, absorvem a relação psicológica do agente com essa conduta, para a culpa fica reservada uma apreciação normativa ou valorativa sobre a atitude ou a motivação interior do agente (...). A culpa decorre de um juízo de censurabilidade sobre a conduta do cônjuge, em cuja formulação devem ser consideradas as condições que justificam que lhe seja dirigida essa censura. A censurabilidade da conduta é uma apreciação do desvalor que resulta do reconhecimento de que o cônjuge, nas circunstâncias concretas em que actuou, poderia ter conformado a sua conduta de molde a assegurar a satisfação do dever conjugal cujo cumprimento lhe era exigível nesses mesmos condicionalismos.' Finalmente, e ainda no mesmo sentido, refere ANTUNES VARELA (Das Obrigações em Geral, 7ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, vol. I, pp. 554-555): 'Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo'.
9. 3. – Por outro lado, entende a recorrente que os critérios de distribuição equitativa do ónus da prova – a que o legislador e o intérprete estão vinculados
- são neutralizados pela referência à culpa no artigo 1779º do Código civil, se se entender – como faz a decisão recorrida - que, por força dessa referência se transforma aquilo que é, na sua essência, um elemento extintivo do direito, num elemento constitutivo desse mesmo direito, com a consequência de, por força da regra do artigo 342º, nº 1, do Código Civil, levar a uma distribuição insustentável, à luz daqueles princípios, do ónus da prova. Sobre esta questão deve começar por salientar-se que o entendimento por que optou, nesta parte, a decisão recorrida - no sentido de que a culpa do cônjuge réu é um elemento constitutivo do direito do autor ao divórcio com fundamento no disposto no artigo 1779º, nº 1, do Código Civil, e, portanto, cuja prova compete ao autor de acordo com o que se dispõe no nº 1 do artigo 342º, do mesmo diploma
- é hoje amplamente dominante quer na jurisprudência – como já vimos – quer na doutrina portuguesa (nesse sentido, cfr. ANTUNES VARELA, Direito da Família,
1982, pp. 475 e ss.; PEREIRA COELHO, 'Anotação ao acórdão do STJ de 17/2/83', Revista de Legislação e Jurisprudência, 117 (1984/1985), 64 e 91 e ss.; CARLOS MATIAS, 'Da culpa e da inexigibilidade de vida em comum no divórcio', Temas de Direito da Família (Coimbra, 1986, pp. 75 e ss.). Acresce, que esta solução normativa – a identificação da culpa do réu como um elemento constitutivo do direito do autor - não é, sequer, uma especificidade do direito ao divórcio com fundamento na violação de um dever conjugal. Pelo contrário, a referência à culpa do réu como elemento constitutivo do direito que o autor pretende fazer valer em juízo constitui igualmente a regra em matéria de responsabilidade civil por factos ilícitos. Nesse sentido estipula o artigo 487º, nº 1, do Código Civil, como regra, que 'É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção de culpa'. A regra é pois, mesmo fora dos domínios em que agora a questão se discute – direito ao divórcio litigioso com fundamento na violação de um dever conjugal -, a de que a prova da culpa do lesante cabe ao titular do direito violado, na medida em que é um seu elemento constitutivo, e não àquele contra quem se pretende fazer valer esse mesmo direito. Mas, mesmo nas hipóteses em que exista a favor do lesado uma presunção de culpa do lesante, situação de que é exemplo o disposto no artigo 799º, nº 1, ainda assim a culpa não deixa, só por isso, de ser considerada um elemento constitutivo do direito do autor. A existência de uma presunção de culpa a favor do lesado não impede que esta deva continuar a ser considerada como um elemento constitutivo do seu direito. Trata-se apenas, nestas hipóteses, de um elemento constitutivo do direito do autor cuja verificação a lei presume. Nesse sentido refere GALVÃO TELLES (Direito das Obrigações, 6ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, p. 326): 'Assim resulta do disposto no artigo 342º, nº1: àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. Os factos constitutivos do direito alegado, numa acção de responsabilidade obrigacional, são, como sabemos, a inexecução da obrigação, a culpa, os prejuízos e a causalidade (...). Quanto à culpa, não tem o credor de a provar, apesar de se tratar de um elemento constitutivo do seu alegado direito à indemnização, porque a respeito dela dá-se a inversão do ónus da prova em virtude de uma presunção legal (...)'.
9.4. - Em suma: na tese da recorrente é da articulação daqueles dois entendimentos – por um lado o entendimento de que a culpa do cônjuge réu é um elemento constitutivo do direito ao divórcio e, portanto, de que é ao autor que cabe, de acordo com a regra enunciada no nº 1, do artigo 342º, do Código Civil, fazer a sua prova; e, por outro lado, de que essa prova, no caso de violação do dever de coabitação, não se basta com a prova de que foi o cônjuge réu quem, consciente e voluntariamente, saiu de casa - que resulta a alegada inconstitucionalidade dos preceitos supra referidos, por esses entendimentos, quando articulados, conduzirem a uma distribuição insustentável, à luz daqueles princípios constitucionais, do ónus da prova da culpa. Não tem, porém, como vai ver-se já de seguida, razão a recorrente.
