Imprimir acórdão
Processo nº 676/95
2º Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Ministério Público veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional da sentença do Mmº Juiz do Tribunal Administrativo do Circulo de Lisboa, de 3 de Julho de 1995, por na mesma se ter considerado 'inaplicável, por violação do artº 168º nº 2 e atento o disposto nos artºs 207º e 277º nº 1 da CRP, a norma contida no artº 6º do DL 415/87, de 31/12 e a Port. nº 344-B/88, de
31/V'.
Na sentença concluiu o Mmº Juiz a quo, em processo de recurso contencioso interposto por J..., com os sinais identificadores dos autos, contra a Direcção da Caixa Nacional de Previdência (Caixa Geral de Aposentações), que a
'entidade recorrida ao ter fixado a pensão de aposentação do recorrente tomando por base a remuneração a que se reporta o artº 6º do DL 415/87, de 31.12 e Portaria nº 344-B/88, de 31.5,
fundamentou-se numa norma formal e organicamente inconstitucional, pelo que o acto recorrido enferma de vício de violação de lei', assim concedendo provimento
àquele recurso.
2. Nas suas alegações, concluiu assim o Ministério Público recorrente:
'1º Apenas se situa no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República a definição das 'bases gerais' do regime de aposentação da função pública, nos termos da alínea v) do nº 1 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa.
2º Não contende com as referidas 'bases gerais' o estabelecimento pelo artigo 6º do Decreto-Lei nº 415/87, de 31 de Dezembro, de um regime especial e transitório, traduzido na não consideração, para efeitos de cálculo da pensão de aposentação, de uma simples majoração contabilística dos vencimentos que servem de base ao cômputo daquela, destinada a compensar os funcionários no activo do alargamento do âmbito de incidência do imposto profissional, não se estendendo esta medida de política fiscal aos funcionários aposentados'.
3. Contra-alegou o ora recorrido J..., sustentando o julgado e concluindo deste modo:
'1. As normas constante do artigo 6º do DL 415/87, de 31.12 e Portaria nº
344-B/88, de 31.o5 são formal, orgânica e materialmente inconstitucionais por excederem o objecto e âmbito de aplicação da Lei nº 49/86, de 31.12, artigo 67º;
2. As ditas normas são objectivamente violadoras dos princípios constitucionais da igualdade e da justiça'.
4. Vistos os autos, cumpre decidir.
Na sentença recorrida, para se chegar à já referida conclusão de que se está perante 'norma formal e organicamente inconstitucional', o Mmº Juiz a quo alinhou a seguinte ordem de cosiderações:
'A pensão da aposentação fixada ao ora recorrente fundamentou-se no disposto no artº 6º do DL 415/87, de 31.12 e na Portaria nº 344-B/88, de 31.5.
Aquele diploma foi decretado pelo Governo ao abrigo de uma autorização legislativa concedida pelo artº 67º da Lei nº 49/86, de 31.12 e nos
termos da alínea b) do nº 1 do artº 201º da C.R.P.
Nos termos do nº 1 do artº 67º, sob a epígrafe 'Tributação dos cargos públicos' da Lei nº 49/ /86, de 31.12 (Orçamento do Estado para 1987), o Governo ficou autorizado a: a) 'Adoptar as medidas adequadas com vista a que, com a necessária flexibilidade, como exige a diversidade das situações em presença, se assegure a partir de 1 de Janeiro de 1987 a tributação das remunerações dos funcionários e agentes da Administração Pública, magistrados de qualquer tribunal, magistrados do Ministério Público, elementos das forças militares e de segurança e titulares de cargos políticos;
b) Incorporar nas remunerações ilíquidas as compensações necessárias para que a tributação das remunerações referidas na alínea anterior tenha, para os interessados, efeitos neutros em termos de remuneração líquida em 1987, a nível individual e para cada cargo exercido'. A autorização legislativa é, assim, clara quanto às regras atinentes ao objecto, sentido, extensão e duração das alterações a introduzir na tributação dos titulares de cargos públicos - vidé nº 2 do artº 168º da CRP.
Com efeito, e tal como resulta da letra do referido preceito e do nº
1 do preâmbulo do DL nº
415/87, o sentido da referida autorização é viabilizar a substituição dos impostos cedulares, até então existentes, pelo imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, alargando a base da incidência fiscal e eliminando as isenções de que vinham beneficiando algumas categorias de contribuintes, onde avultavam, além dos referidos nos nºs 2 e 3 do artº 67º (onde não estão incluídos os aposentados), 'os funcionários e agentes da Administração Pública, magistrados de qualquer tribunal, magistrados do Ministério Público, elementos das forças militares e de segurança e titulares de cargos políticos', introduzindo as necessárias correcções para que a tributação em causa tivesse efeitos neutros em termos de remuneração líquida para o ano de 1987 (cfr. ponto
1 do preâmbulo do DL nº 415/87, de 31.12).
Ou seja, a autorização legislativa incide (objecto) sobre as medidas legislativas a adoptar quanto à tributação das remunerações de titulares dos cargos públicos e dos funcionários e docentes referidos nos nºs 2 e 3 do artº
67º da Lei nº 49/86, (sendo que as remunerações destes últimos são equiparadas para efeitos de tributação, nos termos daquele preceito, a remunerações de
'cargos públicos'), não sendo extensível à tributação de quaisquer outras remunerações, designadamente às pensões dos aposentados dos cargos públicos.
E tendo a autorização por objecto a adopção de
medidas legislativas com vista à tributação das remunerações de titulares de cargos públicos, nos termos supra descritos, é manifestamente abusiva, por exorbitar o seu objecto, qualquer interpretação que inclua na previsão daquele preceito os servidores do Estado e das pessoas colectivas de direito público que já não se encontram, em virtude da aposentação, no exercício de funções públicas
- cfr. João Alfaia, in 'Dicionário Jurídico da Função Pública', Vol. I, pág. 401 e seguintes. EM SUMA: o Governo ao ter, através do artº 6º do DL 415/87, de 31.12 e da Portaria nº 344-B/ /88, de 31.5, introduzido um elemento novo, pelo menos, do ponto de vista quantitativo - dedução de um determinado montante nas remunerações constantes das tabelas postas em vigor para a função pública a partir de 1988 ou de quaisquer outras tabelas em que haja majoração de vencimentos em virtude da tributação em imposto profissional - para efeitos de cálculo das pensões da competência da Caixa Geral de Aposentações, não respeitou nem o objecto nem o sentido da autorização legislativa que lhe havia sido concedida pelo artº 67º da Lei nº 49/86, de 31.12, o que viola o artº 168º/2 da C.R.P.
Nos termos do artº 168º/1, al. v) da CRP, o regime as 'Bases do regime o âmbito da função pública' é da exclusiva competência da Assembleia da República. E sendo a remuneração um
dos elementos básicos para o cálculo da pensão de aposentação, não se poderá deixar de entender que a alteração deste elemento, por respeitar a um direito subjectivo do aposentado - o direito à pensão de aposentação calculada com base num determinado num determinado vencimento -, é matéria incluída na competência exclusiva daquele órgão de soberania'.
5. Dispõe o questionado artigo 6º do Decreto-Lei nº 415/87:
'Artigo 6º Cálculo das pensões
1. No cálculo das pensões da competência da Caixa Geral de Aposentações e do Montepio dos Servidores do Estado, fixadas com base nas remunerações constantes das tabelas postas em vigor para a função pública a partir de Janeiro de 1988 ou de quaisquer outras tabelas em que haja majoração dos vencimentos em virtude da tributação em imposto profissional, far-se-à a dedução necessária à eliminação dos efeitos da respectiva majoração.
2. O montante da dedução a efectuar será calculado nos termos de portaria do Ministro das Finanças'.
Não oferece dúvidas que aquele artigo 6º, dispondo sobre o 'cálculo das pensões da competência da Caixa Geral de
Aposentações e do Montepio dos Servidores do Estado', introduziu um 'mecanismo corrector' nesse cálculo, conforme se colhe do nº 4 do preâmbulo desse diploma, e também é indubitável que o citado Decreto-Lei nº 415/87, como o próprio legislador enuncia, foi emitido no uso da 'autorização legislativa concedida pelo artigo 67º da Lei nº 49/86, de 31 de Dezembro, e nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 201º da Constituição'.
Os termos em confronto, na linha do raciocínio argumentativo do Mmº Juiz a quo, estão, pois, na autorização legislativa e no uso que dela fez o Governo, a saber se foi tal autorização respeitada ou excedida (e como autorização concedida na lei do orçamento, que é o caso da Lei nº 49/86, está vinculada à observância do disposto no artigo 168º da Constituição, conforme manda o seu nº 5).
É que uma lei de autorização legislativa visa apenas habilitar o Governo a legislar em matéria reservada à Assembleia da República, no quadro do citado artigo 168º, sendo que, por conseguinte, ao Governo fica marcado o terreno em que ele poderá fazer uso da autorização .
Por seu turno, um decreto-lei autorizado tem natureza diferente dos restantes decretos-leis do Governo, constituindo 'uma espécie particular de decretos-leis, aliás formalmente identificados pela própria referência expressa
à lei de autorização (artº 201-3)' - Gomes Canotilho e Vital Moreira, loc. cit.
'Os decretos-leis autorizados podem versar matérias da reserva de competência legislativa da AR nos precisos termos da lei de autorização. Se não respeitarem essa lei, eles deixam de ter habilitação constitucional, sendo portanto organicamente inconstitucionais, tudo se passando como se faltasse lei de autorização, lá onde o decreto-lei extravasa ou desrespeita a lei. A violação da lei de autorização, implica automaticamente uma violação da competência legislativa reservada da AR (...). Além disso, poderá existir ilegalidade material por violação de lei com valor reforçado (a lei de autorização), quando o decreto-lei infringir as determinações suplementares da lei de autorização'
(os mesmos Autores, pág. 777).
6. Revertendo à hipótese sub judicio, temos que o Governo editou o Decreto-Lei nº 415/87 no uso da autorização legislativa contida no artigo 67º da Lei nº 49/86, a lei do orçamento para 1987.
E com aquele artigo 67º o Governo ficou habilitado, no plano da concretização de objectivos fixados para uma Reforma Fiscal então em curso, a
'proceder ao alargamento da base de incidência fiscal e à eliminação de isenções de que vêm beneficiando algumas categorias de contribuintes' e também a garantir que a tributação das remunerações 'tenha, para os interessados, efeitos neutros em termos de remuneração líquida em 1987, a nível individual e para cada cargo exercido'.
Com um âmbito assim claramente delimitado, em obediência ao disposto no nº 2 do artigo 168º da Constituição, a autorização legislativa foi aceite e compreendida pelo Governo, que explícitou no preâmbulo do diploma autorizado pretender 'pôr em execução, na parte que respeita à tributação em imposto profissional, as medidas a que alude a autorização legislativa e fixar as compensações devidas respeitantes aos vencimentos de 1987, de forma que seja mantido, em todos os casos, o princípio da neutralidade acima enunciado' (nº 3 do preâmbulo).
Além disso, no quadro da então Reforma Fiscal, criou com a norma questionada do artigo 6º 'um regime especial e transitório, traduzido na não consideração, para efeitos de cálculo da pensão de aposentação, de uma simples majoração contabilística dos vencimentos que servem de base ao cômputo daquela, destinada a compensar os funcionários no activo do alar
gamento do âmbito de incidência do imposto profissional, não se estendendo esta medida de política fiscal aos funcionários aposentados', talqualmente se expressa o Ministério Público na conclusão 2ª das suas alegações. Tal significa que, munido o Governo de uma autorização legislativa que o habilitava a tomar medidas, a nível de imposto profissional, relativamente às remunerações de um determinado universo de servidores públicos, civis e militares, no activo, indo de cargos públicos a cargos políticos, estendeu a normatização ao campo das
'pensões da competência da Caixa Geral de Aposentações e do Montepio dos Servidores do Estado', influindo no respectivo cálculo, por via de uma dedução a fixar 'nos termos de portaria do Ministro das Finanças', a Portaria nº 344/B/88, de 31 de Maio, também questionada.
O 'mecanismo corrector' no cálculo dessas pensões é, porém, uma decorrência lógica e natural das medidas autorizadas com o artigo 67º da Lei nº
49/86, as quais não podiam deixar de abranger as pensões, a par das remunerações de servidores públicos, civis e militares, no activo.
