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Procº nº 543/94 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. A., Ré em processo de querela a correr os seus termos nos tribunais de Macau, deduziu, perante o Presidente do Tribunal Superior de Justiça deste Território, nos termos dos artigos 112º e seguintes do aí vigente Código de Processo Penal de 1929, a suspeição de um dos juízes daquele Tribunal que iria intervir na decisão do recurso, interposto pelo Ministério Público, da decisão proferida em 1ª instância.
Alegou, para o efeito, graves motivos de inimizade entre ela e aquele juiz e também entre este e o seu defensor, advogando a interpretação extensiva do nº 7 do artigo 112º daquele Código, 'sob pena de o resultado de uma interpretação restritiva (taxativa) do preceito conduzir, como consequência, à sua inconstitucionalidade material, por violação do disposto nos nºs. 1 e 7 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa'.
Após a resposta prevista no § 9º do artigo 114º do Código de Processo Penal vigente em Macau, o Tribunal Superior de Justiça deste Território proferiu Acórdão, em 3 de Novembro de 1994, no sentido de que não tinham sido articulados factos que permitissem fundamentar a alegada inimizade grave entre o juiz e a ré, nem as invocadas razões de inimizade entre o mesmo magistrado e o advogado que patrocinava a causa cabiam nos fundamentos de suspeição taxativamente enumerados no artigo 112º do referido Código de Processo Penal.
2. Inconformada, veio a requerente interpor recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, tendo por objecto a questão da constitucionalidade da norma constante do nº 7 do artigo 112º do Código de Processo Penal de 1929. Admitido o recurso, formulou a recorrente as seguintes conclusões, nas alegações que produziu neste Tribunal:
'1. Entre as garantias de defesa do arguido asseguradas pelo nº 1 do art.
32º da C.R.P. conta-se a garantia decorrente do princípio da independência e da imparcialidade do tribunal, imprescindível à realização daquele outro princípio decorrente das garantias de defesa - o princípio da igualdade de armas .
2. O direito a um tribunal independente e imparcial faz parte do núcleo de direitos fundamentais reconhecidos a todos os indivíduos pela CRP (art. 32º nº 1 e 206º), pelo art. 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, pelos artºs. 14º e 15º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e pelos artºs. 6º e 7º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
3. O art. 112º do CPP de 1929, ao consagrar o incidente da suspeição, tem como escopo e fundamento dar expressão concreta ao princípio da imparcialidade do tribunal, colocando à disposição do arguido, através do pedido de afastamento do processo do juiz suspeito, o fazer valer aquele princípio quando a imparcialidade do juiz seja posta em causa por qualquer motivo grave e sério.
4. Considera-se estar em causa um motivo grave e sério de suspeição sempre que este se mostre apto a criar junto do arguido e da comunidade desconfianças e suspeitas acerca da objectividade e neutralidade do juiz em relação ao processo, assim se colocando em destaque a dimensão objectiva da imparcialidade.
5. Só uma interpretação do art. 112º do CPP de 1929 em termos de compreender como causa de suspeição qualquer motivo grave e sério que possa fundar junto do arguido e da comunidade suspeitas sobre a imparcialidade do juiz será conforme com a garantias de defesa do arguido asseguradas pelo art. 32º da CRP, nomeadamente pelo seu nº 1.
6. A existência de uma inimizade grave do juiz para com o defensor do arguido pode constituir - como, no caso sub judice, constitui - um motivo sério e grave de suspeitas, por parte do arguido e da comunidade, acerca da neutralidade do juiz em relação ao arguido e à sua defesa.
7. A interpretação da norma do art. 112º do CPP de 1929, maxime do seu nº 7, num sentido taxativo estrito, ao determinar a não inclusão da inimizade grave entre o juiz e o defensor do arguido entre as causas de suspeição, encontra-se ferida de inconstitucionalidade, por negar ao arguido a possibilidade de afastamento do juiz considerado suspeito e, assim, violar as suas garantias de defesa em processo criminal, consagradas no art. 32º nº 1 da CRP.