9.5. - De facto, alega a recorrente que os pressupostos de que partiu a decisão recorrida e a que já se fez referência – o de que a culpa é um elemento constitutivo do direito do autor, cabendo a este a sua prova; e o de que essa prova não se basta com a prova de que foi o cônjuge réu quem consciente e voluntariamente saiu de casa – implicam que esta esteja a fazer recair sobre o cônjuge autor o ónus de alegar e provar a não verificação dos pressupostos de todas as possíveis causas de exclusão da culpa do cônjuge réu. Não foi, porém, tão longe a decisão recorrida. A tese a que aderiu a decisão recorrida não exige, para que se considere feita a prova da culpa, que o cônjuge autor prove a não verificação dos pressupostos de todas as possíveis causas de exclusão da culpa do cônjuge réu, mas apenas que o cônjuge autor prove as circunstâncias concretas que levaram o réu a sair de casa, de forma a que, a partir delas, seja possível ao tribunal formular o juízo de censura em relação àquela conduta. Esse entendimento resulta claro de várias passagens do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, e a cuja tese aderiu a decisão recorrida. De facto, refere-se naquele aresto:
'Ensina o Prof. Pereira Coelho, na mesma centenária Revista, ano 114-183/184, que a declaração do cônjuge culpado deve exprimir o resultado de um juízo global sobre a crise matrimonial. Mas tal não é possível com a matéria de facto dada como provada, já que se desconhecem as circunstâncias que levaram o Autor a sair do lar conjugal.' E, mais à frente:
'A declaração do cônjuge culpado deverá considerar o conjunto da prova produzida, quer as culpas do cônjuge réu, quer as do cônjuge autor, e tanto as que foram invocadas na acção, como na reconvenção, como fundamento do pedido, como também as que não podiam ser invocadas, ou não foram mesmo invocadas, como causa de divórcio.' E, ainda o acórdão da Relação de Lisboa:
'Em síntese, dir-se-á, ainda, que para o referido Professor estando o ónus da prova a cargo do autor, isso obriga-o a trazer ao processo – e, necessariamente, a provar – circunstâncias ou dados de facto que permitam ao juiz formar uma convicção positiva sobra a culpa do réu, de harmonia com as regras da experiência'. Finalmente:
'Mas, além disso, os poucos factos provados também são manifestamente insuficientes para, mesmo através do recurso às regras da experiência, se poder concluir que o cônjuge marido teria agido culposamente quando deixou o lar conjugal.' Em suma: do que se disse resulta com clareza que a decisão recorrida interpretou os artigos 1779º, nº 1, 1782º, nº 2 e 342º, todos do Código Civil, com o sentido de que o cônjuge autor tem que fazer a prova (positiva) dos factos que permitam ao tribunal, designadamente através do recurso às regras da experiência, concluir pela censurabilidade do comportamento do cônjuge que decidiu deixar o lar conjugal. Ora, entendidos neste sentido, como os entendeu a decisão recorrida, os preceitos supra referidos não consagram qualquer solução arbitrária ou desproporcional, em termos de distribuição do ónus da prova, violadora do princípio da igualdade. Pelo contrário, a solução por que optou a decisão recorrida é susceptível de ser justificada à luz de critérios materiais de decisão que afastam a alegação de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade. Por um lado verifica-se que não é possível constatar a existência de uma regra de experiência social que permita a ilação (presunção) de que a violação objectiva do dever de coabitação é culposa. Nesse sentido, refere TEIXEIRA DE SOUSA (ob. cit., p. 66): 'Finalmente, noutros casos ainda o tribunal não pode extrair a culpa do cônjuge da violação do dever conjugal, porque não há qualquer regra de experiência ou standard social que justifique essa ilação. É o que acontece com o abandono do lar conjugal, dado que nenhuma regra de experiência ou critério social permite extrair com segurança a culpa do cônjuge da prova desse abandono, porque a observação sociológica demonstra que esse abandono tanto pode ser não culposo, se, por exemplo, o cônjuge abandona o lar para se proteger das ofensas físicas infligidas pelo outro, como ser culposo, se o cônjuge abandonado em nada contribuiu para a saída do lar conjugal do outro cônjuge. Assim, o tribunal não dispõe de qualquer regra de experiência que lhe permita concluir, sem deixar dúvidas, que a conduta do cônjuge abandonante é culposa. Para que o correspondente juízo de censurabilidade possa ser deduzido do próprio abandono é necessário considerar outros parâmetros.' Por outro lado, entendemos que não se verifica uma situação de anormal dificuldade por parte do cônjuge autor - ou facilidade da parte