É que, inscrevendo-se o Decreto-Lei nº 415/87, à época, nos trabalhos do Regime Fiscal, com vista à substituição dos impostos cedulares então existentes por dois únicos impostos (o que hoje são o IRS e o IRC), com ele procedeu o legisla dor à eliminação da isenção de imposto profissional para certas categorias de contribuintes - desde logo, os 'funcionários e agentes da Administração Pública central, regional e local' (nº 1 do artigo 1º) - e, ao mesmo tempo, ao alargamento da base de incidência fiscal, garantindo-se também para tais categorias que as remunerações 'auferidas no ano de 1987 não deviam ver, em termos líquidos, o seu nível afectado após a tributação, pelo que teriam de ser correspondentemente ajustadas' (ajustamento calculado no artigo 2º), na linguagem do preâmbulo do diploma. Ao proceder-se, assim, à majoração das remunerações por efeito da tributação em imposto profissional, relativamente ao universo dos interessados com tais medidas - sob a epígrafe, na lei de autorização, de 'Tributação de cargos públicos'-,lógica e naturalmente o legislador adoptou uma solução de cariz transitório, no sentido de não ter a majoração quaisquer reflexos no cálculo das pensões da competência da Caixa Geral de Aposentações e do Montepio dos Servidores do Estado, de forma a evitar distorções acentuadas entre pensões atribuídas antes e depois da referida majoração e sem esquecer a consideração de que os aposentados não pagavam, nem iam pagar, um imposto profissional.
É a solução constante do questionado artigo 6º, aí se determinando a 'dedução necessária à eliminação dos efeitos da respectiva majoração' (nº 1), em montante a calcular
'nos termos de portaria do Ministro das Finanças' (nº 2, com referência à questionada Portaria nº 344-B/88).
Tal significa, como diz o Ministério Público, nas suas alegações, que não se trata, na verdade, 'de definir os traços fundamentais, as opções político-legislativas decisivas e essenciais sobre a aposentação na função pública, mas tão-somente de não atribuir relevância, para efeitos de cálculo das pensões de aposentação, a uma majoração puramente contabilística dos vencimentos e remunerações que servem de base ao cômputo daquelas. E sendo certo que - como se referiu - tal regime transitório surge como meramente consequencial de um alargamento do âmbito de incidência do imposto profissional, que não respeita aos funcionários e agentes aposentados - não fazendo sentido 'compensar' estes de uma pretensa diminuição de rendimento líquido que não chega a verificar-se, por não se estabelecer, quanto a eles, a tributação em imposto profissional'.
Situação 'meramente consequêncial' que o legislador não podia, nem devia, deixar em aberto, no conjunto das medidas tomadas com o Decreto-Lei nº
415/87, ao abrigo da habilitação constante da Lei nº 49/86, que constituiu, assim, condição para o próprio exercício de poderes por ela delegados cfr. António Vitorino, As Autorizações Legislativas na Constituição Portuguesa, policop., vol. II, págs 336 e 337; cfr. o
acórdão deste Tribunal Constitucional nº 213/92, nos Acórdãos, 22º volume, pág.
269).
Sendo isto assim, o Governo, nesse ponto do cálculo das pensões, como ficou regulado no artigo 6º do Decreto-Lei nº 415/87, acabou também por respeitar aquela autorização legislativa, estando-lhe permitido num diploma legal, que é uma espécie particular de decretos-leis, adoptar providências que são uma decorrência lógica e natural da autorização, do tipo daquela contida no artigo 6º.
Tanto basta para dar como respeitado, contrariamente ao entendimento do Mmº Juiz a quo, o artigo 168º, nº 2, da Constituição, independentemente de saber se a matéria do tal 'mecanismo corrector' se inclui ou não na reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República, pois, ainda que seja assim, a fonte legitimadora do artigo 6º está na lei de autorização.
Com o que não procede a invocação de inconstitucionalidade formal e orgânica relativamente àquela norma do artigo 6º e, por consequência, também relativamente à Portaria nº 344-B/88.
7. Termos em que, DECIDINDO, concede-se provimento
ao recurso, e revoga-se a sentença recorrida, para ser reformada de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade. Lisboa, 15 de Janeiro de 1997 Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia José Manuel Cardoso da Costa