8. Tal interpretação - e a aplicação da lei que dela resulta - viola, desde logo, o princípio da imparcialidade do tribunal, porquanto conduz à submissão do arguido a um julgamento por juiz de cuja neutralidade a comunidade pode fundadamente suspeitar.
9. O princípio da imparcialidade do tribunal, além de apontar para a
'independência vocacional' do juiz, exige um quadro legal que promova e facilite essa mesma independência, por forma a garantir a imparcialidade real do julgamento e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
10. A interpretação restrita do art. 112º do CPP de 1929 viola igualmente o princípio da igualdade de armas entre a acusação e a defesa, o qual se conta entre as garantias de defesa do art. 32º nº 1 da CRP, uma vez que, posta em causa a neutralidade do juiz perante o arguido, a sua defesa se fragiliza processualmente em relação à acusação, assim se dando lugar a uma desigualdade material daquelas posições em prejuízo do arguido.
11. A interpretação do art. 112º do CPP de 1929 no sentido da sua taxatividade e de forma restrita, em termos de excluir das causas de suspeição as relações de grave inimizade entre o juiz e o defensor, viola igualmente o direito à escolha de defensor, consagrado no nº 3 do art. 32º da CRP, na medida em que o receio do arguido de ver repercutida na sua pessoa a perda de objectividade do juiz, pelas relações de tensão entre este e o seu defensor, pode determiná-lo a procurar um outro defensor em relação ao qual se não verifique a inimizade do juiz, mas que não corresponde ao defensor que na realidade ele quis (e tinha o direito de) livremente escolher.
12. A norma do art. 112º do CPP de 1929, se interpretada nos termos descritos, viola ainda o princípio do juiz legal, consagrado no nº 7 do art. 32º da CRP, porquanto, tendo este como escopo e fundamento principal a fixação prévia e abstracta do tribunal que há-de julgar, pretende garantir uma justiça material assegurada pela neutralidade e independência do juiz, bem como o seu distanciamento em relação à causa.
13. A garantia de neutralidade e imparcialidade prosseguida com o princípio do juiz legal fica imediata e igualmente prejudicada pela não inclusão, entre os motivos de suspeição, de qualquer motivo grave e sério que possa determinar no arguido e na comunidade e perda de confiança na objectividade do julgamento.
14. A norma do art. 112º do CPP de 1929, se interpretada no sentido descrito, viola as disposições constitucionais dos arts. 32º, nº 1, 3 e 7 e 206º, pelo que a decisão que nesse termos a aplicou deve ser revogada por aplicação de norma inconstitucional'.
No mesmo sentido vão as conclusões do Parecer do Prof. Doutor Figueiredo Dias, junto aos autos.
Idêntica posição é assumida nas alegações produzidas pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal, como se pode ver das conclusões que a seguir se indicam:
'1º- A norma constante do artigo 112º, nº 7, do Código de Processo Penal de
1929, na interpretação do acórdão recorrido, segundo a qual não se incluem nos fundamentos da suspeição as relações de grave inimizade entre o juiz e o defensor do arguido, é materialmente inconstitucional, por violação dos nºs. 1 e
3 do artigo 32º da Constituição.
2º- Termos em que deve conceder-se provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida na parte impugnada'.
3. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir.
II - Fundamentos.
4. Nos termos da alínea b) do nº 1 e do nº 4 do artigo 280º da Constituição e da alínea b) do nº 1 e do nº 2 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), o conhecimento dos recursos relativos a decisões de aplicação de normas arguidas de inconstitucionais depende da verificação dos seguintes pressupostos específicos:
- suscitação da questão de inconstitucionalidade 'durante o processo';
- aplicação da norma impugnada pela decisão recorrida;
- esgotamento dos recursos ordinários que no caso coubessem.
Cabe ao tribunal que tiver proferido a decisão recorrida apreciar a admissão do respectivo recurso (nº 1 do artigo 76º da Lei do Tribunal Constitucional), mas tal decisão de admissão de recurso não vincula o Tribunal Constitucional ( nº 3 do mesmo normativo). Importa, pois, antes de avançar no conhecimento de fundo, determinar se estão preenchidos todos os pressupostos da sua admissibilidade.
5. A suscitação da inconstitucionalidade da 'interpretação restritiva (taxativa) do preceito' do nº 7 do artigo 112º do Código de Processo Penal de 1929 ocorreu logo no requerimento em que foi deduzido, perante o Presidente do Tribunal Superior de Justiça de Macau, o incidente de suspeição, pelo que o primeiro requisito se encontra preenchido.
O carácter determinante da interpretação impugnada daquela norma para a decisão recorrida também não oferece dúvidas. De facto, escreveu-se no acórdão aqui sob recurso:
'No caso do art. 112º, nº 7, é bem claro que o que o legislador pensou e expressou foi a referência a todas as situações onde a relação de inimizade se haja instalado e permaneça entre o juiz e qualquer dos interessados no processo que estejam em alguma das situações previstas: ofendido, parte acusadora e arguido.
Pois bem, alargar o universo das pessoas onde devia relevar a inimizade já se não comporta dentro da interpretação extensiva e o mais que se poderia admitir era a discussão sobre a verificação de lacuna na lei, o que sempre nos conduziria à sua não aceitação dada a afirmação de que se partiu de que a enumeração do art. 112º é taxativa'.
6. Já o mesmo não sucede no que respeita ao prévio esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam. É que, nos termos do § 4º do artigo
115º do Código de Processo Penal aplicável em Macau, 'da decisão final sobre suspeições há recurso sem efeito suspensivo'. Tal recurso - de um acórdão em que a Secção de Jurisdição Comum do Tribunal Superior de Justiça de Macau decidiu em primeira instância - teria de ser intentado para o Plenário desse Tribunal [alínea g) do nº 1 do artigo 14º da Lei nº 112/91, de 29 de Agosto - Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau].
Esse foi, aliás, o entendimento do Tribunal Superior de Justiça de Macau num caso em tudo idêntico ao presente, como decorre do relatório do Acórdão nº 619/95 do Tribunal Constitucional (ainda inédito).
7. Sendo certo que subsistem divergências no entendimento adoptado neste tribunal quanto ao sentido da exigência do prévio esgotamento dos recursos ordinários que no caso coubessem (cfr. o Acórdão nº 282/95, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Maio de 1996, e o Acórdão nº 8/88, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Março de 1988), certo é, igualmente, que, no caso sub judicio, não se verifica o circunstancialismo que dá origem à divergência - a saber, a interposição de recurso ordinário com posterior desistência ou deserção e, portanto, com a sua inviabilização.
Pelo contrário, o recurso para o Tribunal Constitucional foi intentado antes de se ter esgotado - em verdade antes sequer de ser intentado e durante o prazo em que podia sê-lo - o recurso ordinário expressamente previsto [cfr., inter alia, o Acórdão nº 536/92, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 23º
(1992), p. 567 e ss., e os Acórdãos nºs. 192/92, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto de 1992, 181/93, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Julho de 1993, e 370/93, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Outubro de 1993].
8. O facto de o recurso ter sido admitido e de a questão da falta dos seus pressupostos de admissibilidade não ter sido suscitada nas alegações não implica uma sanação dos obstáculos ao conhecimento de fundo, como, aliás é jurisprudência uniforme deste Tribunal (cfr., entre os últimos, os Acórdãos nºs.
503/96, publicado no Diário da República, II Série, de 4 de Julho de 1996, e
364/96, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de Maio de 1996, bem como os Acórdãos nºs. 700/96 e 604/96, ainda inéditos). Assim, não estando reunidos os pressupostos necessários, há que não tomar conhecimento do recurso.
III - Decisão.
9. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em oito Unidades de Conta.
Lisboa, 5 de Dezembro de 1996 Fernando Alves Correia Messias Bento José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Bravo Serra Luís Nunes de Almeida