do cônjuge réu - em efectuar a prova da culpa – ou não culpa - que torne inconstitucional, por arbitrária ou desproporcionada, a solução normativa por que optou a decisão recorrida. De facto, se considerarmos a diferente dificuldade de prova que recai sobre cada um dos cônjuges relativamente aos factos relevantes para a formulação do juízo de censurabilidade pelo tribunal concluiremos que, também por aqui, o diferente grau de dificuldade/facilidade em efectuar essa prova – se é que existe – não é de molde a justificar a inconstitucionalidade da solução legislativa que opte por onerar o cônjuge autor com o ónus da prova da culpa do cônjuge réu. Esta conclusão carece, porém, de uma maior fundamentação, uma vez que é na sequência da sua contestação, e na tentativa de demonstração do contrário, que a recorrente sustenta a alegação de inconstitucionalidade dos preceitos referidos. Desde logo poderia entender-se, como faz PEREIRA COELHO (lug. cit., p. 96), que a solução contrária pode conduzir a resultados manifestamente injustos. Refere aquele autor que 'uma solução que obrigasse o cônjuge réu a provar as razões justificativas do abandono conduziria, na prática, a soluções de manifesta injustiça, sempre que o abandono tivesse sido determinado, como frequentemente acontece, pelo comportamento do próprio cônjuge abandonado, comportamento traduzido, muitas vezes, em ofensa à integridade física ou moral do cônjuge abandonante, mas que este, como também sucede com frequência, não tem possibilidade de fazer prova por os respectivos factos terem ocorrido na intimidade da vida conjugal'. Mas, ainda que, como refere a recorrente, o citado Professor não tenha razão - por o argumento da intimidade da vida conjugal a dificultar a prova ser igual para ambos os cônjuges - tal não é argumento suficiente para impor a solução da inversão do ónus da prova e só por si determinar, como pretende a recorrente, a inconstitucionalidade da solução contrária – que continue a fazer recair sobre o lesado o ónus da prova da culpa do lesante. Sendo - ou frequentemente sendo – iguais as dificuldades de prova, nada há que justifique, e muito menos imponha, o afastamento da solução normativa regra em matéria de prova da culpa – e que corresponde, como é sabido, ao respeito por um elementar princípio de presunção de inocência -; ou seja, a de que sendo a culpa um elemento constitutivo do direito do autor é a este que compete a sua prova de acordo com os critérios de distribuição do ónus da prova previstos no artigo
342º do Código Civil. Por tudo o exposto, não se vê qualquer violação dos princípios constitucionais invocados pela recorrente nas normas que se extraem dos artigos 1779º, nº 1,
1782, nº 2 e 342º, todos do Código Civil, quando interpretados com o sentido que lhes deu a decisão recorrida – e que, como vimos, não corresponde àquele que a recorrente lhe pretende imputar.
10 - A alegada violação da dignidade da pessoa humana consagrada no artigo 1º da Constituição Alega ainda a recorrente que: '... a aplicação das normas com a interpretação que lhes dá o Acórdão recorrido fere a constitucionalmente protegida dignidade da pessoa humana, na medida em que se despreza a presunção da sua inocência, quando se entende que, face a um facto condenado pela ordem jurídica nas suas normas regra – a violação do dever de coabitação – traduzido na saída por parte de um dos cônjuges, se deve impor ao outro que venha a demonstrar que está inocente, isto é, que não deu motivo a esse comportamento'. E, mais à frente: 'É violada ainda a dignidade humana protegida nomeadamente no artigo 1º, na medida em que se dispensa a presunção de inocência, ao impor-se ao requerente de um divórcio essa prova'. Porém, também neste ponto, a recorrente não têm qualquer razão.
É que, na interpretação da decisão recorrida, ao cônjuge autor não cabe provar a sua inocência na violação, pelo cônjuge réu, do dever conjugal (no caso de coabitação), mas a culpa deste nessa mesma violação. Dito de outra forma: as normas que se extraem dos artigos cuja constitucionalidade é questionada pela recorrente não estabelecem uma presunção de culpa do cônjuge autor na violação, pelo cônjuge réu, do dever conjugal, mas uma presunção de inocência do cônjuge réu. E, nesta dimensão, é manifesta a inexistência de qualquer violação, em qualquer das suas dimensões, da dignidade da pessoa humana. III - Decisão Assim, e pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida no que respeita às questões de constitucionalidade suscitadas.
Lisboa, 28 de Abril de 1999- José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida Messias Bento Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José Manuel Cardoso da Costa