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Processo nº 115/99 ACTA
Aos vinte e quatro de Fevereiro de mil novecentos e noventa nove, em sessão plenária do Tribunal Constitucional, achando-se presentes o Exmº. Conselheiro Presidente José Manuel Moreira Cardoso da Costa e os Ex.mos Conselheiros Artur Maurício Messias Bento, Guilherme da Fonseca, Vítor Nunes de Almeida, José de Sousa e Brito, Paulo Mota Pinto, Alberto Manuel Tavares da Costa, José Manuel Bravo Serra, Maria Fernanda Palma, Maria dos Prazeres Beleza, Luís Nunes de Almeida e Maria Helena de Brito, foram trazidos à conferência – ao abrigo do disposto no nº 5 do artigo 12º da Lei nº 49/90, de 24 de Agosto – os presentes autos de apreciação da constitucionalidade e legalidade de referendo local.
Após debate e votação, foi, pelo Ex.mo Presidente, ditado o seguinte ACÓRDÃO Nº 113/99.
I. Relatório.
1. O presidente da assembleia de freguesia de Abação (S.Tomé), do município de Guimarães, veio requerer, nos termos do artigo 11º da Lei nº 49/90, de 24 de Agosto, a apreciação da constitucionalidade e da legalidade de um referendo a submeter aos cidadãos eleitores da mesma freguesia tendo como objecto a seguinte pergunta:
Concorda com a criação da freguesia de Abação (S.Cristóvão), com os limites geográficos correspondentes à respectiva paróquia eclesiástica?
Juntou o original da respectiva proposta, bem como cópia da acta
(Acta nº 78) da sessão extraordinária da referida assembleia, realizada em 6 do mês corrente, tendo como único ponto da ordem de trabalhos a apreciação da mesma proposta.
II. Fundamentos.
2. Infere-se do registo, constante da respectiva acta, do número de membros da assembleia de freguesia de Abação presentes e faltosos à mencionada sessão de 6 do corrente, que o número total de membros dessa assembleia é de nove, dos quais, na mesma sessão, se verificou a presença de sete.
Entretanto, diz-se no requerimento inicial que a proposta de referendo - que se não apresenta datada - deu entrada na assembleia de freguesia em 26 de Janeiro último, facto que não há nenhuma razão para pôr em dúvida; e vê-se do teor da mesma proposta que ela contém a pergunta a submeter aos cidadãos eleitores e está subscrita por três membros da dita assembleia. Por sua vez, segundo a mencionada acta da sessão da assembleia de freguesia, de 6 de Fevereiro, a proposta em causa veio a ser aí aprovada por unanimidade. Eis quanto basta para concluir que os requisitos procedimentais, estabelecidos nos artigos 6º, nº 2, 8º, alínea b), 9º e 10º da Lei nº 49/90, exigidos para a realização do referendo em apreço (o qual, aliás, ainda é designado, tanto no requerimento inicial, como nos documentos que o acompanham, como 'consulta directa' local, mas sem que a isso, todavia, haja de atribuir-se qualquer relevo) foram devidamente cumpridos.
3. Determina a lei - a citada Lei nº 49/90, no seu artigo 7º, nº 1 - que as perguntas objecto do referendo 'devem ser formuladas em termos que permitam uma resposta inequívoca pela simples afirmativa ou negativa'. Ora, não se afigura duvidoso que a pergunta que a assembleia de freguesia de Abação pretende submeter ao referendo dos respectivos cidadãos eleitores cumpre igualmente este requisito legal; e não viola, tão-pouco, o requisito negativo que, ainda quanto à formulação das perguntas referendárias locais, o legislador estabelece, depois, no nº 2 do mesmo artigo 7º.
4. Não obstante o que vem de ser dito, o requerimento do presidente da assembleia de freguesia de Abação não pode ser admitido, em razão da ilegalidade do referendo em causa. Assim resulta da doutrina já firmada por este Tribunal no seu Acórdão nº 390/98 (Diário da República, II Série, de 9 de Novembro de 1998), o qual versou sobre uma hipótese idêntica à ora em apreço (em que era requerente o presidente da assembleia de freguesia de Asseiceira, do município de Tomar).
5. Essa doutrina pode resumir-se como segue: a) Nos termos do artigo 240º da Constituição, as autarquias locais podem submeter a referendo dos respectivos cidadãos eleitores 'matérias incluídas na competência dos seus órgãos'. É esse o teor do preceito desde a última revisão constitucional, a qual, assim, eliminou a exigência, que, a tal respeito, nele antes se fazia, de que se devia tratar-se de matéria de 'exclusiva' competência desses órgãos. Por força dessa alteração da lei fundamental, deixou de haver obstáculo constitucional de princípio a que um referendo local possa versar sobre matéria que, sendo também (e até primacialmente) da competência de outros entes ou
órgãos, caiba igualmente, a algum título, ainda mesmo que só consultivo, na dos
órgãos do poder local. [Nessa medida, terá de considerar-se prejudicada a jurisprudência contrária do Tribunal, anterior à revisão constitucional de 1997, que encontrou expressão, nomeadamente, nos Acórdãos nºs 238/91 e 242/91, também versando hipóteses semelhantes à agora em análise (v. Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 19º), para além de outros]. b) Simplesmente, no preceito constitucional citado acrescenta-se, ao passo transcrito, uma remissão para a lei - à qual cumprirá determinar, mais precisamente, os 'casos', os 'termos' e a 'eficácia' em e com que o referendo local pode ter lugar. Ora, a verdade é que na Lei nº 49/90 - editada para regular as 'consultas directas' aos cidadãos eleitores a nível local, mas que deve ter-se como permanecendo a aplicável aos, agora, 'referendos' locais (v., especificamente sobre este ponto, o Acórdão deste Tribunal nº 391/98, no mesmo Diário, Série e data), e que não foi ainda objecto de alteração depois da revisão constitucional de 1997 - persiste, no nº 1 do seu artigo 2º, o condicionamento, que a Constituição antes punha à admissibilidade desses referendos, de só poderem eles versar sobre matéria da competência 'exclusiva' dos órgãos autárquicos. Restará assim saber - ressalvou-se no aresto cuja doutrina se está a transcrever
- 'se se deve ter por implicitamente revogado nessa parte o nº 1 do artigo 2º da Lei nº 49/90 ou se, desaparecido o obstáculo constitucional, a proibição legal ainda se mantém'. c) Independentemente da resposta a esta pergunta - ou seja: mesmo que ela deva ir no primeiro sentido - o facto, porém, é que importa ainda considerar os termos em que a lei (que já não será agora a Lei nº 49/90) prevê a intervenção dos órgãos do poder local no procedimento de criação de novas autarquias, e, mais especificamente, a intervenção das assembleias de freguesia no procedimento da criação de novas autarquias desse nível. Ora, a criação de freguesias é matéria reservada em absoluto à competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 164º, alínea n), da Constituição. Mas é indiscutível que a lei contempla uma intervenção, no procedimento dessa criação, das autarquias interessadas, e justamente a título consultivo: previa-a (ou prevê-a), em geral, na alínea d) do artigo 3º da Lei nº
11/82, de 2 de Junho (sobre a 'Criação e extinção de autarquias locais'); e veio a prevê-la depois, quanto à situação que especificamente agora importa, no artigo 3º, alínea a), e no artigo 7º, nº 1, alínea f), da Lei nº 8/93, de 5 de Março ('Regime jurídico da criação de freguesias'). Com efeito, dispõe-se nesse artigo 3º: na apreciação das iniciativas legislativas que visem a criação de freguesias deve a Assembleia da República ter em conta: a) a vontade das populações abrangidas, expressa através de parecer dos órgãos autárquicos representativos a que alude alínea e) do nº 1 do artigo 7º desta lei; e lê-se, por sua vez, neste último preceito: 1. O processo a instruir para efeitos da criação de freguesias é organizado com base nos seguintes elementos: [...] e) cópia autenticada das actas das reuniões dos
órgãos deliberativos e executivos do município e freguesia envolvidos em que foi emitido parecer sobre a criação da futura freguesia. Só que, se a lei prevê uma tal intervenção consultiva das assembleias de freguesia no procedimento em causa - conferindo a esses órgãos autárquicos, consequentemente, a correspondente 'competência' - a verdade é, também, que estabelece para essa intervenção um 'tempo' e um 'modo' determinados, que são os definidos no nº 3 do mesmo artigo 7º da Lei nº. 8/93. Aí se dispõe efectivamente: verificada a existência de todos os elementos necessários à instrução do processo [de criação da freguesia em causa] a Assembleia da República solicitará aos órgãos do poder local os respectivos pareceres, os quais deverão ser emitidos no prazo de 60 dias. A lógica da lei é, pois, esta: a criação de freguesias deverá ter em conta determinados 'indicadores' (os do artigo 4º) e está condicionada pela verificação de determinados requisitos (os dos artigos 5º e 6º, todos da citada Lei nº. 8/93); assim, a Assembleia da República deverá munir-se dos elementos necessários para ponderar esses indicadores e proceder a essa verificação, colhendo do Governo 'os elementos com interesse para o processo' (di-lo o nº 2 ainda daquele artigo 7º); e só depois irá proceder à consulta dos órgãos autárquicos interessados. Só nestas condições e neste momento, por conseguinte, é que cabe às assembleias de freguesia exercerem a sua competência legal de intervenção no procedimento de criação de novas autarquias desse nível: antes de chegado esse momento não
'dispõem' verdadeiramente de tal competência. Assim sendo, também logo por aí estará excluído que possam até então [e suposto que o possam fazer depois, o que dependerá da resposta que se der à pergunta deixada em aberto supra, na alínea b)] convocar um referendo local sobre tal matéria.
6. Pois bem: o referendo local que assembleia de freguesia de Abação pretende convocar é prévio a qualquer iniciativa legislativa já apresentada e a qualquer procedimento legislativo já em curso na Assembleia da República, tendentes à criação de uma nova freguesia na área dessa autarquia, não se pré-ordenando, nomeadamente, a fixar o sentido de qualquer parecer que, a tal respeito, esse
órgão do poder local haja sido chamado a emitir, nos termos do nº 3 do artigo 7º da Lei nº 8/93. Eis assim quanto logo basta - rematando como no Acórdão nº
390/98 - para concluir pela sua ilegalidade. III. Decisão.
7. Nos termos expostos, e ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 3 do artigo
12º da Lei nº 49/90, de 24 de Agosto, o Tribunal Constitucional decide não admitir o requerimento de apreciação da constitucionalidade e da legalidade do referendo local que a assembleia de freguesia de Abação (S.Tomé), do município de Guimarães, na sua sessão extraordinária de 6 do corrente, deliberou realizar, sobre a criação, na área dessa autarquia, da freguesia de Abação (S.Cristóvão). Artur Maurício Messias Bento Guilherme da Fonseca Vítor Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Paulo Mota Pinto Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Maria Fernanda Palma Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa