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Processo n.º 1134/98 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. L... interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão da Relação de Lisboa, de 25 de Novembro de 1998.
Pretende que este Tribunal aprecie a constitucionalidade das normas constantes dos artigos 202º, n.º 1, alínea a), 212º, nºs 1, alínea b), e 2, e 283º, nºs 1 e
2, do Código de Processo Penal, 'se interpretados no sentido de a dedução de acusação em processo crime implicar alteração dos pressupostos que determinaram a aplicação de uma medida de coacção'.
A recorrente impugnou perante a Relação o despacho judicial, de 19 de Outubro de
1998, que recebeu a acusação deduzida contra si pelo Ministério Público, imputando-lhe a prática de um crime de tráfico de estupefacientes [ previsto e punível pelo artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C (heroína, haxixe e cocaína)] e de um crime de detenção ilegal de arma de defesa (previsto e punível pelo artigo 6º da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho), que terá cometido, em co-autoria, com seu filho R.... Impugnou-o, na parte em que tal despacho determinou a sua prisão preventiva, 'por se verificarem os requisitos gerais do artigo 204º do Código de Processo Penal e se mostrar inadequada e insuficiente outra medida de coacção'
A Relação, pelo citado acórdão de 25 de Novembro de 1998, negou provimento ao recurso.
A recorrente, nas conclusões das alegações que apresentou neste Tribunal, disse o seguinte com interesse para o recurso:
(a). Foi suscitada a inconstitucionalidade das normas dos arts. 202º, n.º 1, alínea a), 212º, nºs 1, alínea b), e 2, 283º, n.º 2, do CPP, se interpretadas no sentido de a dedução da acusação acarretar ou implicar a alteração dos pressupostos que determinaram a aplicação de uma medida de coacção, por violação dos arts. 28º, n.º 2, e 32º, nºs 1 e 2, da CRP.
(b). Com efeito, na decisão recorrida, em que estava em apreciação a aplicação da prisão preventiva a uma arguida que se encontrava em liberdade, considerou-se que a dedução de acusação (art. 283º, n.º 2, do CPP) originaria a demonstração de fortes indícios da prática de crime [ art. 202º, n.º 1, alínea a), do CPP] , o que determinaria a alteração dos pressupostos em que assentou a medida de coacção [ art. 212º, nºs 1, alínea b), e 2, do CPP] .
(c). Porém, tal interpretação viola os artigos da Constituição referidos em 1, porque faz corresponder a aplicação das medidas de coacção a uma concepção gradualista, ou seja, às fases em que o processo se encontra, o que origina o aumento de uma presunção de culpabilidade à medida que o processo avança, o que
é de todo incompatível com o disposto no art. 32º, n.º 2, da CRP, que prevê a manutenção da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da decisão final.
(d). Ao arguido que cumpra a obrigação decorrente da medida de coacção e sobre o qual não exista notícia da prática de qualquer acto que coloque em causa a validade da medida de coacção, não pode ser alterada a mesma, por não se ter por verificada qualquer alteração dos pressupostos em que a mesma se fundou, sob pena de violação do art. 32º, n.º 1, da CRP.
(e). Por outro lado, o art. 283º, n.º 2, não refere sequer se indícios suficientes podem ou devem ser equiparados a fortes indícios [ art. 202º, n.º 1, alínea a), do CPP] , com o que, e formalmente, na tese da decisão recorrida, se originaria a alteração dos pressupostos a que alude o art. 212º, nºs 1, alínea b), e 2, do CPP, pelo que, também por esta aplicação destas normas, se vislumbra a inconstitucionalidade das mesmas, por violação dos arts. 32º, nºs 1 e 2, da CRP.
Alegou também o Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal que formulou as seguintes conclusões:
1ª. Não tendo a arguida suscitado, durante o processo, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa que pudesse suportar o recurso de constitucionalidade interposto, fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, e não se configurando o decidido pela Relação como 'decisão surpresa', de conteúdo insólito ou imprevisível, com que a recorrente não pudesse razoavelmente contar, inexiste um essencial pressuposto daquele recurso.
2ª. A interpretação normativa acolhida na decisão recorrida traduz-se, tão-somente, em considerar que os 'fortes indícios' da prática do crime, exigidos pelo artigo 202º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, têm de ser avaliados, em cada momento processual, de acordo com os factos e provas que vão sendo carreados e sedimentados no processo - não se configurando a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, no caso dos autos, como consequência
'automática' da dedução da acusação pelo Ministério Público ou como reflexo de uma obviamente inexistente presunção de culpabilidade - mas tão-somente como corolário de uma apreciação autónoma e actual de tal pressuposto, face ao conteúdo e aos resultados do inquérito que findou.
3ª. O que implica, afinal, que da norma em causa se não tenha feito a alegada interpretação inconstitucional, sustentada pelo recorrente.
4ª. Termos em que não deverá conhecer-se do recurso interposto.
A recorrente - que, na sequência do referido despacho judicial, foi presa em 3 de Novembro de 1998; e que, em 11 de Dezembro de 1998, foi julgada e condenada, por decisão já transitada em julgado, em seis anos de prisão -, ouvida sobre a questão prévia de não conhecimento do recurso, disse que 'deve ser julgada improcedente a questão prévia suscitada' pelo Ministério Público, uma vez que 'a surpresa para a recorrente traduziu-se no facto de a alteração da medida de coacção a que estava sujeita ter sido apenas consubstanciada no facto de com a dedução de acusação se terem alterado os pressupostos de facto e de direito que determinavam a manutenção da liberdade da recorrente. Isto é, apenas se discutia sobre o ponto de vista material se existiam motivos para a alteração da medida, sendo que a decisão recorrida alude a critérios de natureza formal, dedução de acusação, para convolar ou alterar a medida, o que era de todo inesperado'.
2. Cumpre decidir: e, desde logo, se deve conhecer-se do recurso.
II. Fundamentos:
3. Regista-se que a recorrente, na motivação do recurso para a Relação, não suscitou a inconstitucionalidade de quaisquer normas jurídicas, designadamente das que pretende ver agora apreciadas ratione constitutionis.
É este, de resto, um facto que a própria recorrente, no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, se apressou a reconhecer.
Por isso, só poderá conhecer-se do recurso, se ela dever ser dispensada do ónus de tal suscitação. E, ainda assim, se o acórdão recorrido tiver aplicado tais normas com a interpretação que ela acusa de inconstitucional.
Para se poder recorrer ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, é, desde logo, necessário que o recorrente suscite, durante o processo (em regra, antes de proferida a decisão), a inconstitucionalidade das normas jurídicas cuja apreciação, ratione constitutionis, pretende; e, bem assim que o faça 'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer' [ cf. o citado artigo 70º, n.º 1, alínea b), conjugado com o artigo 72º, n.º 2] . Ou seja: a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada perante o tribunal recorrido em termos de ele ficar a saber que tem essa questão para resolver - o que exige que a mesma seja colocada de forma clara e perceptível - e em tempo de a poder decidir. Só assim não tem que ser, nalgum caso anómalo e excepcional, em que o recorrente não teve oportunidade processual de suscitar tal questão antes de o tribunal proferir a decisão recorrida - é dizer, a decisão que aplicou as normas cuja compatibilidade com a Constituição deseja ver apreciada. Nessa hipótese, não é, de facto, exigível o cumprimento, por parte do recorrente, do ónus da suscitação da questão de constitucionalidade, durante o processo. Por isso, há que dispensá-lo do cumprimento desse ónus. Isso é o que sucede, designadamente, quando a decisão recorrida aplica as normas que o julgamento do caso convoca com uma interpretação de todo insólita - e, por isso mesmo, imprevisível.
Vejamos, então.
4. O acórdão recorrido - depois de registar que a ora recorrente, aquando do primeiro interrogatório (17 de Março de 1998), 'foi colocada em liberdade provisória, com a obrigação de prestar termo de identidade e residência (artigo
196º do Código de Processo Penal), porquanto, nessa altura, ainda não existiam indícios suficientes da prática ‘por parte da arguida’ de qualquer ilícito criminal' - acrescentou: Acontece que, recolhida a prova e findo o inquérito, o Ministério Público acusou os arguidos da co-autoria do referido crime de tráfico de estupefacientes e, ainda, do aludido crime de detenção ilegal de arma de defesa - cf. artigo 283º, n.º 2, do Código de Processo Penal (fortes indícios). Assim, o douto despacho recorrido, ao receber a acusação, constata a existência, então, dos aludidos fortes indícios da prática pelos arguidos dos mencionados crimes [ ...] . E, mais adiante, esse aresto sublinhou: Quer dizer: onde anteriormente (no despacho judicial , após o interrogatório do arguido detido) não havia, passou agora a haver fortes indícios da prática pela arguida, em co-autoria, além do mais, do citado crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
15/93 - como vimos, punível com prisão de 4 a 12 anos. Constata-se, agora, aquando do despacho recorrido, que houve uma alteração (quer de facto, quer de direito) dos pressupostos de aplicação da medida de coacção - cf. citado artigo 212º, nºs 1, alínea b), e 2, do Código de Processo Penal. E isto significa, no caso concreto, que não só passou a ser permitida - artigo
202º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal - mas, de acordo com o critério do legislador, deve ser considerada adequada a prisão preventiva - cf. artigo 54º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93 (cf. ainda artigo 209º, n.º 1, do Código de Processo Penal). E tanto assim é que, se o Mº Juiz a quo não aplicasse a medida de prisão preventiva à arguida teria de fundamentar tal não aplicação. Assim, tendo sobrevindo novos motivos - mormente, os indícios fortes da prática do crime de tráfico de estupefacientes pela arguida - e sendo este crime punível com prisão de 4 a 12 anos, parece evidente que, no caso concreto, se justifica a aplicação da medida de prisão preventiva à arguida (tal como já acontecera ao co-arguido Ricardo Botas) - cf. n.º 2 do artigo 212º do Código de Processo Penal.
Como se vê, o acórdão recorrido não fez das normas, que o julgamento do caso convocava, qualquer interpretação insólita ou imprevisível; antes, adoptou a interpretação corrente, que é, de resto, uma interpretação razoável. Na verdade, o que, em síntese, nele se disse foi que, tendo sido deduzida acusação contra a recorrente pelos crimes de tráfico de estupefacientes e de detenção ilegal de arma de defesa, que o juiz recebeu, é porque, no inquérito, se recolheram indícios suficientes de que ela praticou tais ilícitos (cf. artigo
283º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal). Ora, essa recolha de indícios suficientes da prática desses crimes criou no processo uma situação diversa da que se verificava no momento em que a recorrente foi colocada em liberdade provisória: onde antes não existiam indícios suficientes, agora, passou a havê-los. E, como esses indícios respeitam à prática de um crime (o de tráfico de estupefacientes), que é punível com prisão de 4 a 12 anos, a liberdade provisória passou a ser insuficiente e inadequada, por isso que se determinou a prisão preventiva da arguida - tudo, conforme ao que prescrevem os artigo 202º, n.º 1, alínea a), e 212º, nºs 1, alínea b) e 2, ambos do Código de Processo Penal, lidos conjugadamente com o artigo 54º, n.º 1, do citado Decreto-Lei nº
15/93 e com o artigo 209º, nºs 1 e 2, alínea d), daquele Código.
Tal interpretação só seria insólita e imprevisível, se estivesse correcta a tese da recorrente, para quem o arguido - que o juiz, após o primeiro interrogatório, coloca em liberdade provisória, mediante termo de identidade e residência, por, nesse momento, ainda não existirem indícios suficientes da prática do crime que lhe é imputado - adquire o direito de não mais vir a ser preso preventivamente, ainda que, durante o inquérito, se recolham provas de que ele cometeu crime de tal gravidade que, para o manter em liberdade, o juiz necessita de fundamentar a sua decisão. Tal tese é, no entanto, absolutamente insustentável, como bem decorre das normas legais que regulam a matéria das medidas de coacção, algumas das quais se citaram atrás.
Não sendo insólita, nem imprevisível a interpretação que o acórdão recorrido fez das normas que constituem objecto do recurso, não é caso de dispensar a recorrente do ónus da suscitação atempada da questão de inconstitucionalidade. Por isso, como ela só a levantou no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, falta o pressuposto da suscitação da questão de constitucionalidade, durante o processo.
Acresce que o acórdão recorrido tão-pouco aplicou as normas sub iudicio com o sentido que a recorrente acusa de inconstitucional: na sua tese, essa interpretação é a de que a dedução da acusação contra um arguido, que se encontre em liberdade provisória mediante termo de identidade e residência, implica ou acarreta, como seu efeito automático, a alteração dos pressupostos que determinaram a aplicação dessa medida, desse modo introduzindo no processo uma espécie de presunção de culpabilidade.
Ora - como se viu e sublinha o Ministério Público -, a interpretação acolhida pela decisão recorrida traduz-se, tão-somente 'em considerar que os ‘fortes indícios’ da prática do crime, exigidos pelo artigo 202º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, têm de ser avaliados e analisados, em cada caso, de acordo com os factos e provas que vão sendo carreados e sedimentados no processo
- não se configurando a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva [
...] como consequência ‘automática’ da dedução de acusação pelo Ministério Público ou como reflexo de uma obviamente inexistente presunção de culpabilidade
- mas tão-somente como corolário de uma apreciação autónoma e actual de tal pressuposto, face ao conteúdo e aos resultados do inquérito'.
Deste modo, também se não verifica, no caso, o pressuposto da aplicação das normas, que constituem objecto do recurso, com o sentido que a recorrente acusa de inconstitucional.
Regista-se, por último, que, tendo a recorrente sido já condenada por decisão transitada em julgado, o julgamento sobre a questão de constitucionalidade, que este Tribunal, acaso, proferisse, ainda que lhe fosse favorável, não poderia repercutir-se sobre a decisão do caso – e, designadamente, sobre a situação processual (de presa) da arguida.
5. Conclusão: Como se não verificam os pressupostos do recurso interposto, que é o da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, nem existe interesse processual na decisão da questão de constitucionalidade que o mesmo coloca, não pode conhecer-se do seu objecto.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). não conhecer do objecto do recurso;
(b). condenar a recorrente nas custas, com oito unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 1999 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida