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Processo nº 278/94
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A. demandou, em acção com processo comum e forma ordinária, B., pedindo seja declarado o seu direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra 'P', de um prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na cidade do ----------, condenando-se a ré a entregá-la ao autor livre de pessoas e bens e, ainda, a pagar-lhe a indemnização dos danos que se liquidarem em execução de sentença.
A acção correu termos no Tribunal do 9º Juízo Cível da Comarca do Porto, vindo a ré alegar, além do mais, ter vivido durante dez anos em união de facto com o autor, existindo dois filhos menores do casal, funcionando a reivindicada fracção autónoma como morada de família, pedindo, em reconvenção, que o andar lhe seja dado em arrendamento, atento o interesse dos filhos, de acordo com o disposto no artigo 1793º do Código Civil.
Por sentença de 1 de Outubro de 1991 foi o pedido reconvencional julgado improcedente, por se ter entendido, segundo a letra do preceito, pressupor a sua aplicação a existência de vínculo matrimonial.
Inconformada, apelou a ré para a Relação do Porto, sustentando, nomeadamente, que as consequências emergentes da ruptura da união de facto, para os filhos menores da recorrente e do recorrido, cabem no âmbito da previsão do citado artigo 1793º, o que se harmoniza com o princípio constitucional da não discriminação entre filhos, consagrado no nº 4 do artigo
36º da Constituição da República (CR).
No entendimento da ré, esse princípio impõe a aplicação analógica daquela norma aos casos de configuração semelhante à do vertente, já que, 'a não admitir-se a aplicação analógica da referida norma às uniões de facto, estar-se-á não só a dar um tratamento discriminatório aos filhos nascidos fora do casamento [...] como ainda a criar a solução aberrante de proporcionar uma situação vantajosa e animadora para os progenitores, proprietários da casa de morada de família, os quais se vêem, assim, ilibados do dever de dar de arrendamento a mesma no caso de ruptura dessa união, contrariamente aos senhorios, inelutavelmente sujeitos a reconhecer como arrendatário o companheiro que vivesse maritalmente com o primitivo inquilino'.
Para o efeito, e designadamente, invocou a ré o acórdão deste Tribunal nº 359/91 - publicado no Diário da República, I Série-A, de 15 de Outubro de 1991 - e rematou as suas alegações considerando que a sentença recorrida violou as normas dos artigos 36º, nº 4, da CR e 1793º do Código Civil.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 13 de Julho de 1992, concedeu provimento ao recurso, nessa parte revogando a decisão recorrida, por aceitar que o princípio constitucional da não discriminação dos filhos se 'sobrepõe' à norma do citado artigo 1793º, nº 1, devendo a casa de morada de família, própria de um dos progenitores, seguir o destino previsto nesse diploma legal desde que, ocorrendo cessação da união de facto, esteja em causa o interesse dos filhos.
Reagiu, desta vez, o autor, interpondo recurso, de revista, para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), mantendo a ré a sua posição inicial, considerando que só a manutenção do acórdão - que 'fez uma aplicação rigorosa e perfeita das normas legais e dos princípios jurídicos competentes'
- se mostra conforme ao princípio da não discriminação.
O STJ, por acórdão de 26 de Maio de 1993, não o entendeu assim, e, tendo 'por demais evidente que a previsão deste normativo
[refere-se ao artigo 1793º, nº 1, do Código Civil] se reporta apenas, aos cônjuges, ou seja, a quem se tenha ligado por casamento', tal como definido está no artigo 1577º do Código Civil, concedeu a revista e revogou o acórdão da Relação, ficando a subsistir a sentença da 1ª instância.
Do assim decidido recorreu a ré para o Tribunal Constitucional, porquanto, segundo alega, do acórdão 'resulta uma aplicação e interpretação inconstitucional da norma do artigo 1793º do Código Civil', recurso que não foi recebido por despacho de 30 de Junho de 1993 do Conselheiro relator, confirmado por acórdão de 28 de Outubro seguinte.
Da reclamação da ré para o Tribunal Constitucional veio a surgir o Acórdão nº 238/94, de 22 de Março de 1994, inédito, que a deferiu, dado entender-se estarem presentes os pressupostos do recurso de constitucionalidade previstos na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro: discute-se a constitucionalidade da interpretação dada pelo STJ à norma do nº 1 do artigo 1793º do Código Civil, recusando-se-lhe uma extensão por analogia que, na óptica da ré (então reclamante), será a interpretação conforme às normas dos artigos 36º, nº 4, e seguintes da CR. Distinguiu-se então, com o abono da jurisprudência sedimentada deste Tribunal, entre a directa estatuição de certa norma e uma determinada interpretação de que a mesma seja susceptível, da impugnação da decisão propriamente dita, só neste último caso não se abrindo via para o recurso previsto no artigo 70º, nº
1, alínea b), da Lei nº 28/82 (cfr. J. M. Cardoso da Costa, A Jurisprudência Constitucional em Portugal, 2ª ed., Coimbra, 1992, pág. 50, e a jurisprudência aí citada).
2.- Admitido, por consequência, o recurso para o Tribunal Constitucional (despacho de 3 de Maio de 1994) alegaram recorrente e recorrido.
A primeira rematou as suas alegações com as seguintes conclusões:
'I - O douto Acórdão do STJ fez uma interpretação restritiva da norma do artigo 1793º, nº 1, do Cód. Civil, recusando-lhe uma extensão por analogia à situação em apreço, pelo que não pode manter-se;
II - A interpretação dada na decisão proferida pelo STJ à referida norma do nº 1 do artigo 1793º do Código Civil é inconstitucional, por manifesta violação dos princípios vertidos nos artigos 36º, nº 4, e 13º da Lei Fundamental.
Senão vejamos:
III - A presente causa é uma acção de reivindicação do direito, interposta pelo Recorrido contra a Recorrente, com vista à desocupação e entrega ao mesmo da fracção autónoma em juízo, de que é proprietário e que aquela e os filhos de ambos ocupam, sem qualquer título.
IV - Em pedido reconvencional, a Recorrente peticionou que o Tribunal desse à mesma o arrendamento da referida fracção autónoma, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 1793º do Cód. Civil, aplicável à situação em apreço.
Isto porque
V - Recorrente e Recorrido viveram maritalmente durante vários anos na companhia dos filhos menores de ambos, na fracção em causa, casa de morada de família, propriedade daquele.
VI - A referida união de facto cessou, continuando a Recorrente a habitar na aludida casa de morada de família, por necessidade daquela e no interesse dos filhos menores de ambos.
VII - Um dos princípios informadores da atribuição da casa de morada de família, ao abrigo da citada norma legal - artigo 1793º, nº 1, do Cód. Civil - é a protecção de 'interesse dos filhos'.
VIII - Não pode entender-se que o interesse dos filhos menores apenas seja susceptível de protecção jurídica no caso dos filhos nascidos do casamento e já não relativamente aos filhos cujos pais viviam em união de facto na casa própria de um deles.
IX - Havendo filhos menores e estando em causa o interesse destes, a lei confere às uniões de facto, constituídas em condições análogas às dos cônjuges, cessando as mesmas, por força do princípio constitucional da não discriminação dos filhos, contido no nº 4 do artigo 36º da Constituição, idêntico tratamento.
X - Semelhante entendimento é o único que se harmoniza com o princípio constitucional previsto no nº 4 do artigo 36º da Lei Fundamental.
XI - Estamos em presença de uma situação idêntica à das normas dos nºs. 2 e 3 do artigo 1110º do Cód. Civil.
XII - Da análise dos nºs. 2 e 3 do artigo 1110º do Cód. Civil, resultou que, no plano do interesse dos filhos, por força do princípio consagrado no nº 4 do artº 36º da Constituição, não podem merecer tratamento discriminatório os filhos cujos pais não fossem casados, pelo que não pode excluir-se a aplicação daqueles preceitos às uniões de facto.
XIII - Há, pois, que fazer-se apelo ao referido princípio da não discriminação dos filhos nascidos do casamento e cujos pais viviam em união de facto, na aplicação das normas dos nºs. 2 e 3 do artigo 1110º do Cód. Civil, de harmonia com o que foi sublinhado pelo douto Acórdão do Tribunal Constitucional nº 359/91.
XIV - 'o que acabou de dizer-se para a situação contemplada nas normas dos nºs. 2 e 3 do artigo 1110º do CC - destino da casa de morada da família quando os cônjuges vivem em casa arrendada - tem inteira aplicação à situação contemplada na norma do nº 1 do artigo 1793º do Cód. Civil: destino da casa de morada da família pertença comum dos cônjuges ou de um deles'.
XV - 'A situações semelhantes deve corresponder o mesmo tratamento jurídico, quer por uma questão de justiça relativa, quer por uma questão de certeza e segurança do direito'.
XVI - Atento o facto de se verificarem, no caso sub judice, os pressupostos necessários à aplicação do artigo 1793º, nº 1, do Cód. Civil, por força do referido princípio constitucional, a casa de morada da família deverá seguir o destino previsto no mesmo.
XVII - O preceito do artigo 36º, nº 4, da Constituição, integrado no capítulo 'Direitos, Liberdades e Garantias' da Lei Fundamental, é directamente aplicável, vinculando entidades públicas, privadas e os próprios Tribunais.
XVIII - Por isso deixa de ter relevância o facto de se estar perante uma norma excepcional (artigo 1793º, nº 1, do Cód. Civil). 'A questão deverá ser decidida numa pura perspectiva Constitucional'.
XIX - O douto Acórdão do STJ sustentou que o regime do artigo
1793º, nº 1, do Cód. Civil, se reporta apenas aos cônjuges, pois a simples união de facto 'não confere aos unidos o estatuto de cônjuges', concluindo
XX - No sentido de que o preceito do artigo 1793º, nº 1, 'trata de regular apenas o efeito do divórcio ou da separação judicial de pessoas e bens relativamente a um particular reflexo dessas situações no tocante à casa de morada da família, comum ou própria de um dos cônjuges. Não é, assim, objectivo da norma em apreço regular directamente o estatuto dos filhos'.
XXI - Recusou, assim, a decisão proferida naquele Acórdão do STJ poder-se aplicar por analogia ao caso das uniões de facto, quando haja interesse dos filhos menores desta existentes, o regime preceituado no nº 1 do artigo
1793º do Código Civil.
XXII - Tal entendimento viola o disposto no nº 4 do artigo 36º da Constituição que consagra o princípio da não discriminação dos filhos em função de os progenitores serem ou não casados, pelo que tal interpretação não pode manter-se.
XXIII - Houve, pois, uma violação imediata de um direito constitucional específico dos filhos, na interpretação dada no Acórdão do STJ à norma do nº 1 do artigo 1793º do Código Civil.
XXIV - Esgotaram-se todas as vias judiciais normais, com vista à obtenção de uma decisão justa.
XXV - A decisão de que resulta a interpretação inconstitucional da norma do artigo 1793º, nº 1, do Código Civil emana de um Tribunal.
XXVI - Tal como refere o ilustre Prof.Gomes Canotilho:
' Mostram-se reunidos todos os pressupostos típicos da
'Verfassungsbeschwerde'...'.
XXVII - Em face de tudo quanto ficou exposto, a casa de morada da família em juízo deve ser dada de arrendamento à Recorrente.
Termos em que o presente recurso deve merecer provimento, declarando-se a inconstitucionalidade da interpretação dada no Acórdão do STJ ao nº 1 do artigo 1793º do Cód. Civil, com todas as consequências legais'(sublinhados originais).
Não se limitou o recorrido a contra-alegar uma vez que, simultaneamente, equacionou a questão prévia do não conhecimento do recurso.
Em sua tese, seria inconstitucional a decisão do Tribunal que conhecesse do recurso, dado que levaria implicada uma intenção legiferante e uma intenção de definição de critérios metodológicos de juridicidade que extravasariam os limites funcionais da fiscalização da constitucionalidade (artigos 277º e seguintes da CR).
Com efeito - e sempre nessa perspectiva - se o Tribunal viesse a considerar inconstitucional a não aplicação analógica do artigo 1793º à convivência more uxorio, assumiria um posicionamento organicamente inconstitucional, por violação do princípio da divisão de poderes
(artigo 114º da CR) e materialmente inconstitucional, por violação do princípio da tipicidade da produção normativa (artigo 115º da CR).
Assim, e quanto à cognoscibilidade do pedido, concluíu:
'1.- A circunstância do recurso ser admitido por acórdão deste TC, nos termos do artigo 77º, nº 3, da Lei de processo, não obsta a que o Tribunal não conheça do objecto do recurso;
2.- Interpretação restritiva e aplicação analógica são recursos metodológicos de natureza distintiva;
3.- A este TC está vedado conhecer da inconstitucionalidade de uma integração jurídica que não faça aplicação analógica;
4.- O conhecimento da pretensão de declaração de inconstitucionalidade da não aplicação analógica do artigo 1793º do CC às uniões de facto, extravasa os limites funcionais deste TC, porquanto
- implica uma intenção legislativa e
- uma intenção de definição metodológica.
5.- A decisão que conhecesse do pedido seria inconstitucional por
- violação do princípio da divisão dos poderes (artigo
114º da CR);
- violação do princípio da tipicidade da produção normativa (artigo 115º da CR)'
No entanto, e para a eventualidade de não se julgar procedente a questão prévia suscitada, também o recorrido contra-alegou relativamente à aplicação analógica do artigo 1793º, concluindo nos seguintes termos:
'1.- O conceito jurídico de família pressupõe uma alteração do status jurídico dos esposos o que implica a celebração de um contrato típico: o casamento;
2.- A qualificação 'casa de morada de família' integra o conceito de família em sentido jurídico - que pressupõe a existência de uma das fontes de relações jurídicas consagradas no art. 1576º;
3.- O direito reconhece efeitos jurídicos à união de facto mas não a institucionaliza;
4.- A união de facto não gera, por isso, uma relação de família juridicamente institucionalizada;
5.- A ordem jurídica, porque se demarca dessa institucionalização, não assume uma regulamentação integrada e totalizante da
'situação' respectiva - pelo que as omissões de regime não constituem lacunas do sistema;
6.- O princípio constitucional da não discriminação dos filhos não implica a não discriminação do estatuto das relações entre os progenitores;
7.- O interesse protegido pelo art. 1793º radica-se exclusivamente na esfera jurídica do cônjuge divorciado e não na dos filhos;
8.- A referência ao 'interesse dos filhos' constitui apenas um parâmetro para avaliar a necessidade que constitui o pressuposto do direito que o art. 1793º consagra;
9.- O acórdão do TC proferido no proc. 36/90 não sufraga o entendimento de que o art. 1110º é aplicável à ruptura das relações more uxorio;
10.- O art. 1793º constitui norma excepcionalíssima
- em relação ao princípio da liberdade contratual;
- ao regime do arrendamento urbano;
- à estrutura das normas jurídicas, pois não confere um direito subjectivo potestativo, antes a possibilidade dele ser constituído pelo tribunal;
- ao conteúdo do direito de propriedade que limita em termos de 'expropriação forçada';
- à conjuntura do mercado habitacional, cuja previsão não corresponde à situação actual.
11.- O divórcio não é materialmente equivalente à ruptura da união de facto;
12.- Não é, por isso, tal norma susceptível de aplicação analógica;
13.- O art. 1793º do C.C. não é aplicável às relações more uxorio.'
Finalmente, veio a recorrente responder à suscitada questão prévia, o que fez no sentido do desatendimento desta, alegando para o efeito, e nomeadamente, não estar em causa uma pretensa mediação legislativa do Tribunal ao emitir um eventual juízo de aplicação às uniões de facto do disposto no artigo 1793º do Código Civil, por via analógica. Apenas se pretende que o Tribunal se pronuncie sobre a interpretação dada a essa norma pelo acórdão recorrido.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
1.- A questão prévia da cognoscibilidade do recurso
Como já houve oportunidade de consignar, suscitou-se inicialmente o problema da admissibilidade do recurso de constitucionalidade tendo como fundamento a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
O Tribunal Constitucional lavrou, então, nos apensos autos de reclamação, o Acórdão nº 238/94, publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Julho de 1994, que teve por admissível esse recurso.
Verificou-se, na altura, que a ora recorrente - então reclamante - não se conformara com o acórdão do Supremo que concedera a revista e revogara a decisão da Relação, manifestando a sua discordância quanto
à interpretação dada por esse Alto Tribunal ao nº 1 do artigo 1793º do Código Civil, por forma que considera violar o disposto nos artigos 36º, nº 4, e 13º da CR, o que teve por leitura restritiva da norma, ao recusar-lhe a extensão analógica.
O recurso viria, no entanto, pelo mencionado Acórdão nº 238/94 deste Tribunal, a ser admitido.
Ponderou-se, então, a este propósito:
'[...] - Ora, no caso sub judicio, a reclamante - ainda que, reconheça-se, de forma não muito feliz -, após invocar o seu inconformismo perante o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, por violação das normas dos artigos 36º, nº 4, e 13º da CR, indicou as suas alegações para a relação e para o Supremo como sendo as peças processuais «em que foi suscitada a questão de inconstitucionalidade do artigo 1793º do Código Civil», retirando-se da sua leitura que se pretendeu recorrer da interpretação restritiva dada a esta norma pelo acórdão, recusando a sua extensão por analogia.
O próprio despacho de não recebimento do recurso implicitamente o reconhece, ao referir que, para a recorrente, a alegada inconstitucionalidade
«estará na interpretação que no acórdão se fez do artigo 1793º, nº 1, do Código Civil».
Ou seja, considera-se que se verificam os pressupostos do recurso de constitucionalidade previstos na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, por estar em causa a constitucionalidade da interpretação dada pelo Supremo àquela norma, recusando-lhe uma extensão por analogia que, na óptica da recorrente e reclamante, será a interpretação conforme às normas dos artigos
36º, nº 4 e 13º da CR.'
A admissão do recurso constitui, assim, res judicata, pelo que não cumpre, agora, reequacionar a questão.
Na verdade, o nº 4 do artigo 77º da Lei nº 28/82 é claro, neste ponto: a decisão não pode ser impugnada e, se revogar o despacho de indeferimento (como aconteceu) faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso.
É certo que o recorrido não discute que assim não seja. Pretende, no entanto, distinguir entre o problema da admissibilidade do recurso - onde se atende ao controlo da verificação dos pressupostos deste - e a questão do seu conhecimento, na qual estão em causa o objecto do recurso e os problemas dele decorrentes.
Na verdade, porém, o que se questiona é a viabilidade de uma interpretação extensiva do artigo 1793º, a qual, aos olhos do recorrido, consubstanciaria a criação de uma norma nova, por essa via se acolhendo uma insinuada intenção legiferante, interpelando, além do mais, o sentido e os limites funcionais da missão jurisdicional do Tribunal.
Depara-se, assim, ao intérprete uma problemática que implica conhecer de mérito. E esse conhecimento, iremos ver, talvez passe por diferentes coordenadas.
2- A questão de mérito
2.1.- Na sistemática do Código Civil, o artigo 1793º encontra-se inserido no título respeitante ao casamento, do Livro IV, sobre direito da família, mais concretamente na subsecção que cuida dos efeitos do divórcio, no
âmbito do capítulo sobre o divórcio e a separação judicial de pessoas e bens, e tem, como epígrafe, 'Casa de morada da família'.
Dispõe no seu nº 1:
'Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal'.
Está em causa a determinação do universo de destinatários da norma (é esta a única questão a resolver, frisou o Supremo no acórdão recorrido): será a mesma igualmente aplicável às situações de cessação de união de facto, se constituída esta more uxorio, havendo filhos menores nascidos dessa união?
A resposta não prescinde da convocação do nº 4 do artigo 36º da CR, que a parametrizará constitucionalmente, na medida que aí se consagra o princípio da não discriminação entre filhos: os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação e a lei ou as repartições oficiais não podem usar designações discriminatórias relativas à filiação.
Observam, a este respeito, Gomes Canotilho e Vital Moreira, que o princípio consagrado no nº 4 do artigo 36º da CR, da não discriminação entre filhos, independentemente dos progenitores estarem ou não casados, deu lugar a uma das grandes transformações na ordem jurídica precedente, arrastando a caducidade ou a revogação de normas que, em variados domínios, afirmavam a distinção entre 'filhos legítimos' e 'filhos ilegítimos'
(cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., revista, Coimbra,
1993, pág. 222).
Entretanto, o esbatimento da ajuridicidade da união de facto, com aflorações dispersas da sua relevância jurídica em várias áreas legislativas, se bem que não permita defender dogmaticamente a sua equiparação ao status familiae saído da instituição matrimonial, ilustra uma consagração pontual da figura que o operador jurídico, mormente se constitucional, não pode menosprezar.
Com efeito, por um lado, seria injustificado aplicar o estatuto do casamento a pessoas que não quiseram casar - como observa Pereira Coelho, 'Casamento e Família no Direito Português' in Temas de Direito da Família, Coimbra, 1986, pág. 19 - com toda a carga consequencial inerente; mas, por outro lado, e independentemente de poder qualificar-se esse argumento de especioso (cfr., João de Pina Cabral, 'A lei e a paternidade: as leis de filiação portuguesas vistas à luz da antropologia social' in - Análise Social, nºs. 123-124, 1993, pág. 989), o certo é que, se a união de facto não é relação familiar de pleno, para a generalidade dos efeitos, não pode hoje deixar de assim ser qualificada para determinados efeitos (neste sentido se pronuncia, aliás, Pereira Coelho - ob. cit., pág. 9. Cfr., o parecer da Procuradoria-Geral da República nº 94/88, publicado no Diário da República, II Série, de 16 de Outubro de 1989).
Ora, o Supremo, ao debruçar-se sobre o nº 1 do artigo 1793º do Código Civil, tem por 'demais evidente' reportar-se a sua previsão apenas aos cônjuges, ou seja, 'a quem se tenha ligado pelo casamento, tal como definido vem no artigo 1577º do Código já citado, pois a simples união de facto não confere aos 'unidos' o estatuto de cônjuges'
Sublinhando a preocupação do legislador ordinário em só atribuir efeitos de direito às uniões de facto em casos específicos, que considere dignos de protecção legal, o Supremo pondera não estar legalmente contemplada a possibilidade de dar de arrendamento forçado a casa de morada da família nas hipóteses de mera união de facto e afasta a alegada violação da norma constitucional do nº 4 do artigo 36º, por via dessa interpretação, argumentando constituir único objectivo da norma em sindicância regulamentar um efeito do divórcio ou da separação judicial de pessoas e bens, relativo a 'um particular reflexo dessas situações no tocante à casa de morada da família, comum ou própria de um dos cônjuges'.
O objectivo da norma, nesta óptica, não é (ou também não é) o de regular directamente o estatuto dos filhos, uma vez que se situa em diferente sede, não obstante se conceder poder existir um reflexo indirecto nesse estatuto, em todo o caso irrelevante.
2.2.- Nesta linha de entendimento, o Supremo afastou-se da tese professada no acórdão da Relação que, logicamente, revogou.
A 2ª Instância, na verdade, detectara, na situação contemplada no nº 1 do artigo 1793º, flagrante similitude com a prevista nos nºs. 2 e 3 do artigo 1110º do Código Civil, que teve por inteiramente aplicável
àquela. A situações semelhantes, escreveu-se então, deve corresponder o mesmo tratamento jurídico, quer por uma questão de justiça relativa, quer por uma questão de certeza ou segurança do direito.
A Relação, na análise a que procedeu dos citados nºs. 2 e 3 do artigo 1110º, atendeu particularmente ao princípio da protecção dos interesses dos filhos menores, quando este determina dever o tribunal ponderar seja na idade, estado de saúde e ocupação dos menores, seja no nível de vida dos progenitores, já que estes devem proporcionar aos filhos um teor de vida semelhante ao seu, o que, a seu ver, significa não visarem essas normas definir o estatuto dos filhos menores nem com eles directamente contenderem.
A interpretação então feita do nº 1 do artigo 1793º não só radicou na análise daqueles nºs. 2 e 3 do artigo 1110º, como entroncou no acordão do Tribunal Constitucional nº 359/91 - já citado - ao apreciar o circunstancialismo fáctico subjacente:
'[...] autor [...] e ré [...] viveram durante dez anos como se casados fossem, existindo dessa união dois filhos menores [...] que viveram em casa de morada da família com os seus progenitores até essa união ser desfeita, e depois lá continuaram com o progenitor a quem foi confiada a sua guarda e protecção [...].
O pai dos menores [...] reivindicou a casa de morada da família, invocando a sua qualidade de dono e a circunstância de a Ré a deter sem qualquer título, o que determinou a que esta deduzisse reconvenção a pedir que lhe fosse dado de arrendamento a casa de morada da família com base nas suas necessidades e 'no interesse dos filhos menores'.
E, a seguir:
'[...] o Tribunal não pode deixar de ponderar que, na formação da regra sobre a atribuição da casa de morada da família, o princípio da protecção do interesse dos filhos menores é erigido, por força do nº 1 do artigo 1793º do Código Civil, como princípio decisivo, de tal sorte que, no presente caso, a circunstância de os menores não só necessitarem da casa de morada da família dado não terem outra residência, mas também só nele terão um teor de vida semelhante a um dos seus progenitores (o do pai), precisamente o dono da casa e com um certo nível de vida, no plano económico, a inferir pelo valor pecuniário a que se obrigou a prestar àqueles seus filhos.
Daqui a concluir-se, como se conclui, que, no caso concreto, a casa de morada da família pertença do autor [...], deve ser dada de arrendamento à ré [...], com cláusulas a definir em composição dos interesses em jogo, devidamente a expor'.
Na sequência da argumentação assim desenvolvida, entendeu a Relação, no acórdão revogado pelo Supremo, que, por força do princípio da não discriminação dos filhos, consagrado no nº 4 do artigo 36º da CR, a casa de morada da família segue o destino previsto no nº 1 do artigo 1793º do Código Civil, 'desde que estejam em questão o interesse dos filhos, no caso da cessação da união de facto, constituída em condições análogas às dos cônjuges'.
Não está, como é óbvio, directamente em causa o acórdão da Relação mas interessa o seu destaque na medida em que nos dá a perceber o suporte fáctico do caso sub judicio e, bem assim, melhor esclarece a não adesão do Supremo, no aresto ora recorrido, a semelhante interpretação.
Na verdade, assenta este último acórdão em diferentes premissas, desde logo enfatizando a precaução do legislador ordinário ao conceder relevo jurídico às uniões familiares 'de facto', de modo confessadamente não 'estimulante'.
É, assim, que logo cita uma passagem do preâmbulo do Decreto-Lei nº 497/77, de 25 de Novembro, diploma por via do qual se introduziriam alterações no Código Civil de compatibilização com o texto constitucional, nomeadamente neste domínio:
'Não se foi além de um esboço de protecção, julgado ética e socialmente justificado, ao companheiro que resta de uma união de facto que tenha revelado um mínimo de durabilidade, estabilidade e aparência conjugal. Foi-se intencionalmente pouco arrojado. Havia que não estimular as uniões de facto.'
Mostra-se o Supremo sensível à técnica casuística utilizada pelo legislador no concernente à relevância jurídica das uniões de facto.
Só na área civilística, cita-se, nessa perspectiva, o artigo 85º, nº 1, alínea e), do RAU - Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro - a respeito da transmissão por morte dos arrendamentos para habitação, mantendo o estatuído no nº 2 do artigo 1111º do Código Civil, na redacção do artigo 40º da Lei nº 46/85, de 20 de Setembro, que aquele diploma de 1990 revogou; traz-se à colação o disposto, em matéria de presunção de paternidade, a alínea c) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, na redacção que o Decreto-Lei nº 496/77 lhe deu; invoca-se, ainda, o nº 3 do artigo 1911º do mesmo Código, e no texto derivado desse diploma de 1977, no tocante à disciplina do poder paternal sobre os filhos nascidos de progenitores não unidos pelo matrimónio - tudo para demonstrar que a equiparação jurídica se tem feito fragmentária e pontualmente, não generalizadamente, operando tão só quando se tiveram por dignos de protecção da lei as situações em causa.
Diga-se, em síntese, que, a partir desta constatação, o acórdão recorrido fundamentou o seu desiderato em duas premissas: a) a pontual concessão de efeitos jurídicos às situações decorrentes de uniões de facto não permite afirmar o reconhecimento pelo legislador da integral equiparação dos estatutos familiares, consoante oriundos do vínculo matrimonial ou de mera união de facto; b) a irrelevante projecção da união de facto no âmbito estatutário dos filhos, nomeadamente menores, para além dos casos expressamente contemplados na lei.
Ora, se pode aceitar-se a primeira das premissas enunciadas, o mesmo se não dirá da segunda, pelo menos nos termos genéricos, indiferenciados e irrestritos que alicerçaram a decisão.
2.3.- Bem vistas as coisas, o discurso argumentativo é muito próximo do desenvolvido pelo Supremo Tribunal de Justiça no assento de 23 de Abril de 1987, publicado no Diário da República, I Série, de 28 de Maio de 1987).
Considerou-se, então, essencialmente, revestirem as normas dos nºs. 2, 3 e 4 do artigo 1110º carácter excepcional, relativamente ao regime geral da cessão da posição contratual do arrendatário, previsto nos artigos 424º e seguintes do Código Civil, aplicáveis por força do artigo 1059º, nº 2, do mesmo diploma, deste modo vedando-se ao intérprete a aplicação analógica (artigo 11º do Código Civil). De qualquer maneira, mesmo que não se qualificassem essas normas de excepcionais, nem por isso seria de sufragar a sua aplicação analógica às uniões de facto, uma vez que se não trataria de caso omisso, ou seja, de uma lacuna da lei, susceptível de recurso à analogia (artigo
10º do mesmo texto), mas de simples 'caso não regulado', dada a relevância jurídica pontual das uniões de facto e a subjacente especificidade.
O Tribunal Constitucional, no entanto, no seu acórdão nº 359/91, já citado - tirado em plenário, se bem que só por maioria
- afastou esse tipo de argumentação, sem prejuízo de reconhecer não visarem as normas daquele artigo 1110º a definição do estatuto dos filhos menores, pois que projectadas sobre a disciplina de um dos efeitos do divórcio ou da separação judicial de pessoas e bens, mais exactamente, a incidência desse divórcio ou separação no contrato de arrendamento da casa de morada da família. Não obstante, não deixou de pesar, na axiologia que o sensibilizou e determinou então, depender a atribuição da casa de morada da família não só das necessidades materiais dos cônjuges e da capacidade económica de cada um, como também do interesse dos filhos menores, cuja protecção se teve por particularmente decisiva e implica uma não discriminação dos filhos.
Nesta perspectiva, não se aceita dizer que o interesse dos filhos só pode servir de critério para a atribuição do direito ao arrendamento desde que se trate de filhos nascidos do casamento e os progenitores se divorciarem (ou se separarem de pessoas e bens, judicialmente) dado o interesse dos filhos assim entendido não se compaginar com o nº 4 do artigo 36º da CR. E, por isso, asseverou o Tribunal - sempre no Acórdão nº
359/91 - não terem lugar as objecções suscitadas quanto à aplicação analógica de normas excepcionais, no que, nomeadamente, se suportou na anotação de Pereira Coelho ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Junho de 1985, publicado no Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 120, pág. 81: aí, para além de se 'desdramatizar' o desvio ao comando do artigo 424º, nº 1, do Código Civil e ao princípio nele contido, já de si objecto de múltiplas excepções, a extensão às uniões de facto do preceituado nos nºs. 2 a 4 do artigo 1110º é encarada numa óptica de adequação constitucional, o que anula a lógica da proibição da aplicação analógica.
Assim, ao pronunciar-se, no âmbito do seu poder cogniscitivo, sobre o assento de 23 de Abril de 1987 e a interpretação pelo mesmo dada aos nºs. 2, 3 e 4 do artigo 1110º do Código Civil, que não os teve por aplicáveis às uniões de facto mesmo que destas haja filhos menores, o Tribunal Constitucional não apelou à diferente natureza do casamento e da união de facto, antes se colocou no plano do interesse dos filhos.
Mostra-se elucidativa, a este respeito, a seguinte passagem do acórdão nº 359/91, que se transcreve:
'Aliás, em última análise, a decisão sobre a matéria impugnada há-de situar-se, não já no plano da diferente natureza do casamento e da união de facto, mas sim no plano do interesse dos filhos, que, por força daquele preceito constitucional [refere-se ao nº 4 do artigo 36º], não podem conhecer tratamento discricionário derivado do facto de os respectivos progenitores serem ou não casados, mostrando-se assim irrelevante a argumentação que, pelo facto de a lei civil proibir a aplicação analógica de normas excepcionais, acaba por não rejeitar àquela discriminação.'.
Nesta leitura valorizadora do critério do interesse dos filhos, deve-se contrariar o desfavor criado em relação aos filhos nascidos fora do casamento, mediante a consideração de que os efeitos produzidos se projectam indirecta ou reflexamente na esfera jurídica destes, enquanto menores. Por conseguinte, é afastada a tese que inatende ao interesse meramente indirecto, de que se fez eco o acórdão da Relação de Lisboa, de 11 de Dezembro de 1984, que a Colectânea de Jurisprudência publicou (1984, T. 5, pág.
165), sendo de sublinhar, como nota Pereira Coelho (loc.cit.) não só os filhos beneficiarem imediatamente da atribuição do direito de arrendamento ao progenitor a quem ficam confiados, como poderão vir a suceder no direito ao arrendamento por morte deste, se se entender que o disposto no nº 4 do artigo
1111º do Código Civil também se aplica ao caso previsto no artigo 1110º.
3.- Considera-se ser de manter, no caso sub judicio, a linha jurisprudencial seguida pelo Acórdão nº 359/91.
Com efeito, é evidente a correlação entre as situações contempladas nos nºs. 2 e 3 do artigo 1110º e no nº 1 do artigo
1793º: visam aquelas, além do mais, a destinação da casa de morada da família quando os cônjuges vivam em casa arrendada; cuida a última da destinação da casa de morada da família pertença em comum ou própria de um dos cônjuges.
No seu comentário ao preceito paralelo do artigo
84º, nºs. 1 e 2, do R.A.U., observa Januário Gomes (in Arrendamentos para Habitação, Coimbra, 1994, pág. 50):
'De acordo com o nº 1 do artigo [1793º], o tribunal pode dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
Conforme decorre claramente do nº 1 do artigo, a situação aqui prevista é claramente diferente da regulada no artigo 84º do R.A.U.
(correspondente aos nºs. 2 a 4 do artigo 1110º do Código Civil: enquanto neste
último, é regulada a possível transferência do direito ao arrendamento do cônjuge [...], naquele é prevista a possível constituição duma relação de arrendamento habitacional tendo por objecto a casa de morada da família, propriedade de ambos os cônjuges ou daquele que não é beneficiado com a posição de arrendatário. A occasio é no entanto idêntica aos dois preceitos: a ocorrência de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens'.
A assinalada identidade não se revela apenas na occasio legis mas ainda porque, num caso e noutro, o interesse dos filhos do casal é erigido como critério de ponderação: nesta perspectiva torna-se evidente a similitude entre a situação decorrente da atribuição da casa de morada da família estabelecida em imóvel pertencente a um dos membros do casal e a casa de morada da família constituída em prédio arrendado por um dos membros desse casal.
E, transpondo a doutrina do citado acórdão para a
área do artigo 1793º do Código Civil, englobam-se nele os efeitos decorrentes da união de facto enquanto se tenha em vista a protecção dos interesses dos filhos menores nascidos dessa união.
Não está em causa determinar se o texto constitucional pode, ou não, ser interpretado de forma a tornar extensível à união de facto o regime jurídico do direito de família, ou se às situações de facto podem ser aplicadas por via analógica as regras estabelecidas para o casamento. Nomeadamente perante uma norma como a do artigo 1793º, vista por alguns autores com confessada reserva (v.g., Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. IV, 2ª ed., Coimbra, 1992, pág. 569; Diogo Leite de Campos, Lições de Direito da Família e das Sucessões, Coimbra, 1990, pág. 305).
Está em causa, sim, face ao artigo 36º, nº 4, da CR, cuidar de assegurar que o interesse dos filhos menores nascidos fora do casamento não deixa de integrar um dos vectores do critério a utilizar pelo julgador na determinação da casa de morada da família. Até porque, como bem nota o recorrido, o artigo 1793º é uma norma aberta à densificação do seu conteúdo através das decisões jurisprudenciais, necessário será que estas tenham presente aquele interesse.
E não se objecte que o artigo implica, na medida em que reportado aos efeitos do divórcio, o status institucional adquirido pelo casamento. A valorização meramente formal desse argumento operaria uma discriminação reflexa quanto aos filhos nascidos fora do matrimónio, pois, como já se observou, o seu interesse na manutenção da residência familiar não poderia ser atendido sempre que o poder paternal fosse atribuído ao progenitor não proprietário da casa de morada da família (cfr. Lopes do Rego, 'A Transmissão do arrendamento nos casos de ruptura da união de facto', in Revista do Ministério Público, nº 49 - Janeiro/Março de 1992 - pág. 107).
Na realidade, a observância do preceito constitucional e o seu decorrente enfoque afastam a nuclearidade essencial da fundamentação do acórdão recorrido - parafraseando o, mais uma vez, citado Acórdão nº 359/91 - implicando a reapreciação do concreto caso nesta óptica constitucional - única que ao Tribunal Constitucional compete e que, aliás, foi utilizada pela Relação - pois que se julga inconstitucional a norma do nº
1 do artigo 1793º do Código Civil, na interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, de 26 de Maio de 1993, na medida em que não atendeu ao interesse dos filhos menores do casal não unido por casamento.
III
Em face do exposto, decide-se:
a) julgar inconstitucional, por violação do disposto no nº 4 do artigo 36º da Constituição da República, a norma do nº 1 do artigo 1793º do Código Civil na interpretação segundo a qual o regime nela previsto não é aplicável às situações de cessação de união de facto, se constituída esta more uxorio, havendo filhos menores nascidos dessa união;
b) consequentemente, conceder provimento ao recurso devendo a decisão recorrida ser reformulada em consonância com o juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 4 de Dezembro de 1996 Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria Fernanda Palma Armindo Ribeiro Mendes Vítor Nunes de Almeida (vencido, de acordo com a declaração de voto que junto)
À semelhança do que ocorreu no Processo nº 36/90 - Acórdão nº
359/91, deste Tribunal - continuo a entender, pelas razões constantes do voto de vencido a que, então, aderi, que a situação de convivência more uxorio não pode ser equiparada à de casamento, para efeitos não previstos expressamente na lei, mesmo existindo filhos menores de tal convivência.
No caso do Acórdão nº 351/91, tratava-se da atribuição do arrendamento da casa em que o agregado vivia, arrendamento de que era titular o companheiro, tendo-se peticionado a transferência da sua titularidade para a companheira e mãe dos menores.
Nestes autos, trata-se de um pedido de reivindicação de imóvel
- fracção autónoma - em que o requerente e a requerida viviam, em união de facto, estando tal fracção registada como propriedade do requerente que pretende que a mesma lhe seja entregue livre de pessoas e bens, sendo certo que a requerida ali continua a residir com dois filhos menores do casal. Em reconvenção, a requerida peticionou que lhe fosse atribuído o direito ao arrendamento da referida fracção.
Assim, a causa de pedir seria aqui, o artigo 1793º do Código Civil, enquanto que no processo de 1990, o preceito em causa era o do Artigo
110º do mesmo Código.
A argumentação do acórdão é inteiramente tributária da posição que formou a maioria no Acórdão nº 351/91.
Assim, o voto de vencido a que na altura daquele aresto aderi, tem inteiro cabimento neste voto de vencido. Mas, como então se tratou de um voto de adesão, importa agora retomar a síntese dos argumentos desse voto, procurando manter-se a essência do mesmo.
O nº 1 do artigo 1793º do Código Civil (adiante, CC), estabelece que pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa morada de família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
A questão que vem equacionada e resolvida no acórdão é a do
âmbito de aplicação desta norma: integrar-se-á nele a situação correspondente à união de facto, se desta houver filhos menores.
O acórdão deu-lhe resposta positiva. Por nossa parte, continuamos a entender que a resposta não pode deixar de ser negativa.
De acordo com o próprio texto da norma, a casa morada de família, propriedade comum ou de um só dos cônjuges, pode ser dada em arrendamento a qualquer deles, na sequência de um processo de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens - trata-se, assim, de uma norma claramente protectora da família, mesmo para além do termo da comunidade de vida que o casamento se destinou a criar. O referir-se a lei expressamente a «cônjuges» não pode deixar de se entender como afastando os casos de separação de facto e os casos de cessação de situações de convívio «more uxorio» .
É certo que a norma manda atender na atribuição da titularidade do arrendamento às necessidade de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal, sem dúvida como índices a tomar em consideração no resolução da questão suscitada. Tomar o interesse dos filhos como critério exclusivo de decisão e, mais do que isso, como critério único de aplicação analógica da norma aos casos de convivência more uxorio, seria conceber tal norma como visando definir o estatuto dos filhos do casal, o que não acontece.
De facto, como se referiu, a norma apenas tem como finalidade regular um efeito do divórcio e/ou da separação de pessoas e bens - o que se prende com a possibilidade de arrendamento da casa morada de família, quer seja comum ou própria de um dos cônjuges - chamando-se à colação para decidir de tal atribuição que a situação pessoal de cada um dos cônjuges que o interesse dos filhos do casal. Não existe aqui uma diferença de tratamento entre os filhos nascidos do casamento e nascidos fora do casamento.
Como se referiu no voto de vencido do Consº Messias Bento, a que aderimos na votação do Acórdão nº 351/91,a irrelevância dos filhos menores nascidos fora do casamento (ou melhor: a insensibilidade ou indiferença do legislador perante esse interesse) - em contraste com a relevância dos interesse dos filhos menores de pais casados que, entretanto se divorciaram ou separaram judicialmente - para o efeito de atribuição do direito ao arrendamento da habitação familiar, é, pois, uma consequência mediata, um mero efeito reflexo, da disciplina jurídica da transmissão do contrato de arrendamento - e não uma solução jurídica que o legislador assuma visando a definição do estatuto da filiação.
Não pode, assim, ser a norma do artigo 36º, nº4 da Constituição o parâmetro de apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 1793º, do Código Civil.
Inexiste também qualquer violação do princípio da igualdade, se se perguntar pelo diferente tratamento das famílias em questão: a família conjugal e a família natural, na medida em que a união de facto continua a não ser entre nós, o elemento fundamental da sociedade, anterior ao Estado e ao qual este deve protecção (artº 67º). Por essa razão, no plano legislativo, continuam a existir diferenças de tomo entre união de facto e casamento: desde logo, os parceiros de uma união de facto, nem por viverem more uxorio, ficam sujeitos aos deveres conjugais de fidelidade, respeito, coabitação, cooperação e assistência
(cf. artigo 1671º do Código Civil); depois, a união de facto não tem efeitos sucessórios, nem determina a aplicação de um «regime de bens»; finalmente, mesmo vivendo em situação paraconjugal, os parceiros põem termo quando quiserem a essa comunhão de vida.
Estas as razões, aqui muito sintetizadas, e na linha do mencionado voto de vencido, que me levam também neste caso, a votar vencido quanto à decisão a que chegou o acórdão em causa.
Lisboa, 1996.12.04 Luís Nunes de Almeida