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Processo n.º 469/98 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. R... interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal Militar
(de 16 de Abril de 1998), que, no recurso interposto da decisão da 1ª instância, o condenou como autor de dois crimes de insubordinação - um deles, previsto e punível pelo artigo 72º, n.º 1, alínea d), do Código de Justiça Militar; e o outro, pelo artigo 79º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código -, nas penas, respectivamente, de dois meses de prisão militar e seis meses e meio de presídio militar, e, em cúmulo jurídico, na pena única de sete meses de presídio militar.
No requerimento de interposição de recurso, o recorrente disse pretender que este Tribunal apreciasse a constitucionalidade das seguintes normas:
(a). a do artigo 4º do Código de Justiça Militar;
(b). a do artigo 79º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código;
(c). as dos artigos 24º, 25º, 26º, 27º, 28º e seguintes até 52º, do mencionado Código - recte, 'todo o sistema de penas previsto no capítulo III do título I do referido Código'; e
(d). as dos artigos 24º, n.º 1, alínea b), 26º, alínea 4ª, e 30º, n.º 1, do mesmo Código. Neste Tribunal, o recorrente, no que aqui importa, concluiu assim as suas alegações:
1. As normas sobre suspensão da execução da pena do Código Penal são aplicáveis ao direito penal militar.
2. O condenado em direito penal militar que preencha os pressupostos de facto para a suspensão da pena que não venha a ser decretada em virtude da interpretação dada ao artigo 4º do Código de Justiça Militar, encontra-se numa situação de desigualdade em comparação com outro condenado por prática de crime de direito penal comum, pois tanto aquele, assim como a sua família são obrigados a sofrer o ónus resultantes da prisão efectiva quando em comparação com este.
3. É inconstitucional, por violação do princípio da igualdade previsto no artigo
13º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dada ao artigo 4º do Código de Justiça Militar (por lapso, escreveu-se RDM), com o sentido que não são aplicáveis ao direito penal militar as normas previstas no artigo 48º do Código Penal relativas à suspensão da execução da pena (hoje, é o artigo 50º).
4. Os condenados por cometimento de crime essencialmente militar, caso se aceite que, preenchidos os pressupostos de facto para a suspensão da pena, esta não pode ser decretada ex lege em virtude de o direito penal militar o não admitir, e por motivo de tal interpretação, estão sujeitos a restrições para além do necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses legítimos da instituição militar, nomeadamente a disciplina.
5. Em conformidade com a interpretação dada acima, o artigo 4º do Código de Justiça Militar também infringe o disposto no artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República.
6. O artigo 79º, n.º 1, alínea a), do Código de Justiça Militar sanciona o crime de ameaças com intenção de criar medo com uma pena mínima e máxima várias vezes mais gravosa do que o correspondente artigo 155º, nºs 1 e 2, do Código Penal
(erradamente, nas conclusões, escreveu-se artigo 115º, nºs 1 e 2), não se descortinando nem na sua letra nem nos valores protegidos razão bastante para tal discrepância.
7. Por outro lado, ainda que se possa afirmar que as situações referidas respeitam a situações de facto diferentes na sua essência, dúvidas não restam que a pena de quatro a seis anos estatuída pelo artigo 79º, n.º 1, alínea a), do Código de Justiça Militar é uma pena desproporcionada em relação aos bens jurídicos que visa proteger.
8. Em conformidade, o artigo 79º, n.º 1, alínea a), do Código de Justiça Militar viola o disposto no artigo 18º, n.º 2, 2ª parte, e no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, quando interpretados conjuntamente.
9. Acresce que os crimes previstos no artigo 79º, n.º 1, alínea a), do Código de Justiça Militar só podem ser cometidos por militar contra superior, e não por militares contra patente inferior ou da mesma patente ou até a ameaça de civis contra militares.
10. Ora, sendo que qualquer ameaça contra militares por motivo de suas funções ofende igualmente a disciplina, o artigo 79º, n.º 1, e a correspondente alínea a) consagra uma discriminação não baseada em circunstâncias de facto relevantes, que viola o princípio da igualdade, estabelecido no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa. Nestes termos, devem os artigos 4º e 79º, n.º 1, alínea a), do Código de Justiça Militar acima referidos, e com as interpretações dadas, ser julgados inconstitucionais, com todas as consequências legais.
O Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal - depois de dizer que 'não pode considerar-se suscitada, de modo idóneo e adequado, a questão da pretendida inconstitucionalidade de ‘todo o sistema de penas’ do Código de Justiça Militar', acrescentando que 'não há qualquer utilidade em apreciar a questão que vem reportada à norma do artigo 4º do Código de Justiça Militar, interpretada em termos de não permitir a aplicação, em direito penal militar, do instituto da suspensão da pena', devendo, por isso, o objecto do recurso considerar-se
'circunscrito à apreciação da questão de constitucionalidade da norma incriminadora, constante do artigo 79º, n.º 1, alínea a), do Código de Justiça Militar' - concluiu assim as suas alegações.
1. A norma constante do artigo 79º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, ao sancionar o crime de insubordinação com uma pena sensivelmente superior à prevista no direito penal comum para as ameaças e injúrias, não viola o princípio da proporcionalidade, dado que aquele preceito visa tutelar específicos e essenciais bens jurídicos militares - a disciplina e a hierarquia
- sem os quais não poderiam existir e funcionar as Forças Armadas.
2. Não viola o princípio da proporcionalidade a cominação ao arguido, acusado de tal crime, de uma pena, especialmente atenuada, de 10 meses de presídio militar.
3. Termos em que deverá improceder o recurso interposto.
O recorrente, ouvido sobre a falta de utilidade no conhecimento da questão de constitucionalidade do artigo 4º do Código de Justiça Militar, alegada pelo Ministério Público (não foi mandado ouvir sobre a questão atinente à pretendida inconstitucionalidade de ‘todo o sistema de penas’ do Código de Justiça Militar, porque essa questão já ele a deixara cair nas conclusões das alegações), disse
'que o Tribunal Constitucional não deve circunscrever o recurso à norma do art.
79º nº 1 alínea a) do CJM, devendo também apreciar a norma do artigo 4º do mesmo código'.
2. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. O objecto do recurso: O recorrente - que, no requerimento de interposição do recurso, indicou, como constituindo seu objecto, os artigos 4º, 79º, n.º 1, alínea a), 24º, n.º 1, alínea b), 25º, 26º, alínea 4ª, 27º, 28º e seguintes até 52º, incluindo o artigo
30º, n.º 1 (recte, 'todo o sistema de penas previsto no capítulo III do título I'), do Código de Justiça Militar - veio, depois, nas conclusões das alegações que aqui apresentou, restringir esse objecto às normas dos mencionados artigos
4º e 79º, n.º 1, alínea a), o primeiro, interpretado no sentido de não serem aplicáveis no direito penal militar as normas relativas à suspensão da execução da pena constantes 48º e seguintes do Código Penal (hoje, do artigo 50º e seguintes).
Apenas se apreciará, porém, a constitucionalidade da norma constante do artigo
79º, n.º 1, alínea a), do Código de Justiça Militar, e não também a da norma inscrita no artigo 4º do mesmo Código.
É certo que o acórdão recorrido, depois de afirmar expressamente que, 'na vigência do actual Código de Justiça Militar, não é legalmente possível a pretendida suspensão da execução da pena', porque este Código 'a não previu, não a autoriza e não há lacuna que importe suprir mediante o recurso ao direito subsidiário que é o Código Penal', confrontou o mencionado artigo 4º com a Constituição, tendo concluído pela inverificação do vício de inconstitucionalidade que o recorrente lhe assacou. Simplesmente, no contexto do acórdão, este juízo sobre a constitucionalidade do artigo 4º não passa de um obiter dictum ou, talvez melhor, de argumentação ad ostentationem, insusceptível, por isso mesmo, de abrir a via do recurso de constitucionalidade. De facto, nesse acórdão, também se registou o seguinte: 'considera-se que a gravidade das faltas cometidas, a intensidade do dolo, as circunstâncias que rodearam a prática dos factos e a personalidade do agente não permitem concluir que a simples ameaça da prisão realizasse de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que não seria de decretar, ainda que possível, a suspensão da execução da pena aplicada'. Ora, este Tribunal não pode sindicar este juízo sobre a inverificação, no caso, dos pressupostos de aplicação da suspensão da execução da pena. Mas, sendo assim, se fosse conhecer-se da questão de constitucionalidade tendo por objecto o mencionado artigo 4º, e se, acaso, se concluísse pela sua incompatibilidade com a Constituição, o tribunal recorrido nem por isso decretaria a suspensão da execução da pena aplicada. O recorrido sempre haveria de cumprir os sete meses de presídio militar que lhe foram aplicados. O julgamento de inconstitucionalidade do mencionado artigo 4º, que, porventura, este Tribunal viesse a proferir, seria, então, res inutillis. Ao decidir essa questão de constitucionalidade, o Tribunal estaria a decidir uma pura questão académica.
Só que os recursos de constitucionalidade desempenham uma função instrumental; e, por isso, só se justifica que o Tribunal deles conheça quando o seu julgamento puder repercutir-se utilmente sobre o julgamento do caso de que emerge o recurso. Tal, porém, não poderia acontecer neste processo, como se viu. Assim sendo, não se justifica que, nestes autos, se afronte a questão da constitucionalidade do mencionado artigo 4º.
4. A questão de constitucionalidade:
4.1. O artigo 79º - cujo n.º 1, alínea a), constitui objecto do recurso - dispõe como segue: Artigo 79º
1. A ofensa por meio de palavras, escritos ou desenhos, publicados ou não publicados, ameaças ou gestos, cometida por qualquer militar contra seu superior será punida: a). com presídio militar de quatro a seis anos, se a ofensa for cometida em acto de serviço ou em presença de tropa reunida; b). com presídio militar de seis meses a dois anos, nos demais casos.
2. As penas estabelecidas neste artigo poderão ser substituídas pelas imediatamente inferiores quando a ofensa for verbal contra superior que não esteja presente.
Prevê-se, nesta disposição legal, o crime de insubordinação por meio de ameaças, que, quando cometido 'em acto de serviço', a alínea a) pune com a pena de presídio militar de 4 a 6 anos. Por tal crime, foi, porém, o arguido condenado apenas em seis meses e meio de presídio militar, pois o Supremo Tribunal Militar considerou 'adequado' baixar dois escalões 'na moldura penal prevista' para tal ilícito e fixar a pena 'ligeiramente acima do seu mínimo legal' (o mínimo é, neste outro escalão, de seis meses: cf. artigo 26º, alínea 4ª, do Código de Justiça Militar).
4.2. Sustenta o recorrente que o artigo 79º, n.º 1, alínea a), do Código de Justiça Militar 'viola o disposto no artigo 18º, n.º 2, 2ª parte, e no artigo
13º da Constituição da República Portuguesa, quando interpretados conjuntamente', pois tal preceito legal 'sanciona o crime de ameaças com intenção de criar medo com uma pena mínima e máxima várias vezes mais gravosa do que o correspondente artigo 155º, nºs 1 e 2, do Código Penal (erradamente, nas conclusões, escreveu artigo 115º, nºs 1 e 2)', sem que se descortine 'na sua letra' ou 'nos valores protegidos razão bastante para tal discrepância'. E acrescenta que, 'ainda que se possa afirmar que as situações referidas respeitam a situações de facto diferentes na sua essência', a pena de quatro a seis anos é
'desproporcionada em relação aos bens jurídicos que visa proteger'.
4.3. O Ministério Público entende diferentemente, como se viu.
4.4. Vejamos então:
4.4.1. É, desde logo, aceitável que o mesmo tipo de ilícito seja mais severamente punido pelo direito penal militar do que pelo direito penal comum, pois, entre a comunidade civil e a comunidade militar, existem diferenças importantes, capazes de justificar uma diferente dosimetria abstracta da punição.
É que, como se observou no acórdão n.º 334/98 (por publicar), só a comunidade militar faz apelo a 'deveres militares e a valores como a segurança e a disciplina das Forças Armadas e ainda a interesses militares de defesa nacional'. E, por isso, pode bem dizer-se, com palavras do acórdão n.º 370/94
(publicado no Diário da República, II série, de 7 de Setembro de 1994) - que, neste ponto, repetiu RUI PEREIRA (O princípio da igualdade em Direito Penal, in O Direito, 1988, páginas 153/154) - que a prática de um mesmo tipo de crime na comunidade militar 'documentará um maior grau de ilicitude do facto ou da culpa do agente'. O facto de o Código de Justiça Militar e o Código Penal punirem com diferente severidade um mesmo tipo de crime não viola, por isso, o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República. Até porque, como se sublinhou no acórdão n.º 958/96 (publicado no Diário da República, II série, de
13 de Dezembro de 1996), a relevância deste princípio 'como critério de constitucionalidade das medidas legais das penas é (...) filtrada por uma complexa teia de condicionantes, que impedem nivelações com base em abstractos juízos de valor orientados apenas pela importância objectiva dos bens jurídicos protegidos'.
Mas até acontece que o crime de insubordinação por meio de ameaças (previsto no artigo 79º, n.º 1, a alínea a), do Código de Justiça Militar) e o crime de ameaças (previsto e punível pelo artigo 155º, nºs 1 e 2, do Código de Penal de
1982, e retomado pelo artigo 153º, na Revisão de 1995) correspondem, como reconhece o próprio recorrente, a 'situações de facto diferentes na sua essência'. Com efeito, como põe em destaque o acórdão recorrido, naquele ilícito, 'a mais do que a integridade física e moral e a liberdade pessoal do visado, pretende-se salvaguardar e garantir os valores da disciplina e da hierarquia indispensáveis
à própria subsistência das Forças Armadas'.
Sendo diferentes, num e noutro caso, os valores jurídicos violados com a conduta, não faz sequer sentido fazer apelo ao princípio da igualdade para ajuizar da validade constitucional do mencionado artigo 79º, n.º 1, alínea a), do Código de Justiça Militar, no ponto em que ele prevê para o crime de insubordinação mediante ameaças uma pena bem mais severa do que aquela que o Código Penal faz corresponder ao crime de ameaças. Na verdade, o princípio da igualdade, tal como este Tribunal tem repetidamente afirmado, apenas recusa o arbítrio, as diferenças de tratamento materialmente infundadas e, por isso mesmo, irrazoáveis e arbitrárias.
4.4.2.. Ainda segundo o recorrente, existe violação do princípio da igualdade, vistas as coisas de outra perspectiva. Diz ele: 'os crimes previstos no artigo
79º, n.º 1, alínea a), do Código de Justiça Militar só podem ser cometidos por militar contra superior, e não por militares contra patente inferior ou da mesma patente ou até a ameaça de civis contra militares'. Ora - acrescenta -,
'qualquer ameaça contra militares por motivo de suas funções ofende igualmente a disciplina'; e, por isso, 'o artigo 79º, n.º 1, e a correspondente alínea a) consagra uma discriminação não baseada em circunstâncias de facto relevantes'.
Também neste ponto o recorrente não tem razão, pois é manifesto que só o desacato de um superior por um seu subordinado viola os valores da disciplina e da hierarquia da instituição militar em termos de a solidez da instituição Forças Armadas poder sofrer abalo.
Sendo as situações de ameaça figuradas pelo recorrente substancialmente diferentes da que é punida como insubordinação pelo artigo 79º, n.º 1, alínea a), é manifesto que este normativo, visto a esta outra luz, também não viola o princípio da igualdade, pois este princípio apenas exige que se dê tratamento igual a situações que forem essencialmente idênticas. A igualdade reclama para aquilo que é substancialmente diferente um tratamento diferente também. Na ideia de igualdade vai implicado um dever de respeito pela diferença.
4.4.3. Mas, não violará tal norma, como também sustenta o recorrente, o princípio da proporcionalidade - e, assim, o artigo 18º, n.º 2, 2ª parte da Constituição?
4.4.3.1. O direito penal, enquanto direito de protecção, cumpre uma função de ultima ratio. Só se justifica, por isso, que intervenha para proteger bens jurídicos - e se não for possível o recurso a outras medidas de política social, igualmente eficazes, mas menos violentas do que as sanções criminais. É, assim, um direito enformado pelo princípio da fragmentariedade, pois que há-de limitar-se à defesa das perturbações graves da ordem social e à protecção das condições sociais indispensáveis ao viver comunitário. E enformado, bem assim, pelo princípio da subsidariedade, já que, dentro da panóplia de medidas legislativas para protecção e defesa dos bens jurídicos, as sanções penais hão-de constituir sempre o último recurso. A necessidade social apresenta-se, deste modo, como critério decisivo da intervenção do direito penal. No dizer de SAX (citado por EDUARDO CORREIA, loc. cit.), a necessidade da pena surge 'como o caminho mais humano para proteger certos bens jurídicos'. (Para maiores desenvolvimentos sobre esta questão, cf. o citado acórdão n.º 83/95, publicado Diário da República, II série, de 16 de Junho de 1995).
Este princípio da necessidade - que, no dizer de EDUARDO CORREIA ('Estudos sobre a reforma do direito penal depois de 1974, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 119º, página 6), marca o 'limite do âmbito do direito penal'
- decorre do n.º 2 do artigo 18º da Constituição. Neste preceito constitucional dispõe-se, com efeito, que 'a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos'. Mas então, como adverte FIGUEIREDO DIAS ('O sistema sancionatório no direito penal português', in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia, I, Boletim da Faculdade de Direito, número especial, Coimbra, 1984, página 823), há-de observar-se 'uma estrita analogia entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídico-penais', ficando toda a intervenção penal subordinada 'a um estrito princípio de necessidade'. 'Só por razões de prevenção geral, nomeadamente de prevenção geral de integração - sublinha - se pode justificar a aplicação de reacções criminais'. Idêntico é o pensamento de JOSÉ DE SOUSA E BRITO ('A lei penal na Constituição', in Estudos sobre a Constituição, volume 2º, Lisboa, 1978, página 218), que escreve: 'Entende-se que as sanções penais só se justificam quando forem necessárias, isto é, indispensáveis, tanto na sua existência, como na sua medida, à conservação e à paz da sociedade civil'.
Simplesmente, o juízo sobre a necessidade de lançar mão desta ou daquela reacção penal cabe, obviamente, em primeira linha, ao legislador, em cuja sabedoria tem de confiar-se, reconhecendo-se-lhe uma larga margem de discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, neste domínio, só pode ocorrer, quando a sanção se apresente como manifestamente excessiva (cf. o citado acórdão n.º 83/95 e, bem assim, os acórdãos nºs 634/93 e 480/98, o primeiro, publicado no Diário da República, II série, de 31 de Março de 1994, e o segundo, por publicar em que, tocantemente à decisão criminalização de certas condutas, se afirmou idêntica doutrina).
Quando, pois, se não se esteja em presença de uma situação de excesso - ou, pelo menos, não seja manifesto que tal aconteça - a norma incriminadora não pode ser censurada sub specie constitutionis, em nome do princípio da proporcionalidade.
4.4.3.2. Pois bem: regista-se, antes de mais, que, para concluir pela existência de excesso na punição do crime de insubordinação, não é legítimo invocar, como faz o recorrente, o facto de tal punição ser bastante mais severa do que aquela que Código Penal prevê para o crime de ameaças e para o crime de injúrias. E não o é, porque, como já atrás se fez notar, estes ilícitos são substantivamente diferentes do crime de insubordinação, que é um crime de natureza estritamente militar: nele tutelam-se, com efeito, a hierarquia e a disciplina, que, por serem essenciais à existência e coesão da instituição militar, são bens jurídicos militares, pois - nos dizeres de JORGE FIGUEIREDO DIAS - merece este qualificativo aquele 'conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão' (cf.
'Justiça Militar', in Colóquio Parlamentar Promovido pela Comissão de Defesa Nacional, edição da Assembleia da República, 1995, páginas 25 e 26). Ora, como se fez notar no acórdão n.º 271/97 (publicado no Diário da República, I série-A, de 15 de Maio de 1997), seja qual for o exacto sentido e alcance da expressão constitucional atinente a este tipo de ilicitude, 'é consensual a ideia de que o punctum saliens dos crimes essencialmente militares (hoje, o artigo 213º da Constituição fala em crimes de natureza estritamente militar) se encontra na natureza dos bens jurídicos violados, os quais hão-de ser, naturalmente, bens jurídicos militares' (Sobre as divergências acerca do conceito de crime essencialmente militar, vide o acordão n.º 347/86 e a declaração de voto, a ele aposta, do Conselheiro LUÍS NUNES DE ALMEIDA; e ainda a declaração de voto da Conselheira MARIA FERNANDA PALMA, no acórdão n.º 679/94
- arestos publicados, ambos, no Diário da República, II série, de 20 de Março de
1987 e de 25 de Fevereiro de 1995).
É que - sublinha JORGE FIGUEIREDO DIAS (loc. cit.) - 'tal como sucede com o direito penal comum, também o direito penal militar substantivo, para passar a prova de fogo da sua legitimação democrática, tem de ser um direito exclusivamente orientado por e para o bem jurídico'.
Acresce que, atenta a natureza dos bens jurídicos violados, cujo respeito é essencial, como se disse, à subsistência mesma da instituição militar, não pode dizer-se que seja manifesto que a pena prevista no artigo 79º, n.º 1, alínea a), para o crime de insubordinação cometido por ameaças, em acto de serviço
(presídio militar de quatro a seis anos) seja desproporcionada ou excessiva. Ora, já se disse que só quando a punição se apresentar como manifestamente excessiva ou desproporcionada, é que este Tribunal deve julgar constitucionalmente ilegítima a norma que a previr. De contrário, há que respeitar a liberdade do legislador, pois é a ele que a Constituição confia a tarefa da 'definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos' (cf. artigo 165º, n.º 1, alínea c)).
Mas, se, acaso, aquela conclusão oferecer dúvidas, então, haverá que ter em conta que, no presente caso, pelo mencionado crime de insubordinação, apenas foi aplicada ao arguido a pena de seis meses e meio de presídio militar, pois o Supremo Tribunal Militar considerou 'adequado' baixar dois escalões 'na moldura penal prevista' para tal ilícito e fixar a pena 'ligeiramente acima do seu mínimo legal'. Ora, como, nos dizeres do Ministério Público, a fiscalização concreta da constitucionalidade se acha 'indissoluvelmente ligada à especificidade própria do caso sub iudicio', haverá que concluir que, não sendo excessiva a pena aplicada, seria inadequado ir fulminar com um juízo de inconstitucionalidade a norma aqui sob apreciação. Um tal julgamento excederia, no caso, a medida do razoável.
A norma sub iudicio, tal como foi aplicada no caso, não é, pois, inconstitucional.
5. Conclusão: Concluindo-se que a norma sub iudicio não é inconstitucional, há que negar provimento ao recurso. III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). negar provimento ao recurso;
(b). em consequência, confirmar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade;
(c). condenar o recorrente nas custas, com unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa,10 de Fevereiro de 1999 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida